“Porque a gente é pobre.”
Débora Conceição da Silva, 31 anos, dona de casa, tem visto pela TV as últimas notícias. Do rapaz alcoolizado que atropelou e matou três pessoas no bairro da Tamarineira, Zona Norte do Recife. Do rapaz alcoolizado que foi preso em flagrante e teve a prisão preventiva decretada um dia depois, estando agora recluso.
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“Porque a gente é pobre”, a mulher continua pensando, matutando como a Justiça parece ter dois pesos e duas medidas. Há um ano e três meses, o responsável pela morte do sobrinho de Débora permanece como sempre esteve: solto. As vítimas do acidente da Tamarineira são advogados, ensino superior completo, o acidente foi em local nobre. Não eram um estudante e uma dona de casa, o local não era a comunidade Entra Apulso, de casas apertadas e coladas umas nas outras. Débora não para de pensar nisso, o que cria dentro dela um sentimento de revolta.
Mas nem ela, nem os outros da comunidade são de esmorecer. Na última terça-feira (28), como forma de protesto, tiraram as poeiras dos velhos cartazes e os expuseram na frente da residência onde o atropelamento aconteceu. São mensagens que pedem justiça. “Será que a lei não existe nesse país para punir com igualdade?”, questiona uma das faixas estendidas na calçada.
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Adriano Francisco da Silva, 19, e Isabela Cristina de Lima, 26, chegavam à casa desta última por volta das 22h30. 13 de agosto de 2016. Um Sandero preto com três pessoas derrapou na curva da Avenida Desembargador José Neves e atingiu o casal de amigos. Isabela ficou presa entre o carro e o muro, morreu no local. Adriano foi arremessado, socorrido, mas não resistiu.
A cena da tragédia naquela rua não é esquecida por nenhum parente da vítima. Isso é de se esperar, mas a memória lateja mais do que se esperaria porque vem em tom de provocação. A comunidade lembra que o Sandero estava com latas de cerveja em seu interior. O motorista, visivelmente bêbado – o que foi atestado posteriormente pela unidade de saúde que o recebeu -, recebia atendimento antes dos que apresentavam quadro mais grave. A mulher que também estava no carro liga para o namorado, que beija ela na boca na frente de todos, enquanto os corpos das vítimas repousam no chão. “A moça ainda disse ‘ainda bem que a morte veio buscá-los de carro’”, lembra Alda Valéria Souza, 53 anos, autônoma, companheira de Isabela Cristina.
Mas não parou por aí. O tal condutor do carro é o empresário Pedro Henrique Machado Villacorta, de 28 anos, que foi socorrido pelos policiais à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Imbiribeira e lá foi deixado, sem custódia, livre. Policiais do 19º Batalhão, responsável pela área, informaram ter recebido ordem do Centro Integrado de Operações de Defesa Social (Ciods) para deixar o local. O motivo dessa determinação nunca foi devidamente esclarecido. A postura impediu que o empresário fosse preso em flagrante.
A comunidade, mostrando um poder de mobilização inesperado, fez uma série de atos cobrando a prisão de Villacorta e pedindo sinalização na via. Em poucos dias, foram oito protestos, com pneus e entulhos queimados. “A gente se juntou com outras comunidades. Enquanto a gente fechava a rua aqui na frente, o pessoal fechava as outras. A gente foi em borracharia, nos comércios, explicava o que era e conseguia pneu, madeira…”, recorda Débora.
As manifestações foram importantes para que os noticiários não esquecessem o fato. A Polícia Civil concluiu que Pedro Villacorta cometeu duplo homicídio doloso. O indiciamento foi acatado pelo Ministério Público. De acordo com a Polícia Civil, o caso está na 1ª Vara do Tribunal do Júri da Capital. Débora conta que Villacorta irá à júri popular, mas que tem recorrido.
A Secretaria de Defesa Social (SDS) abriu uma sindicância para investigar o comportamento de cada policial na noite do evento. A apuração ainda não foi concluída. Em nota, a pasta informou que a sindicância relativa ao sargento José Ricardo Nascimento, a autoridade que determinou a liberação do empresário, está sendo finalizada, com homologação prevista para os próximos dias. No inquérito policial, o delegado Newson Motta destacou que o sargento não soube explicar o porquê da postura fora do habitual, atribuindo o ocorrido a uma “falha conjunta”.
“A gente perdeu o sossego”, resume Débora. Alda perdeu a alegria. Diz que não se diverte mais como antes. A solidão do quarto é mais convidativa do que as conversas animadas mas carregadas de ausência do lado de fora. A avó de Adriano morreu um mês depois do fato, em um quadro de aparente depressão. A mãe dele, que ficou em estado de incredulidade, só conseguiu chorar recentemente. “Ela não vive mais”, conta Débora sobre sua irmã.
O local onde ocorreu o atropelamento foi sinalizado após as várias manifestações. Não houve mais acidentes, como costumava acontecer. Apesar das conquistas e do indiciamento do motorista, os moradores de Entra Apulso estão sempre desconfiados. Se vacilarem, o caso pode ser esquecido. Por isso, o ato de terça-feira. Porque são pobres.
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