Não é uma apologia à impontualidade, mas instigante título de um grande livro de Thomas Friedman (autor de "O mundo é plano"). Obra fascinante em que o autor busca compreender e fazer com que os leitores compreendam a transição atual que é uma profunda inflexão histórica marcada por três grandes vetores de aceleração: a globalização, a tecnologia e a mudança climática.
Neste sentido, o autor se socorre de Marie Curie (primeira mulher a ganhar o prémio Nobel e única vencedora em dois campos distintos: química e física) que ensina: “Nada na vida deve ser temido, se formos capazes de compreendê-lo. Agora é o momento de compreendermos mais, para que venhamos a temer menos”. Muito apropriado para o nosso tempo em que o ritmo da mudança e da aceleração coincidem no crescimento exponencial das transformações e dificultam as adaptações, especialmente, para quem não está atento ao fenômeno.
Vivemos a “Era da Aceleração”. Sem botão para a pausa, como as máquinas, caminhamos, de disrupção em disrupções, de ruptura em rupturas, velozes, furiosos, ansiosos, angustiados, patologicamente, na direção do pânico.
Pois bem, o autor narra que usa o tempo da refeição matinal para despistar a solidão, entrevistar personalidades e compartilhar conhecimentos com amigos. Certa manhã, um dos companheiros do desjejum atrasou e, desmanchando-se, em desculpas, ouviu uma resposta inesperada “obrigado pelo atraso”: o autor encontrou tempo para pensar e produzir. Friedman descobriu e apertou o botão “pausa”, mergulhou na reflexão que a, partir daquele momento, passou a integrar o seu funcionamento psíquico.
Momento raro e silencioso. Liberto do celular; mensagens do zap; postagens dos tuítes; narcísicos faces e selfies, a pausa serviu para duas constatações: a velocidade das mudanças e a carga brutal de informação somente são úteis se a reflexão transformá-las em conhecimento.
Dei o livro de presente a uma amiga que retribuiu com brilhante comentário: “Estava num restaurante e, diante de mim, um casal não tirava os olhos dos smartfones. E aí constatei que as máquinas estão pensando por nós. Nos mandam desejos, imperativos. Robotizados, somos impessoas. Para quê? Cadê os olhos nos olhos, o toque. Seres digitalcêntricos, perdemos a pele. Possivelmente um escudo contra a dor do existir; hipnotizada, sou ninguém; nada me responsabiliza; afugento o inevitável: a morte, porque estou abraçada à potência da máquina, um placebo contra as impotências nossas de cada dia. Receba um abraço humanamente afetuoso”. Falou e disse!
Existe no mundo um estado mais caro, ineficiente e cruel do que eu, Estado brasileiro? – A Venezuela não morreu. A rima é inevitável, verdadeira e o povo sofrido digno de compaixão – o Espelho respondeu com realismo e piedade. – Então, você está dizendo que meu futuro é uma grande Venezuela? Indagou o Estado. – Depende, retrucou o espelho, as nações são diferentes, mas os destinos podem coincidir. Você toma das pessoas quase 40% da riqueza nacional, investe 1% e os 39% vão para gastos correntes, tem um déficit nominal de 5% e uma dívida pública de acima de 70% do PIB. Você foi capturado pelo corporativismo, pelo patrimonialismo e pela corrupção. É um pau mandado do estamento burocrático que invade e dirige a esfera política, econômica e financeira. É um Brasil que pode mais do que trabalha e suga o Brasil anêmico que trabalha mais do que pode.
O Estado reagiu: - Então sou um monstro frio que compromete o futuro das criancinhas; que permite a violência dizimar a juventude; que humilha aposentados e é generoso com a minoria dos privilegiados? Ora, espelho, eu não sou filho de chocadeira, não sou produto de geração espontânea, sou esta criatura disforme, malévola, mas vocês me criaram a partir de seus defeitos e virtudes! O Espelho, serenamente, prosseguiu: – É verdade! Você é reflexo dos nossos vícios e virtudes. Mais dos vícios: boquinhas, espertezas, jeitinhos, carteiradas. De fato, fez muito pelo País. Somos a oitava economia do mundo. Temos ilhas de excelências universalmente reconhecidas. Porém, o que você faz com as mãos desfaz com pesados pontapés. Basta olhar e comparar os indicadores internacionais para constatar nossas decepcionantes posições no contexto global.
