Registro de macaenses reunidos do acervo da família Roliz. (Alessandra Roliz/Cortesia)
##RECOMENDA##
Três de setembro de 1942. A mais longa das estações do ano macaense, o verão, propõe à península chinesa adversidades climáticas como trovoadas, chuvas intensas, altas temperaturas e a até possíveis tempestades tropicais. Assim estava Macau no dia em que nasceu Alberto Carlos Paes d’Assumpção que, desde cedo, conheceu as dificuldades da cidade. “Lá existiam poucas oportunidades e muita pobreza. Por isso, muitos macaenses vieram ao Brasil, foi o caso de meu pai. Ele chegou ao Rio de Janeiro formado em engenharia, médico tradicional chinês e mestre de karatê”, conta Silvana D’Assumpção, neta de Alberto, que ficaria conhecido como Acaio, seu “nome chinês”, o criador do bem-sucedido método homônimo de massagem para a coluna.
Acaio foi um dos possíveis 30 mil macaenses, número sobre o qual não há consenso, que deixaram a terra natal no século XX, segundo coloca a pesquisadora Andréa Doré, em seu artigo “Os macaenses no Brasil: o cerco se mantém”. O fenômeno migratório ficou conhecido como diáspora macaense e teve o Brasil como um dos destinos favoritos, e seus descendentes agora lutam para manter a cultura ancestral viva.
Ao chegar no No Rio de Janeiro, em 1971, Acaio reencontrou amigos e conhecidos de Macau, com destaque para o sensei de Karatê Luis Pedruco, um precioso facilitador de sua adaptação no Brasil. “Assim que chegou ao país, meu pai deu uma festa para a comunidade macaense. Foi no evento que ele conheceu minha mãe, Ielva Chrockatt, que era brasileira, mas já tinha boas relações com a comunidade oriental por ser madrinha de gêmeos de um casal de chineses”, conta Silvana. Aos 29 anos, Acaio, como tantos outros conterrâneos homens e solteiros, começa a constituir família no Brasil, amparado pela estabilidade oferecida pelo emprego de desenhista projetista na Natron Engenharia.
“A primeira diáspora chinesa ocorreu durante a década de 1950, quando algumas pessoas que tinham uma certa escolaridade obtiveram licença para trabalhar em países com Estados Unidos, Argentina e Brasil. O que explica este movimento é uma política iniciada pelo Governo Vargas, que se dava muito bem com a China Comunista”, explica Marcos de Araújo Silva, pesquisador associado ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia de Lisboa (Cria).
No Brasil, Acaio criou método próprio de massoterapia. (Silvana D’Assumpção/cortesia)
A transformação do desenvolvimentismo em palavra de ordem no planejamento das políticas públicas brasileiras a partir da Era Vargas aguçou o interesse do país nos talentosos e meticulosos engenheiros chineses. “Em Pernambuco, por exemplo, eles receberam autorizações para estudar a diversificação agrícola do Estado e executar as reformulações urbanas que o governador Agamenon Magalhães queria fazer no Recife”, acrescenta Marcos Araújo. Na pequena Macau, uma península colonizada por Portugal, tais oportunidades, no entanto, não eram tão comuns.
De acordo com Débora Lopes, mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), embora não haja uma data precisa de quando os navegadores lusitanos chegaram à cidade, sabe-se que eles foram atraídos para lá no século XVI, na tentativa de ocupar um ponto comercial estratégico, próximo à bacia onde desagua o Rio das Pérolas e da cidade de Cantão, um dos grandes centros comerciais da China, maior potência da economia asiática, mas muito seletiva em suas relações comerciais. “Macau era um entreposto comercial que surgiu a partir de um acordo entre portugueses que ali se assentaram e o império chinês. Esse navegadores serviam como intermediários para o comércio com o Japão, o que era proibido aos chineses”, comenta.
Macau era apenas uma vila de chineses e portugueses. (Débora Lopes/cortesia)
Logo os comerciantes chineses, desejosos de adquirir as mercadorias de fora, bem como exportar as suas, começaram a frequentar a cidade. “Macau era simplesmente um local onde os navios chegavam e trocavam as cargas”, avalia Débora. Para quem vivia na Vila, no entanto, a vida costumava ser pobre como a do resto da majoritariamente agrária China, com a diferença de que ali nada era produzido.
De pai para filhas
Pupilo de Karate-Do do mestre Lei Lau, Acaio conciliou a engenharia com a difusão do estilo Seigokan no Brasil, fundando, em 1977, a Federação de Karate-Do do Estado do Rio de Janeiro, na qual exerceu o cargo de Diretor Técnico até 1982. Médico tradicional Chinês desde 1965, passou seus conhecimentos na área às filhas. “Meu pai sempre foi muito presente em relação aos costumes e tradições familiares, então nós comíamos comida de Macau, nunca perdemos o contato com os parentes e brincávamos de jogos de lá. Desde os três anos, ele me ensina sobre o tratamento de desvios e rotações da coluna vertebral, no qual se aperfeiçoou”, conta Silvana, que afirma já ter atendido mais de 40 mil pessoas na área.
