A segunda-feira de Carnaval guarda espaço para um dos eventos mais tradicionais da folia recifense: a Noite dos Tambores Silenciosos. É quando diversas nações de maracatu de baque virado se encontram no Pátio do Terço, localizado no Bairro de São José, região central da cidade, para uma celebração que mistura os batuques profanos aos toques sagrados da religião de matriz africana. O momento homenageia a ancestralidade negra e funciona também como uma prece às suas divindades para que o Carnaval seja de alegria e de paz.
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Mundialmente famosa, a Noite dos Tambores Silenciosos atrai turistas de toda a parte além dos brincantes de maracatu do Recife. A festa foi idealizada na década de 1960, por uma mulher, Maria de Lourdes Silva, mais conhecida como Badia. Neta de escravos, ela foi moradora do Pátio do Terço até o fim de sua vida e partiu dela a ideia de lembrar os negros escravizados - muitos que passaram por aquele lugar na rota do comércio escravagista -, que morreram sem conhecer o Carnaval.
A ideia de Badia ganhou corpo com a ajuda de dois homens, o jornalista Paulo Viana, e o advogado Edvaldo Ramos. A princípio, o evento era encenado pelo grupo de teatro Equipe, no chão, à porta da Igreja do Terço, e não tinha o caráter religioso que possui hoje. Mas com o crescimento da festa e o forte potencial turístico visto nela, sua dinâmica foi mudando ao longo dos anos. “Foi criando curiosidade e um pouco de interesse porque onde rola dinheiro você sabe que as coisas se expandem. Tanto é que teve um ano que a prefeitura botou arquibancadas no Pátio e ficou estreito para os maracatus se apresentarem. Mas, também, só foi esse ano porque eles viram que nem deu lucro e nem deu certo mesmo”, relembra Maria Lúcia Soares dos Santos, filha de criação de Badia.
Dona Lúcia mantém viva a memória da mãe. Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens
Atualmente, Dona Maria Lúcia, de 72 anos, continua morando na casa que foi da mãe, dando continuidade ao seu legado. A herança vem de longe. Badia também foi criada, naquele mesmo endereço, por outras duas mulheres negras, conhecidas como Tias do Axé: “duas irmãs a qual a mãe veio da África fugida no porão de um navio”. Elas não tiveram filhos e acabaram assumindo a criação de Badia após a partida de sua mãe biológica: “Quando a mãe de Badia morreu, Sinhá assumiu Badia e Iaiá ficou como tia e fizeram uma outra família”. Todas elas sobreviviam lavando roupa e jogando búzios, aliás, a casa também tinha espaço para a adoração de orixás uma vez por ano apenas, no mês de outubro.
Badia também costurava e era responsável por vestir grande parte das agremiações carnavalescas do Bairro de São José. “Todo ano nascia uma e de todas elas, ela foi madrinha”, diz Lúcia. Sua dedicação e apreço pela folia momesca, inclusive, lhe rendeu o título de Dama do Carnaval, e ela chegou a ser a homenageada do Carnaval do Recife em 1985. Além de ter idealizado a Noite dos Tambores Silenciosos, Badia também teve participação na fundação do Galo da Madrugada e fundou a troça Coroas de São José, na qual desfilava nas quintas-feiras pré-carnavalescas a bordo de um jipe. Hoje, nas tais quintas, o Pátio do Terço recebe o Baile Perfumado, prévia criada em sua homenagem.
O apreço de Badia pelo Carnaval ficou perpetuado em toda a família. No período, Dona Lúcia costuma receber em sua casa turistas que buscam conhecer melhor a história de sua mãe e também os brincantes que precisam de apoio. “A casa aqui é aberta o Carnaval todo. Todos os maracatus entram aqui pra ir no banheiro, trocar a roupa. Abro a porta de muita boa vontade, se der pra dar um lanche eu dou, e tô aqui. Quando a prefeitura precisa de mim estou presente, não cobro nada, mas também não ganho nada”.
A casa de Badia, construída por escravos, é tombada pelo IPHAN. Foto Arthur Souza/LeiaJàImagens
A filha de Badia lamenta o descaso e o esquecimento com os quais a história de sua mãe é tratada. A casa em que mora com o marido e o filho, Leandro Soares, é a única a servir, ainda, como residência no Pátio, tomado pelo comércio. Tombado em 2014 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial brasileiro, o imóvel - construído por escravos - precisa de reparos específicos tanto por sua estrutura muito antiga quanto pelo tombamento que impede que os proprietários mexam nela.
Segundo Lúcia, o telhado acometido por uma praga de cupins precisa ser restaurado mas ela não consegue ajuda nem autorização necessárias para trocá-lo. “Tenho três ofícios pedindo socorro à prefeitura. Quando eu comecei a ‘bulir’ na casa veio um cidadão que tem interesse na (compra da) casa e me denunciou que estava modificando a casa, aí veio a Fundarpe. Eu fui lá na Fundarpe, mostrei os ofícios e nada. Se eu não tenho conhecimento e não sei falar, eu não tava aqui não, tava embaixo do viaduto. Desde que Badia morreu em 1991 que peço socorro e nunca fui socorrida”.
Para manter a casa, Lúcia e a família tocam um restaurante, que funciona de segunda a sábado vendendo almoço comercial. Leandro complementa a renda vendendo galeto. Sem ajuda externa, os três se esforçam tanto para sustentar o imóvel em pé quanto para manter viva a memória de Badia. “O espaço é rico, essa casa foi a primeira casa construída em Pernambuco, ela tem mais de 200 anos. Só que o tempo foi passando e a cultura foi enriquecendo, mas ainda não está no nível que a gente espera. Deve ser o desinteresse, falta de cultura”, lamenta Leandro.
Memória de Badia
Dona Lúcia e o filho Leandro mantém a casa com a renda do restaurante. Foto Arthur Souza/LeiaJáImagens
A herdeira de Badia ainda sonha em transformar a casa da Dama do Carnaval em um ponto de referência da cultura negra em Pernambuco. Entre os projetos, estão a abertura de um memorial, um espaço cultural e de formação, com cursos de culinária e cabelo afro, e um restaurante afro. Leandro diz que todos os planos estão “no papel mas não tem o interesse de autoridades, de chegar junto com patrocínio”.
Já Lúcia, segue confiando em sua fé nos orixás e no esforço da sua família para concretizar os sonhos. “Tudo que eu sei hoje em dia eu aprendi com ela. As lembranças, muitas estão nessa casa, eu tô aqui lutando pra sobreviver, zelar pela casa e pelo nome dela e das velhas (Sinhá e Iaiá) também que partiram. Antes de morrer eu quero deixar aqui um restaurante afro, pra ficar uma lembrança firme dela e da família dela”.
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