Entendi: não tenho salvação! Afundarei no pântano das misérias e levarei comigo uma nação que tem todas as possibilidades de ser próspera, mais justa e... – Não, interrompeu o Espelho, você e o Brasil têm salvação, contanto que não se entregue o Brasil a um “salvador da pátria”, a um herói/malandro ou a um mito macunaímico; que não se jogue a culpa das nossas escolhas erradas em entidades fantasmagóricas; que prevaleça a sábia lição de Millôr Fernandes que ensina “quando as ideologias ficam bem velhinhas, elas vêm morar no Brasil”. As dores do parto ensinaram às novas gerações: o valor da liberdade, o valor da moeda estável e que empreender vale mais do que se tornar um “servo da gleba” estatal.
O “ele” a que me refiro é o cidadão Marco Maciel. No dia 21 de julho do corrente ano completou setenta e sete anos.
Não tratarei da notável biografia e virtudes pessoais. Para tanto, repito o conceito que serviu de fecho para o documentário do Congresso Nacional sobre a vida dele: “Marco Maciel foi o ser humano menos imperfeito que conheci”.
Tratarei, sim, da primeira tentativa do então Senador MM, de regulamentar as atividades dos grupos de pressão – lobbies – e da atualidade do pensamento de Marco Maciel sobre a reforma política.
A iniciativa se deu em 1984 através do Projeto de Lei nº 25. Arquivada. Marco Maciel reapresentou em 1989 que recebeu parecer favorável do Senado e tramitou na Câmara como projeto de lei nº 203 sob a rubrica nº 6132-A, de 1990, até o fim da legislatura em 31 de janeiro de 1995.
A proposição compreendia quatro partes distintas e tinha como objetivo, tornar transparente a atividade de grupos de pressão direcionada a influenciar a deliberação e a eventual tomada de decisão no âmbito do Poder Legislativo. Depois de quase três década, tramita mais de uma dezena de projetos de lei sobre o assunto. Se a voz pioneira de Marco Maciel fosse ouvida, é provável que não estivéssemos mergulhados no charco da corrupção.
Seguidor da máxima Aristotélica de que a Política é a “arte das artes”, Marco Maciel desenvolveu a singular capacidade de atentar para o que não estava manifesto e se antecipar aos fatos. Para ele, a soma ideias e ações era o fio condutor da transformação da sociedade. Não surpreende, pois, a defesa ardorosa não apenas da reforma política, mas da reforma institucional como a reforma das reformas ou a mãe de todas as reformas, expressões, atualmente, bastante difundidas.
De modo a validar sua visão antecipatória, transcrevo trecho do discurso pronunciado em 15 de março de 2005, no Senado, em comemoração à passagem dos vinte anos da fundação da Nova República: “Depois de consolidada entre nós a democracia como processo, é indispensável mudar o sistema eleitoral para que o voto deixe de ser ‘fulanizado’; vertebrar verdadeiros partidos como canais de interlocução entre a sociedade e o Estado; aperfeiçoar o sistema de governo para melhorar o desempenho dos Poderes e seu relacionamento no modelo presidencialista que praticamos; redesenhar o Estado Federal para compatibilizá-los com as exigências de descentralização; e, finalmente, revigorar as instituições republicanas, isto é, ‘republicanizar’ a República, para eliminar a incerteza jurídica e assegurar a todos plena cidadania”.
Não fosse a enfermidade que comprometeu seriamente sua saúde, Marco Maciel estaria inteiramente dedicado à vida pública, buscando caminhos para a saída da profunda crise que atormenta o Brasil.
O grande pensador Norberto Bobbio publicou, em Torino, “alguns escritos dos últimos anos sobre as chamadas ‘transformações’ da democracia (...) Prefiro falar em transformação, e não de crise, porque ‘crise’ nos faz pensar num colapso iminente. A democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo” (O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo; Ed, Paz e Terra, 1986).