Silvana e o marido representando Macau no Consulado da China. (Silvana D'Assumpção/Cortesia)
Quando Acaio faleceu, em 2015, teve suas cinzas transportadas ao Macau por Silvana, que fez questão de atender seu desejo de ser enterrado ao lado de sua mãe, com a qual nunca deixou de se comunicar por cartas. Como maior herança para os descendentes, deixou o próprio método de massoterapia e o amor pela terra natal. “Minha irmã, Sabrina, também segue o que ele ensinou. Minha filha faz a parte preventiva e foi, aos 21 anos de idade, a mais jovem líder de uma Casa de Macau, organizações fundadas após a diáspora para preservar a cultura da cidade. Não digo que sou carioca, sou macaense do Rio de Janeiro”, orgulha-se.
É nas pessoas que a cultura resiste
Nas páginas amareladas de uma revista guardada por ele mesmo em junho de 1962, Roberto Roliz mira o fotógrafo anônimo elegantemente. Na mesa de seu escritório, ele veste um imponente relógio, gravata borboleta e camisa social, enquanto conta como saiu de Macau como um jovem sonhador para se tornar um empreendedor de sucesso no Rio de Janeiro. “Vim com enorme vontade de vencer na vida”, resume ao dizer qual foi o combustível da viagem.
A reportagem sobre o avô falecido é uma das poucas lembranças que a consultora de gastronomia Alessandra Roliz guarda dele. “Meu avô morreu quando eu tinha 14 anos de idade. O pessoal de Macau não se considera chinês, até certidão de Portugal ele tinha, então sempre foi muito atuante na comunidade portuguesa, sendo um dos fundadores da Casa de Macau em São Paulo”, conta Alessandra.
Roberto Roliz veio tentar a sorte no Brasil e se saiu bem no ramo do comércio de autopeças. (Alessandra Roliz/cortesia)
Irmão de Felisberto, Rigoberto, Valberto e outros sete “bertos”, Roberto tornou-se relativamente conhecido em Macau pelos dotes esportivos. Jogador de futebol e pugilista, veio tentar a vida no Rio de Janeiro no ano de 1949. “Aqui chegando, empreguei-me inicialmente na White Martins e logo depois na Organização Flornhoff [...] Foi nesta grande firma que verdadeiramente fiz meu aprendizado e aprendi a me estusiasmar-me pelo brasil e pelos brasileiros”, conta ele mesmo à revista.
No Rio, apaixonou-se pela brasileira descendente de alemães Ingborg Iracema, cuja família curiosamente buscava batizar seus membros com um nome de origem germânico e outro indígena brasileiro. Contratado para representar a inglesa Feroso SA, abriu mão do emprego anterior e montou a própria firma, intitulada “Roberto J Roliz Representações”, que aproveitaria o embalo da vindoura fase de implementação da indústria automobilística nacional. Restringia-se, consequentemente, a importação de peças estrangeiras. “Mas era uma luta árdua [..] conseguir que o cliente aceitasse e comprasse as primeiras autopeças de fabricação nacional. Eu saía carregado com amostras. E a prova está na exportação de nossas peças para vários países estrangeiros”, relata Roberto.
Alessandra Roliz e amigo servem almoço típico na Casa de Macau do Rio. (Alessandra Roliz/cortesia)
Cicerone de novos macaenses que chegavam no Brasil, o receptivo Roberto plantou na neta o gosto por abraçar os conterrâneos. Alessandra é diretora sócio-cultural da Casa de Macau do Rio de Janeiro. “Nossa proposta é a de retomar as coisas de onde nossos antepassados deixaram. Nosso objetivo é trazer os mais jovens, já nascidos no Brasil, para perto da cultura e do convívio dos mais velhos, acho que eles têm uma memória de uma Macau que já não existe”, comenta.
Pela “memória que não existe”, Alessandra se refere às lembranças da pequena Vila que, agora, é melhor conhecida na Ásia como uma espécie de “Las Vegas oriental”, que tem como principal atividade o turismo e setor protagonista os cassinos de luxo. No lugar de casebres e vias não-pavimentadas, arranha-céus costumeiramente comparados aos de Dubai e ruas apinhadas de gente de todo o mundo. “A radical transformação de Macau se deve à abertura comercial de 1978, quando Ben Chao Kin abriu a economia da China para o mercado internacional, que passou a ser o que podemos chamar de comunismo de mercado”, esclarece o pesquisador Marcos Araújo. A partir desta medida, teve início uma segunda onda migratória no país, associada ao processo de transnacionalização dos produtos “made in China”. “Produtos eletrônicos chineses passaram a ser exportados e muitos trabalhadores migraram para outros países. Em São Paulo, o bairro do Saara recebeu muitos deles. No Recife, alguns se acomodaram no mercado de São José”, conclui.
