*Enviada especial do LeiaJá a Brumadinho (MG)
Na série de reportagens "Brumadinho - O que restou depois da lama", o LeiaJá viajou pela cidade de Brumadinho ouvindo relatos de pessoas afetadas pelo rompimento da barragem.
##RECOMENDA##Paulo observa o que restou de parte do Parque da Cachoeira. Foto: Eduarda Esteves/LeiaJáImagens
Era por volta das 12h30 quando a barragem da Vale, na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, município na zona metropolitana de Belo Horizonte, começava a ceder e se rompia. A nove quilômetros desta região, o comerciante Paulo Alves, 48, estava de serviço em seu segundo emprego, trabalhando com dragas, nas imediações do Rio Paraopeba. O morador do vilarejo Parque da Cachoeira, localizado na área rural da cidade, escapou da avalanche de lama ao receber o telefonema da esposa às 12h35. Embora tenha retrucado com ar de deboche e descrença na afirmação de sua companheira, Paulo juntou seus pertences e foi ao encontro da família na parte mais alta de seu bairro.
“Eu duvidei dela porque sabia que a gente tinha a sirene e em caso da barragem romper, ela ia nos alarmar. Eles, da Vale, nos avisaram assim”, detalha Paulo. Os moradores da região não ouviram nada, nenhum alarme. Quando a onda de lama começou a descer da barragem 1 do Córrego do Feijão levou menos de trinta minutos para chegar no último ponto onde, de acordo com o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, poderia ter feito vítimas, justamente no Parque da Cachoeira (o bairro fica a cerca de seis quilômetros do centro de Brumadinho).
De acordo com o plano de emergência da mineradora Vale, a previsão seria de 24 minutos até o bairro, nas proximidades do Rio Paraopeba, numa velocidade de 80 quilômetros por hora no início do percurso. A trajetória da lama e dos rejeitos seguiram pela área de operações da mineradora, onde estavam instalados escritórios e o refeitório da empresa, ambos devastados. Mais a frente, a charmosa pousada Nova Estância foi soterrada junto com quem estava por lá e mais abaixo também atingiu o bairro do Parque da Cachoeira, antes de adentrar no rio.
Foto: Eduarda Esteves/LeiaJáImagens
Paulo relembra que chegou a observar a lama de aproximando do riacho e das ruas que cortam o seu bairro, mas não dava tempo de avisar a outros moradores da região mais baixa da Rua São Mateus, onde reside. Na visão de Paulo, a tragédia só não foi maior no vilarejo porque era o horário de almoço de uma sexta-feira e muitas pessoas tinham chácaras e sítios de veraneio, frequentavam mais nos finais de semana para fugir do caos dos centros urbanos. “Muita gente procurava o nosso bairro para descansar porque aqui era uma paz, mas também tinham moradores mais humildes na beira do riacho e foi por ali que perdemos cinco pessoas amigas”, lamenta o comerciante.
Como o mar de lama destruiu tudo que estava pela frente, como a vegetação, as casas e outros obstáculos, ao chegar no Parque da Cachoeira já corria mais lentamente, de acordo com o tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros. Apesar do menor impacto, foram dezenas de residências destruídas, mortes de moradores e pessoas que estavam no local e a destruição de um bairro que outrora tinha o som dos passarinhos e o som do correr das águas como porta de entrada.
O mineiro se mudou para a comunidade há cerca de vinte anos e observou a atmosfera do local virar de cabeça para baixo em alguns minutos. A calmaria e a vida pacata foi substituída pelo barulho do motor dos helicópteros que não param de sobrevoar a região transportando os oficiais do Corpo de Bombeiros. O cheiro da vegetação, das plantações de hortaliças e da terra quando chove também foram embora com a lama que invadiu o local.
Foto: Eduarda Esteves/LeiaJáImagens
A avalanche marrom engoliu tudo que encontrou em seu percurso e em algumas localidades a sua profundidade é de mais de 15 metros. Na região mais baixa do Parque da Cachoeira, o cenário é desolador. Veículos, concreto, casas completas, roupas e uma série de objetos agora se misturam ao barro que endurece aos poucos e entristece o olhar de Paulo, ao mostrar e relembrar como era o caminho de um riacho e o formato em que as casas eram uma após a outra. “Restou nada, só essa lama fedorenta e doenças para a gente. Estamos com o psicológico abalado, sem ter apoio e orientação do que devemos fazer, é o pior momento que já passei”, complementa.