No livro Sobre a Tirania, (2017, Companhia das Letras), o historiador Timothy Snyder, pesquisador profundo das atrocidades cometidas pela Alemanha Nazista, a União Soviética e, sob o impacto da eleição de Trump, alerta: “É preciso se preparar agora para a possibilidade de um colapso quanto o ocorrido nos anos 1920, 1930 e 1940”.
Na mesma linha de preocupaçāo com os riscos que correm as democracias, estão Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Harvard), co-autores do livro "Como morrem as democracias", a ser lançado no próximo ano.
Somente o tempo insondável do futuro dará razão a tão notáveis intérpretes da cena política. A prudência aconselha a não submeter as singularidades locais à uniformidade de “ondas” globais. Preventivamente, o ponto de partida é admitir que a democracia é uma ideia antiga, mas uma experiência recente que, segundo Huntington, sobreviveu às “ondas reversas”.
Por sua vez, Snyder registra que o avanço totalitário se dá pelo voto e obedece à lógica de que “na política, todos passaram a ser vistos como suspeitos” e, em sociedades assim, não percebemos o perigo de que “quem tem o melhor controle do palco tende a alcançar o poder”. Fatos, verdades e tolerância dialética não contam.
Transpondo para o caso brasileiro estes marcos analíticos, é fundamental atentar para a precisa constatação feita pelo cientista político Antonio Lavareda sobre o tamanho do mercado “supostamente não democrático no Brasil de hoje”. Ele toma como indicativo a pesquisa do instituto Latinobarômetro (2016), na qual, apenas, 32% dos brasileiros preferem a democracia como forma de governo, à frente da Guatemala e abaixo da média continental em que 54% dos povos preferem a democracia.
Considerando que o radicalismo à direita, interpretado por Bolsonaro, tem um potencial de cerca de 20% do eleitorado e o lulopetismo, um piso cativo em torno de 30%, cabe indagar: onde fica o centro democrático ocupado por uma esquerda contemporânea e liberais esclarecidos? Submersos na crise de representatividade e salpicados de lama?
Nada de previsão. No Brasil de hoje, o futuro foi ontem. Não custa, porém, ler as 20 vacinas ao autoritarismo, propostas por Snyder.
Nas três últimas décadas, o Brasil esteve, em dois momentos, à beira do precipício.
O primeiro foi o da hiperinflação. Segundo os economistas, a hiperinflação ocorre quando a alta generalizada de preços ultrapassa 50% ao mês. Em março de 1989, a inflação brasileira atingiu 81%. É um fenômeno devastador que leva á ruptura do tecido social. A crise econômica da Alemanha em 1923 é um caso clássico que resultou na tragédia do nazi-fascismo.
No caso brasileiro, de 1980 a 1994, a instabilidade econômica engoliu seis moedas e respectivos planos econômicos, 16 Ministros da Fazenda, com uma inflação média anual de 720%. Neste período, cada Presidente - Sarney, Collor, e Itamar – padeceu de um tipo de debilidade: Sarney com uma sucessão trágica; Itamar com a tarefa de transitar sobre uma precária “pinguela” a partir da queda de Collor.
Um improvável sucesso do plano de estabilização gerou uma nova moeda – o Real – sob a liderança do então Ministro FHC. Deu muito trabalho. E continua dando. No entanto, a cultura de estabilidade é, hoje, o grande esteio da moeda forte ancorada na autonomia operacional do Banco Central. À exceção da oposição petista, um surto de responsabilidade política deu marcha-ré na caminhada em direção ao precipício. O precipício ensinou.
Agora, o precipício é mais profundo. E as circunstâncias mais adversas. Sob o governo petista, a economia brasileira foi empurrada para beira do precipício por um fenômeno que os analistas chamam de “tempestade perfeita”, síntese da superposição de crises econômica, social, política e ética. Desta vez, os erros de condução da economia praticados pelo voluntarismo desenvolvimentista, associados ao maior esquema da corrupção da história ocidental, colocam o país na beira de um precipício de profundidade abissal.
