Quem tem filhos sabe que toda mãe precisa ser um pouco artista. Dar conta da atenção aos pequenos, conter as birras, mantê-los banhados e alimentados, além de entretidos, ensinar repetidamente aquelas coisas que para eles parecem relevantes enquanto são crianças mas que farão toda a diferença em algum momento futuro da vida, entre tantas outras milhares de coisas que devem 'funcionar' ao mesmo tempo em que se é indivíduo ativo no mundo e mulher em uma sociedade dominada pelo patriarcado, demanda, de fato, certos traquejos.
Para aquelas mulheres que escolhem a arte como ofício, as artistas de profissão, não costuma ser diferente. A despeito de certa glamourização adquirida por conta das luzes dos shows e dos filtros das redes sociais, mães que sobem ao palco para trabalhar precisam lidar com as mesmas dificuldades - e delícias - encontradas em qualquer lar. É quase como uma comprovação daquele ditado popular que diz que 'mãe é tudo igual, só muda de endereço', mas com um pequeno diferencial que é poder repercutir tudo isso em sua própria arte.
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Lulu Araújo, arte-educadora, cantora e percussionista, mais conhecida como Fada Magrinha, é mãe de Fernanda, uma garotinha de olhos vivos e jeitinho doce, prestes a completar nove anos. Quando a menina nasceu, Lulu se dividia entre aulas de música para crianças e trabalhos junto a artistas pernambucanos, como Renata Rosa e Naná Vasconcelos, e como acontece com quase todas as mães, viu seu ritmo de vida se transformar, até mesmo porque Fernanda nasceu prematura, o que exigiu uma atenção maior. "Quando os filhos nascem, a gente para tudo. Eu acho que não teria condições de continuar se tivesse um ritmo mais frenético", relembra.
Depois que mãe e filha devidamente se acomodaram à nova vida, era chegada a hora de Lulu retomar suas atividades. Mas, então, já não era mais a mesma mulher de antes e as transformações ultrapassaram o âmbito pessoal, invadindo sua área profissional e mexendo com sua sensibilidade de artista: "Quando nasceu a mãe junto com a filha, nasceram várias sensações e muito material que virou uma preciosidade. Tanto que o projeto ‘Fada Magrinha’ nasceu a partir do nascimento dela. Eu cantava pra ela e aquilo foi me alimentando e eu disse: 'como nunca pensei em fazer isso?', era uma coisa tão óbvia, mas só caiu a ficha quando ela nasceu".
Lulu se descobriu compositora após a chegada de Fernanda. A primeira música foi uma canção de ninar surgida no conforto do quarto da menina quando a mãe ia lhe colocar para dormir. Em Soninho Danado, a Fada canta: "...o tempo vai passando e eu vou me entregando, com a mamãe tudo é tão gostoso que a gente sonha embalado assim". E o sonho, para essa mãe e sua cria, se transforma em realidade quando as duas compartilham a música em casa, nos palcos - a pequena já acompanha Lulu em algumas apresentações; às vezes por necessidade mas quase sempre por vontade própria da pequena - e tantas outras coisas rotineiras da própria vida.
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Compor também ficou bem diferente para Mayara Pera depois que ela deu à luz os pequenos Dom, de quase quatro anos, e Martin, de dois. A duplinha alterou o tempo da mãe cantora e compositora e aguçou sua sensibilidade para um tema que a acompanhou durante toda a vida mas que só se evidenciou com a chegada dos rebentos. "A maternidade ajudou a me lembrar o quanto eu sou mulher. Acho que eles me lembraram o quanto eu sou poderosa, e isso me faz ter vontade de colocar isso na minha música", diz a artista.
Ela também precisou adaptar o exercício da escrita às demandas dos filhos. Antes, ela precisava de um tempo só para ela, sem que ninguém a incomodasse, mas depois dos meninos, foi preciso readequar a atividade: "Eles exigem uma atenção e não vão poder esperar, eles não vão entender que eu estou escrevendo uma coisa importante e eu tenho que entender isso também, porque essa fase passa muito rápido. Então a minha fase de compreender é agora, quando eles crescerem eles que vão ter que me compreender. (risos) Eu me adaptei e acho que ficou até melhor".
Na hora de pegar no batente, Mayara conta com uma rede de apoio para conciliar os filhos com os palcos. Com o marido e os dois filhos, ela tem "uma equipe", e a sua mãe também soma no apoio. No entanto, por vezes, ainda é preciso colocar a meninada no meio da música. Eles já acompanharam a cantora em shows e em gravações, e talvez por haver um estúdio improvisado em um dos quartos de sua casa, costumam se sentir bem confortáveis nessas situações - tirando um 'tédiozinho' aqui e ali. Tal qual sua própria mãe parece cumprindo seu papel na maternidade, muito à vontade; algo que ela garante não ter aprendido nos livros que leu durante a gravidez: "É como tem que ser. Não existe fórmula. Quando eu aprendi isso, aprendi a ficar à vontade nesse papel. Mães felizes, filhos felizes”.
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Também não foi em livros que a cantora, sambista, bancária e ativista feminista, Karynna Spinelli, aprendeu que as mães também erram. A artista é mãe de vários filhos - biológicos, "do coração" e de santo - e sua experiência com todos eles lhe deu a segurança e serenidade necessárias para assumir suas próprias limitações e anseios com a caçula, Klara Lua, de 13 anos. Foi com a filha mais nova que ela conseguiu entender algumas minúcias da maternidade que fazem toda a diferença para uma relação saudável com os herdeiros e consigo mesma: "Quando eu tive meus filhos tudo era muito romantizado pra mim. Então, por mais que houvesse dificuldade, eu não me permitia, porque a sociedade não espera isso de você, a sociedade quer mães perfeitas, que se anulam, que desistem das suas vidas em detrimento do filho e do marido. Isso eu só enxergo agora, com quase 40 anos".
Nessa caminhada, a cantora tomou como ferramenta de sobrevivência o feminismo, que além de luta é lição diária em sua casa e acabou por transformar a filha em mais uma "parceira". A mãe que já foi "taxada de mãe solteira", também já viu a própria cria ser xingada na escola por ter uma "mãe cantora". A solução para as limitações da sociedade, elas encontram nessa parceria nutrida no cotidiano de ambas: "A gente passa (preconceitos) até hoje e não é fácil, ser mulher, cantora, mas eu acho que passei bem por esse processo, sempre aparada, com amigos e de uns anos pra cá ativista. Me reconheço como mulher feminista; eu ensino ela a se defender e não deixar isso abalar".
Para dividir com Klara os ensinamentos que a vida lhe imprimiu, Karynna decidiu também convidá-la para participar de seu trabalho artístico. A menina começou a fazer participações cantando no Clube do Samba do Recife, projeto encabeçado pela mãe há quase 10 anos, e também já encarnou sua xará, Clara Nunes, em um espetáculo que homenageou a sambista. A intimidade entre as duas, visível a olhos nus, se intensificou ainda mais após a parceria musical: "A gente tremeu pra entrar no palco, mas foi muito bacana, é um elo que a gente fortalece", diz a mãe derretida.
*Fotos: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
*Ilustração: Fernanda Araújo, filha da Lulu