Ele conta que para a mineradora Vale, sua família não é considerada como “atingida”, justamente porque a casa não foi destruída e eles não perderam nenhum parente. Mas Paulo, em tom de indignação, busca soluções para tocar a vida já que apesar de estar vivo, seu sustento se foi. O Rio Paraopeba foi atingido pela lama e a mercearia que construiu no terraço de sua casa não dá mais lucro. “As pessoas não vão comprar agora porque ninguém tá em condições de nada, preciso pagar as contas e para isso é preciso vender. Estou a 200 metros da lama e é claro que fui atingido. A minha casa está toda rachada depois desse tormento, quero que a Vale me explique o que aconteceu porque até agora estou em choque”, denunciou.
No decorrer dos dias após a tragédia, medidas de emergência foram anunciadas pela mineradora para conter os danos. Uma dela é a de que moradores, mesmo os que não estavam no local no momento em que o rejeito atingiu o terreno, receberão a doação de R$ 50 mil. Já quem exercia alguma atividade produtiva ou comercial na área vai receber R$ 15 mil. Esses não são os valores da indenização. A medida será aplicada para residências dentro da zona de Autossalvamento prevista no Plano de Ação Emergencial pré-existente. Essa área corresponde a uma extensão de 10 quilômetros partindo da barragem.
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Paulo destaca ainda que procurou a empresa para negociar na base de apoio que foi montada em um campo de futebol, na entrada do bairro, mas ouviu dos responsáveis locais que sua casa estava fora dessa zona e por isso ele não tinha direito a nada. “Hoje a gente perdeu toda a liberdade do nosso bairro, os nossos peixes, meus clientes, amigos”, conta. Apesar da situação, ele ainda acredita que os órgãos competentes vão tomar as medidas cabíveis para tentar sanar a situação de tragédia que Brumadinho se encontra. “Eu sei que a Vale não vai fazer nada. Ela não pensa nas pessoas e nunca pensou. Mas as autoridades, como o Ministério Público e até com o presidente da república eu conto, nós lutamos para colocar ele lá e espero que resolva isso para nós”, frisou.
Em reuniões na associação do bairro, moradores se organizam para reivindicar tudo que lhes foi imposto e tirado. O mau cheiro, o aumento da quantidade de mosquitos na região, a impossibilidade de produzir nas terras, todas devastadas pela lama e o o medo por se contaminar com a água do Rio Paraopeba. Embora muitas casas ainda estejam de pé por não terem sido alcançadas pelos rejeitos de minério, permanecer no local é traumático e carece de infraestrutura ao redor.
“Parado no tempo”, é assim que Paulo define seu estado atual. Se antes, numa semana boa de seu comércio, ele lucrava cerca de R$ 3 mil, hoje o faturamento diário não chega a R$ 30. Ele observa que amigos e vizinhos que não tiveram suas casas destruídas não querem mais morar na região, justamente por não acreditar na recuperação da atmosfera do Parque da Cachoeira. A sua esposa até tentou convencê-lo a se mudar durante uns meses para algum interior de Minas Gerais, mas ele é prefere ficar na localidade por causa de seu comércio e para lutar pelos direitos infringidos pela mineradora.
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“É de partir o coração encontrar os segmentos dos corpos”
Enquanto caminha pela lama densa que pairou no Parque da Cachoeira em busca dos corpos dos que ainda estão desaparecidos, o subtenente do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, Selmo de Andrade, conversa com a equipe para realizar marcações no terreno. Constantemente helicópteros sobrevoam o local para ajudar no translado dos bombeiros, que estão sendo subdivididos em áreas de atuação. No intervalo de seu trabalho, o subtenente conversou com a reportagem e falou sobre o trabalho minucioso dos oficiais para localizar os desaparecidos.
Há mais de vinte anos na corporação, ele também atuou no rompimento da barragem em Mariana, no ano de 2015, mas reitera que não há como se acostumar com esse tipo de resgate. “A gente treina para cumprir a missão e estamos preparados. Mas dói no fundo coração da gente porque somos pais e somos filhos, também temos a nossa família nos esperando em casa”, explica.
Na região do Parque das Cachoeira, no fim da rua da casa de Paulo, o subtenente confirma a informação de que estão sendo encontrados apenas “segmentos” do corpo humano devido ao tempo e a violência com que a lama desceu. “Não temos previsão para encerrar as buscas, vamos conseguir resgatar todas essas pessoas para confortar os seus parentes, temos recursos e estratégias. Vamos até o fim”, pontua.