Tempos de incertezas. Sombrios. Generalizada sensação de mal-estar. Centenas de espadas da Operação Lava Jato pairam sobre centenas de cabeças. Pois bem, neste cenário adverso, um surto de responsabilidade atentou para o precipício e aprovou a PEC dos gastos e com ela nasceu o orçamento brasileiro. Nada mágico. Um freio na insolvência do Estado brasileiro. E na economia a depender de reformas e medidas a serem tomadas por um governo impopular. A pedagogia do precipício clama pelo futuro.
A propósito, a economista Maria da Conceição Tavares que chorou copiosamente, prenunciando o fracasso do Real, definiu a PEC dos gastos como uma “invenção demoníaca". Bom presságio.
Fim de tarde na bucólica Vitória de Santo Antão, ano de 1957. Revisão dentária com Dr. Bido, meu pai. Zero cárie. Prêmio: empada maravilhosa com caldo de cana no bar de Pedro Peixe. Depois, na mesma rua XV de novembro, a prosa habitual na coletoria com Seu Valença, funcionário público exemplar para quem o dinheiro do contribuinte era sagrado e a honestidade, valor e dever indeclináveis. Rabugento com a idiotice e implacável paladino da decência e dos bons costumes, Valença era tão sisudo e de humor tão oscilante que se tornava engraçado e atraente.
A recordação me chega com uma limpidez cristalina. No encontro, estavam Biu, motorneiro aposentado da Tramways, e Zezo, maquinista da finada RFN, cinco pessoas e três gerações, conversando miolo de pote ao som do teclado das máquinas de escrever Royal que davam os últimos acordes do expediente.
A geração do menino quase adolescente chegou a conhecer o bonde e o motorneiro; o trem e o maquinista; o broca rombuda do dentista e a que era movida pelo pedal; a máquina de escrever e o datilógrafo; a coletoria e o coletor de impostos. Conheci e vi serem varridos da face da terra e transformados em peças de museu que, pela graça de Deus, habita uma memória viva.
A inovação/revolução tecnológica cumpriu o seu papel histórico: "a destruição criativa", hoje, em ritmo alucinante. Fenômeno do nosso tempo a quem Bauman denominou "modernidade líquida" e que o alemão Klaus Schwab enxerga como A Quarta Revolução Industrial, livro em que o autor define com muita originalidade a substituição do capitalismo pelo "'talentismo', sistema econômico com base no talento e não no capital".
Éuma necessidade vital perceber o tempo passando na janela, especialmente, os novos gestores municipais recém-eleitos. Prefeitos novos, ideias novas? Eis uma questão pertinente.
Ouso propor três eixos estratégicas com enorme vigor cultural, capazes de enfrentar a implacável "destruição criativa": 1. Gestão digital inteligente em oposição ao reino dos birôs e ao império dos lentos processos burocráticos na era da comunicação online; 2. Gestão meritocrática em oposição ao vício do clientelismo; 3. A governança metropolitana em oposição ao municipalismo vesgo.
Tenho medo da jaula tecnológica; assusta-me a robotização do humano; porém o meu pavor é, por estúpida inadaptação dos governos às mudanças, fazer companhia aos dinossauros em algum parque jurássico....em obras.
Desde o dia 14 de maio de 1999, coordeno o Conselho de Voluntário(a)s da AACD/Recife que cuida de crianças (e adultos, no caso de amputados) muito pobres com deficiências graves e irreversíveis (malformação congênita, lesão medular, amputados, paralisia cerebral, distrofia neuromuscular, mielomeningocele e microcefalia). A unidade atende cerca de 600 pacientes/dia, em seis especialidades médicas, contando com 160 profissionais e 280 voluntários.
Ali, tenho recebido as mais profundas lições sobre a vida na sua ampla e complexa dimensão. Os pacientes me ensinaram o valor da vida diante de impedimentos, em princípio, excludentes de uma participação social plena e igualitária. Digo, em princípio, porque todos os cuidados terapêuticos buscam integrar os pacientes ao mundo que, somente em 1975, proclamou a Declaração de Direitos das Pessoas com Deficiências pela Organização das Nações Unidas. Na mesma direção, a lei 13.146 de 9/7/2015 definiu regras com o objetivo de redesenhar ambientes acolhedores e inclusivos para estas pessoas.
