O documentário Jorge Mautner - O Filho do Holocausto já vem sendo testado em alguns festivais. Onde se deu melhor foi em Gramado no ano passado, no qual recebeu os prêmios de montagem, fotografia e roteiro. Agora, segue para a prova de fogo dos documentários, que é o circuito comercial. Tem tudo para se dar bem, guardadas as proporções de sucesso compatíveis com um documentário, mesmo se musical, o segmento que funciona melhor no Brasil. Somos um país musical, afinal de contas, e isso deve valer alguma coisa.
O retrato de Mautner, pintado por Pedro Bial e Heitor D'Allincourt, é tanto musical como cultural. O que é justo, dada a presença do personagem na vida de cultura do País que, em dada época, se confundia de maneira indissociável com a música e a questão política. Para simplificar, num primeiro momento pode-se dizer que Mautner foi, com colegas talvez mais famosos que ele, como Caetano, Gil, Mutantes e outros, um dos ícones da contracultura brasileira.
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O documentário é hábil em conduzir a biografia do personagem, como se esta tivesse de desaguar, de forma inevitável, nessa figura emblemática dos anos 60 e 70. Filho de família judia fugida do nazismo (daí o subtítulo de "Filho do Holocausto"), com relações familiares um tanto complicadas no Brasil, fazendo com que a vida do menino se dividisse entre duas cidades (Rio e São Paulo) e dois pais (o natural e um padrasto) que, em dado momento, convivem. Enfim, dá-se contexto tanto histórico como pessoal a este Jorge Mautner que seria parte importante do movimento contracultural brasileiro.
E este talvez seja outro trunfo do filme, comercialmente falando. Se podemos constatar que o engajamento político radical dos anos 60 caiu de moda como a calça boca de sino, deve-se reconhecer que a forma de contestação que o substituiu (já nos anos 70) continua em alta. Ainda soletra com clareza a sua poesia e é ouvida pela juventude contemporânea, uma vez que a rebeldia é uma espécie de esperanto do universo teen.
Daí a razão de sentirmos Caetano e Gil muito próximos, como se não tivessem atravessado os anos. E, de fato, não envelheceram; ou envelheceram bem, o que dá na mesma. São iguais aos jovens, apesar das cãs e óculos de leitura. Falam com eles no mesmo nível, às vezes com as mesmas gírias, e não como se recitassem uma sabedoria que só vem com a acumulação de décadas, rugas e cabelos brancos e que, no fundo, não serve senão aos velhos, já que os jovens preferem errar por conta própria. A rebeldia se situa mais na esfera da dúvida e da invenção do que na das certezas magistrais.
Se isso acontece com Caetano e Gil, acontece também com Mautner, que é índio da mesma tribo. E tanto são que estão juntos no único filme feito por Mautner, O Demiurgo, rodado em Londres em 1970, com sobras de negativo de Queimada, o clássico de Gillo Pontecorvo, segundo informa Pedro Bial. Vemos alguns trechos dessa obra underground, comentada na atualidade por seus atores, então jovens exilados em Londres. Todos cabeludos, todos malucos e alegres, praticando uma reviravolta de costumes que não se acomodava muito ao clima austero e verde-oliva do Brasil.
O fato é que Mautner foi ponta de lança de uma geração que empurrou as coisas adiante. Forçou limites e pagou seu preço por isso. Sempre se paga. Dessa fricção, anda-se um pouco mais à frente. Mautner, como outros, é um desbravador de caminhos. Mesmo que o filme não entre em detalhes mais íntimos, adivinha-se uma vida de grande riqueza pessoal, ao lado da realização artística.
Mautner fez shows, gravou discos, foi ao Chacrinha, fez e faz parte do show biz brasileiro. Maracatu Atômico é sua obra-prima, Encantador de Serpentes é engraçada, e Lágrimas Negras, tocante. Foram e são tremendos sucessos. Sua parceria com o violonista Nelson Jacobina (morto pouco depois de terminado o filme) é coisa para durar na memória. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.