"De forma alguma a operação de busca aos desaparecidos terá fim agora. Vamos resgatar todos os corpos e dar esse conforto aos familiares", diz subtenente. Foto: Eduarda Esteves/LeiaJáImagens
“Antes eu ajudava a população carente do bairro, hoje venho pedir cestas básicas”
Sentada em uma das mesas montadas na base de apoio da Vale no Parque das Cachoeira, a empresária Maria Fabiane, 35, aceita receber gotas da medicação floral em sua bebida de uma psicóloga voluntária que veio a Brumadinho após a tragédia. Após pingar três gotas em sua garrafa de água, a moradora do Parque da Cachoeira comenta que está tentando tocar a vida, mas os calmantes estão ajudando e teme pelo futuro da saúde psicológica não só dela, como de todos que foram afetados após o rompimento da barragem da Vale.
Ele acaba de sair do contêiner intitulado “equipe Vale”, improvisado para que os moradores possam se reunir com os representantes da empresa e realizarem as necessárias conversas e demandas. Fabiane trabalha no ramo dos cosméticos e se considerava bem sucedida em sua área de atuação. Mas, após o dia 25 de janeiro a vida virou de cabeça para baixo e se antes ela doava cestas básicas e presentes no Natal para a população carente do vilarejo, hoje precisa pedir por auxílio para poder se alimentar, junto ao marido e o filho.
Na reunião que acabou de sair ela solicitou que a Vale, pelo menos, arque com a escola privada de seu filho. “Ele estuda em um colégio bom em Brumadinho e lutei a minha vida toda por isso. Ele não pode ser prejudicado por causa desse crime que fizeram com a gente. Não estou pedindo mais nada, só se não vou ter como pagar pela educação dele se meu negócio dependia das pessoas, e elas morreram quase todas”, avalia Fabiane.
"Não quero que a Vale me sustente, só quero o justo para pagar a escola do meu filho, ele não tem nada a ver com esse crime". Foto: Eduarda Esteves/LeiaJáImagens
A resposta da empresa dos representantes da empresa não foi imediata e ela vai precisar aguardar 48h pelo retorno, já que a mineradora não considera que ela foi atingida diretamente. “Eu agradeço que minha casa está intacta e minha família viva, mas a gente precisa seguir a vida e não sei que caminho vou seguir e se vou conseguir trabalhar ou morar aqui. Tudo é uma incógnita”, complementa.
Ela comenta que não tem como vender seus produtos porque ninguém vai querer comprar nesse momento de dor e reclama ainda das interdições nas estradas, o que implica no maior gasto de gasolina para se deslocar. Fabiane veio morar no vilarejo há três anos em busca da calmaria para criar o filho. “Não queria sair da minha casa, mas quero saber se vou poder continuar aqui, com saúde e lazer”.
O seu marido, que preferiu não se identificar, é membro da associação dos moradores do bairro e relembra que a Vale procurou os representantes do Parque da Cachoeira para fazer uma simulação de fuga, em caso da barragem romper. Realizaram reuniões, visitaram a área e informaram sobre a sirene, que nunca tocou.
O que diz a Vale:
De acordo com a mineradora, o sistema de alerta sonoro é acionado manualmente, a partir de um Centro de Controle de Emergências e Comunicação, com funcionamento 24 horas por dia, que fica localizado fora da área da mina. Mas, devido à velocidade com que ocorreu o evento, não foi possível acionar as sirenes relativas à Barragem I. As causas continuam sendo apuradas. Ainda de acordo com a mineradora, a barragem passava por inspeções quinzenais, que não detectaram nenhuma alteração na estrutura.
“É importante ressaltar que a Barragem 1 estava inativa desde 2016 e possuía todas as declarações de estabilidade aplicáveis, pois passava por constantes auditorias externas e independentes. Havia inspeções quinzenais, reportadas à Agência Nacional de Mineração, sendo a última datada de 21 de dezembro de 2018. A estrutura passou também por inspeções nos dias 8 e 22 de janeiro deste ano, com registro no sistema de monitoramento da Vale. Foram realizados ainda um simulado externo de emergência em 16 de junho de 2018, sob coordenação das Defesas Civis e com o apoio da Vale, e um treinamento interno com os empregados em 23 de outubro de 2018”, trecho retirado da nota enviada à imprensa.
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