A segunda lição vem do que denomino “profissionalismo amoroso”, testemunha que sou da forma como são tratados por competentes profissionais e dedicados voluntários.
A terceira lição me é dada pelo suporte das famílias, em especial, pelo amor incomensurável das mães que comemoram o simples gesto de a criança se alimentar com autonomia.
De repente, defronto-me com os Jogos Paralímpicos de 2016 com 176 países participantes, 4500 atletas, 526 eventos de 27 modalidades, um espetáculo universalmente consagrado, cuja semente foi plantada pelo judeu Ludwig Guttman, neurologista, nascido na Polônia, refugiado da Alemanha nazista e do furor genocida, para revolucionar o tratamento de lesões na espinha, utilizando, em Londres, pioneiramente, a prática de esportes na recuperação de mutilados da Segunda Guerra.
Em 1948, Guttmann abriu um novo capitulo da história ao promover uma competição de arco e arremesso de dardo para seus atletas (16 homens e mulheres), em cadeiras de rodas, nos jardins do hospital de Stoke Mandeville, no mesmo dia em que o Rei George V assistia, em Londres, à abertura da Olimpíada de Verão.
O Brasil brilhou. No encerramento dos jogos, a emoção me empurrava para o recorrente choro quando atravesso os portões da AACD. Sem choro. Então, sorri. O espetáculo ratificava o valor da vida. E todos os heróis, pacientes e atletas, são medalhas de ouro na modalidade superação.
O JC publicou uma preciosa série: História das Eleições do Recife. Fidelidade aos fatos e rigor analítico revelam, às vésperas das eleições municipais, a evolução histórica de uma cidade que, embora mantenha seus encantos naturais, sofre as dores de uma urbanização caótica e desafiadora para a gestão pública.
Com o título “Nos ventos da abertura política”, a matéria (edição, dia 17) foi ilustrada, por ocasião da minha visita ao Coque, por uma foto em que recebi uma rosa das mãos de uma mocinha. O gesto me tocou profundamente. Em meio às condições sub-humanas, meus olhos viram que barraco não é abrigo; o sol é brasa; a chuva é castigo; a lama é pasto que reclama a criança em corpo de anjo. A rosa falou.
Aquele Recife não era totalmente desconhecido do menino suburbano, criado na paisagem social miscigenada da Torre, Zumbi, Cordeiro; nos campos do Arte da Torre, da Campina, do Campo do Mecânica, onde pobres e remediados, estudantes, operários e desocupados, alheios à luta de classes, buscavam, em peleja meritocrática, o gol consagrador do futebol vitorioso.
Curioso: havia os muito pobres, porém a face da miséria era gestada nos humildes mocambos de taipa para depois se agravar, sobrenadando nos mangues, em barracos, palafitas e desenhando, atualmente, o contraste assustador entre a imponência da verticalidade arquitetônica e as periferias de todas as carências.
Quando Prefeito biônico, saí às rua e não busquei, apenas, legitimidade política: atendi um imperativo de consciência do peladeiro e caçador de goiamum que viu de perto as desigualdades sociais. E a presença, como governante, era uma denúncia social e claro compromisso com as políticas públicas que coloquei em prática.
Lá no Coque, foi instalado um dos 28 barracões da Prefeitura, em bairros periféricos, que realizavam obras de urbanização e assistência social, inclusive, de onde saiu o então estudante de medicina Eduardo Simões que, tocado por aquela tragédia social, é, hoje, PhD em saúde pública, professor nos EUA e uma das maiores autoridades mundiais sobre o assunto.
Jamais esquecerei: a oferta da rosa veio sem os espinhos da vida sofrida. Na inauguração do Centro Médico Ermírio de Moraes, na gestão Roberto Magalhães, uma bonita jovem, vestindo a brancura impecável de enfermeira, aproximou-se e falou baixinho: “Eu sou a menina que lhe deu a rosa quando o senhor esteve no Coque”. A rosa sorriu.
