Nem dissimulado, nem oblíquo. O olhar que o espetáculo “Eu Capitu” lança sobre as questões de família, relacionamento e gênero é tão franco e contundente, quanto redentor. Escrita, montada, produzida e realizada por uma equipe majoritariamente feminina, a peça chega ao Recife nos próximos dias 19 e 20 de maio, na Caixa Cultural, logo após sua estreia no CCBB do Rio de Janeiro, no mês passado, onde foi sucesso de público e crítica.
O roteiro vai buscar no clássico Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis e publicado nos idos do século 19, a personagem Capitu, plasmada no imaginário literário e simbólico brasileiro, para ambientá-la e costurá-la, em novas narrativas e perspectivas, na imbricada trama do tecido social dos dias atuais.
##RECOMENDA##Com texto de Carla Faour e direção de Miwa Yanagizawa, a montagem, em vez de revisitar a obra machadiana, recebe sua visita, servindo à protagonista generosas porções de modernidade e verniz civilizatório. Em cena, mais mulheres: Flávia Pyramo e Marina Provenzzano contam a história de Ana, adolescente diante dos dilemas e dores ainda tão típicos na dinâmica familiar brasileira, como os relacionamentos abusivos. Enquanto administra o ruidoso fim do casamento dos pais, a menina inicia a leitura do clássico Dom Casmurro, recomendado como atividade escolar.
Mergulhada na obra, em busca de cenários mais amenos que os de sua própria vida, Ana começa a borrar as divisas entre realidade e ficção. Passa a receber visitas de uma mulher misteriosa, que, ao longo do espetáculo, o público descobre tratar-se de Capitu. “No texto, o universo todo está na perspectiva desta menina, que sai da infância e entra na adolescência, um momento de extrema vulnerabilidade, e tenta entender as opções da mãe, o que é ser mulher e também o próprio livro de Machado de Assis”, afirma Carla Faour.
A autora assegura voz às mulheres, às reais e às concebidas à imagem e semelhança de escritores homens, num enfrentamento delicado e poético a um mundo de narrativas ainda eminentemente masculinas, tanto nos espaços públicos de poder, de produção e fruição artística, quanto na esfera privada e nas dinâmicas familiares, que convulsionam à luz de novas perspectivas de celebração do amor, do poder e da liberdade. “Logo de início, entendi que não queria uma peça realista. Se o assunto era muito duro e pesado, eu queria falar de uma forma doce e lúdica, com a criação de um universo simbólico e metafórico”, acrescenta Carla.
A direção sensível e precisa de Miwa Yanagizawa, construída a partir do diálogo intenso com o elenco feminino, reforça esse convite à reflexão e às transformações de gênero. “Nos interessa instigar o olhar da plateia, convidá-la a imaginar outras possibilidades narrativas, tomar consciência das coisas se valendo de mais de uma perspectiva. Portanto, juntas, levantamos questionamentos e nos apropriamos deles para desdobrá-los em vez de buscar soluções definitivas: é mais sobre apreciar fazer mais perguntas e dar abertura para uma cena menos linear e acabada em que a pessoa que assiste também colabora, na medida em que dialoga com o espetáculo fazendo uso de seus poderes de observação, raciocínio, imaginação e compreensão, tornando-se também uma intérprete”, conclama a diretora, recentemente premiada com o APTR de Melhor Direção por ‘Em Nome da Mãe’ (2022) e ‘Nastácia’ (2019), que também venceu o Prêmio Shell de Teatro.
Miwa foi convidada a participar do projeto pelo produtor Felipe Valle, também idealizador do espetáculo, depois que ele testemunhou, indiretamente, um episódio de violência doméstica em que não conseguiu intervir e teve a denúncia recusada pela polícia. O sentimento de impotência o conduziu, intuitivamente, de volta ao imaginário de “Dom Casmurro”, que acabou relendo, com olhos de agora, e percebendo toda a violência contida no clássico. “Somente em uma segunda leitura consegui entender que era preciso olhar para aquela história com outros olhos e isso só seria possível com esta equipe de criação majoritariamente feminina. Eu trabalhei este livro em sala de aula por anos e hoje consigo perceber como é necessário analisá-lo por outro prisma, tentar, de alguma forma, entender essa história do ponto de vista da Capitu e como isso se relaciona com a realidade de hoje, ainda em 2023”, pondera o produtor.
O espetáculo tem patrocínio da Chesf, através da Lei de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura. O Recife é a segunda parada do projeto, que estreou no mês passado, no Rio de Janeiro, aclamada por público e crítica.
Sinopse
Desde pequena, Ana tem por hábito se isolar em um mundo imaginário como forma de fugir dos problemas que enfrenta em casa. Sua mãe, Leninha, vive um relacionamento abusivo com o marido. A tensão doméstica acaba por refletir no rendimento escolar da menina, que precisa tirar boas notas em Literatura para não repetir o ano. A prova final vai ser em cima da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. No entanto, a leitura afeta diretamente a garota, que passa a enxergar pontos em comum entre o livro e sua vida.
Em seu refúgio fantástico, Ana começa a misturar ficção com realidade e recebe a visita de uma mulher misteriosa, que tem o rosto parecido ao de sua mãe. Aos poucos descobrimos que esta mulher é Capitu, a personagem ícone da obra machadiana. Nesses encontros, Ana dá voz àquela mulher que só conhecemos através do olhar masculino. A improvável ligação entre elas serve à menina, que está entrando na adolescência, como um rito de passagem para o universo feminino adulto, em que ela começa a entender o que significa ser mulher num mundo narrado por homens.
Serviço
Eu Capitu
Dias 19 e 20 de maio de 2023, às 19h
Caixa Cultural Recife: Av. Alfredo Lisboa, 505, Bairro do Recife, Recife
Classificação: 14 anos
Duração: 80 minutos
Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia), à venda na bilheteria da Caixa, a partir de 16/05, de segunda a sexta, das 10h às 20h