Ainda mais pulverizada dentro e fora da cidade, a cultura de Macau passou a depender ainda mais das Casas de Macau, espalhadas em todo o mundo. Identificada com os valores culinários da península, Alessandra teve acesso a um documento com receitas datilografadas, em 1946, por outra cozinheira interessada em mantê-las existindo. Com o material e a ajuda dos mais velhos na Casa de Macau, ela reproduz receitas tradicionais para os almoços da entidade. “A refeição é algo muito forte para o macaense. Nossa comida é uma mistura do que se come em Portugal, na China e em outros países orientais, como a Índia. Tem um sabor em geral agridoce e de bastante personalidade”, exalta.
Nos encontros mensais, Alessandra precisa lidar ainda com os “pitacos” dos mais velhos. “Às vezes, a mesma receita é feita de formas diferentes em cada família. É muito rico. Preservar nossa cultura é manter a comunidade unida”, conclui.
Memórias de uma refugiada
Diferentemente de Acaio e Roberto, para a maior parte dos macaenses migrantes, que não tinham diploma, contudo, as coisas foram mais difíceis. A pesquisadora Andréa Doré lembra ainda que o estatuto de refugiado, estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1961, inclui o “temor” como critério. “Os conflitos vividos em Macau entre nacionalistas e comunistas expulsaram famílias bem estabelecidas no território. Muitos portugueses de Xangai que hoje vivem no Brasil fazem parte desse grupo”, escreve.
Roberta deixou a China comunista em um navio da Cruz Vermelha, rumo ao Brasil. (Reprodução/Facebook)
Hoje pensionista aposentada de 71 anos, Roberta Roliz Maher tinha apenas quatro anos quando saiu de Xangai rumo ao Macau. “Meus avós maternos e tanto maternos e paternos nasceram em Macau, que era muito pequeno e pobre. Como não conseguiram emprego, foram para Xangai. Só que a China entrou no regime comunista e expulsou quem não era descendente de chineses”, lembra. De origem portuguesa, Roberta é sobrinha neta do prestigiado jesuíta Padre Antonio Roliz, que até hoje dá nome a uma das ruas do Macau. “Na cidade, eu morava em uma vila de casas, tudo de terra batida. Eu tomava banho de barril e o banheiro era muito simples: uma casinha com um buraco no chão, sem vaso sanitário”, comenta.
Com o comunismo, a família, sem ascendência chinesa e fervorosamente católica, se espalhou pelo mundo. “Eu vim cheguei ao Brasil num navio da Cruz Vermelha, depois de quarenta e dois dias de viagem. A memória que carrego é a dos portos dos países pelos quais passei, como Singapura e Moçambique”, afirma. Longe da China, a mãe não se privava de tecer críticas ao regime. “Tinha horror ao comunismo. Ela sempre falava que via os doentes de guerra, tuberculosos, comprando remédios nas farmácias. Me assustava quando ela relatava ter visto caminhões repletos de corpos de pessoas mortas e vivas, algumas delas, ainda gemendo, nas ruas”, diz.
Macau tornou-se um dos principais destinos turísticos da Ásia, principalmente pela fama dos cassinos luxuosos. (Pixabay)
No Rio de Janeiro, Roberta mantém contato com a comunidade macaense. “Faltou dinheiro, mas a gente tem a Casa de Macau do Rio, onde o presidente é meu sobrinho, a Casa de Macau no Canadá, cuja presidente é minha prima, e a dos Estados Unidos, também ligada a parentes meus”, coloca. Com internet e meios de comunicação, a família tenta manter os laços por telefone e whatsapp. “A Casa de Macau organiza algumas viagens para lá. Espero poder voltar no ano que vem”, torce.
Cinco Curiosidades sobre Macau:
1. Macau foi a última colônia europeia na Ásia;
2. Sexta cidade mais visitada do mundo, de acordo com a Euromonitor 2015 international arrivals;
3. É tido como o lugar mais densamente povoado do planeta, precisando ter ser trânsito paralisado para a circulação de pessoas;
4. De acordo com estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI), Macau deverá ultrapassar o Catar como o lugar mais rico do mundo até 2020;
5. Com 50% de sua economia ligada aos jogos de azar, é o único lugar da China em que a prática deles é permitida. A autorização foi concedida na década 1850, por Portugal.