Acompanhar o noticiário nacional e internacional produz a sensação de um pesadelo. Pesadelo distinto do sono agitado e assustador que se apaga quando a gente acorda. Na vida real, repetem-se, ao vivo e em cores, cenas chocantes: a fria decapitação de pessoas, hordas famintas de refugiados, sangrentas "limpezas étnicas", maus tratos infligidos às criaturas vulneráveis (pobres, crianças, mulheres, idosos) e, para culminar, eis que surge a crudelíssima modalidade do estupro coletivo. Para completar o cenário de horror, recorrentes e escandalosas imagens expõem a monumental crise brasileira.
O impacto me leva à seguinte indagação: onde começam e onde terminam civilização e barbárie? Segundo Freud, a civilização humana significa “tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais”, e exemplifica: “o primeiro humano que insultou seu inimigo, em vez de atirar-lhe uma pedra, inaugurou a civilização”.
Percebo que não hádicotomia entre civilização e barbárie: a barbárie habita o interior da civilização o que impõe uma luta constante para vencê-la. São polos de um mesmo processo. E neste sentido, invoco o grande historiadorToynbee: “uma civilização éum movimento. Não uma condição; uma viagem, não um porto”. Para Ortega Y Gasset; “civilização é, antes de tudo, vontade de convivência”.
Ao se mover, a civilização produz um tecido valioso, de complexa conceituação, a cultura, que revela a dinâmica de valores e contravalores agregando ou dilacerando o seu destino. Percebê-la, vale mais do que a discussão sobre a existência ou extinção de um ministério.
No ponto em que chegou a política brasileira, o padrão dos valores republicanos –decência no trato da coisa pública em contexto democrático – parece ameaçado pela força de uma contracultura que se desdobra em duas vertentes: a cultura da transgressão e a cultura da razão cínica.
Apesar da profundidade das crises, emerge a esperança que não se esgota na discussão sobre a extensão da operação Lava-Jato. O cidadão brasileiro anseia pelo permanente combate àdelinquência dos agentes públicos e que, do episódio, seja extraída a institucionalidade capaz de aperfeiçoar o sistema político e deitar raízes de uma civilização democrática.
Tudo no Brasil égrande. Nãoé figura da linguagem empolada do nosso hino. Quem duvidava botou a viola no saco a partir do momento em que o processo de impeachment expôs nossas entranhas. Comecemos por dois grandes passivos e para concluir com um grande ativo que pode redesenhar o futuro do país.
O primeiro passivo éo estrondoso fracasso de modelo político chamado não sei lápor quêpresidencialismo de coalização. Este arranjo político se presta para tudo que não presta menos para viabilizar atão decantada governabilidade. Os números não mentem: de Collor a Dilma houve 132 pedidos de impeachment sendo que, em menos de 25 anos de governos democraticamente eleitos, dois foram apeados do poder. Das duas, uma: ou a lei (anos 50)éexageradamente permissiva ou o sistema éexageradamente vulnerável.
De outra parte, a coalização ou cooptação entre o Executivo e o Legislativo dependem, na prática, de 28 partidos “representados” no Congresso dentre 34 registrados no TSE, sendo que, dos 513 deputados, apenas 35 se elegeram sem utilizar as sobras do quociente eleitoral. Não tem mágica: o caminhoé buscar soluções com a mentalidade de quem criou os problemas.
O segundo passivo éuma economia em frangalhos: -3,9% do PIB; 10,9% de desemprego; 142 bilhões de déficit fiscal e 9,3% de inflação. O Estado quebrado e uma cultura política viciada em Estado. Difícil mudar.
Para mudar, reformar, éonde entra o nosso grande ativo: uma sociedade ativa, o clamor das ruas e o respeito ao funcionamento das instituições. No entanto, nada émais difícil do que reformar. Ensina Maquiavel: “Deve se considerar que não hánada mais difícil perigoso e de resultado mais incerto do que introduzir novas leis, porque o introdutor tem inimigos todos aqueles a quem aproveitam as antigas e como frouxos defensores quantos viriam a lucrar com as novas”. Traduzindo: reformar faz adversários àvista e aliados a prazo.
O prazo é curto. Para restaurar o valor da confiança entre representantes e representados, o Presidente Temer fez a opção pragmática por um governo congressual de resultados. A responsabilidade política de todos édo tamanho do Brasil.