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Empregados de uma pedreira instalados em um cortiço em péssimas condições de vida enfrentam as consequências da exploração de sua força de trabalho. A sinopse de “O Cortiço”, clássico da literatura brasileira escrito por Aluísio de Azevedo no século XIX, logo capturou a atenção do estudante Kaio Silva, usuário assíduo da Biblioteca Popular do Coque, uma das comunidades mais pobres do Recife. “Eu preciso de um dicionário para ler, mas é meu livro brasileiro preferido. Acho que é porque ele trata de coisas que tem aqui no cotidiano da comunidade, como crianças brincando na rua, lavadeiras, brigas e vizinhos comprando fiado, por exemplo”, comenta. Aos 16 anos, Kaio conta que já leu, em 2023, 360 livros emprestados pela biblioteca comunitária, composta por um acervo de cerca de 3 mil livros, todos eles doados por seus entusiastas.

Dois deles, a administradora de empresas aposentada Penellope de Moura Silva e seu filho, e o estudante de administração Rafael de Moura, vivem a menos de seis quilômetros do endereço da sede da biblioteca, em um condomínio de classe média no bairro do Cordeiro, na Zona Oeste do Recife. Há alguns meses, os dois cederam cerca de 20 livros para a Biblioteca Popular do Coque. “Minha sobrinha é biblioteconomista e me falou dessa comunidade muito carente, em que os livros seriam bem-vindos. Aqui em casa a gente já tem o hábito de doar alimentos, roupas, móveis e livros. Em cada sorriso de gratidão ou muito obrigada, a gente vê que recebe muito mais do que dá quando faz uma doação”, celebra Penellope.

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Responsável pela maior parte dos livros cedidos pela família, Rafael ressalta a importância dos títulos entregues para sua própria formação como leitor. “São livros que adquiri na adolescência, quando desenvolvi o hábito da leitura e têm uma importância inestimável para mim. Hoje em dia, não aprecio mais essa literatura infantojuvenil, então espero que eles sejam a porta de entrada para muitos jovens no mundo da leitura”, comenta.

Antigo xodó de Rafael, "O Lar da Senhorita Peregrine para Crianças Peculiares", de Ransom Riggs, já foi notado por Kaio e é o próximo alvo de sua lista de leituras. “Queria agradecer, né? Porque você tá fazendo com que uma pessoa que não tem condições de comprar um livro, que provavelmente não tem uma biblioteca perto de casa se não for essa, possa entrar em outro mundo. Viajar sentada. É muito legal isso”, agradece o garoto.

Criado por sua mãe- que não possui hábito de leitura- na comunidade com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Recife, Kaio desbanca até mesmo as teses deterministas que influenciaram o autor de seu livro predileto, criticado por correntes estéticas posteriores por tratar o ser humano como consequência invariável do meio em que vive. Ao lado de Aluísio Azevedo, o garoto elege Machado de Assis e Júlio Verne como os melhores que já leu, mas tagarela com empolgação quando o assunto é sua atual leitura, “...E o vento levou”, de Margaret Mitchell. Com facilidade, Kaio se diverte ao encontrar similitudes entre o clássico da literatura norte-americana e o quadrinho Sin City, que folheia durante a entrevista. “Com os quadrinhos que pego aqui, ensinei minha irmã mais nova a ler. Ela tem 10 anos, então lê os da Turma da Mônica que levo”, comemora.

Antenado, Kaio aponta a escritora Coleen Hoover como um fenômeno entre o público adolescente e cobra mais livros dela nas prateleiras da biblioteca. O garoto, que estuda em uma escola localizada na própria comunidade do Coque, se esforça para convencer os colegas a frequentar o espaço. “Acho que a literatura aproxima as pessoas. Nesse ano, eu trouxe dez colegas da escola para frequentar a biblioteca e eles se apaixonaram pela leitura. Gosto de ver essas pessoas falando de livro, dá alegria ver que influenciei alguém a fazer uma coisa boa”, celebra. Modesto, Kaio se considera o terceiro da turma escolar, mas garante que está pronto para assumir a monitoria da disciplina de português. No futuro, ele pensa em estudar letras ou pedagogia, mas deixa claro que entrar na universidade não é seu único sonho. “Gostaria que as pessoas da comunidade, ao invés de pensar no que vão comer amanhã, possam pensar no livro que querem ler”, conclui.

Dificuldades

Orgulhoso, o articulador pedagógico da Biblioteca do Coque, Ednílio da Silva, conta que Kaio frequenta a biblioteca há dois anos, desde que participou de um dos eventos literários promovidos pela instituição. “A gente tem muitas ações de leiturização, de onde conseguimos prospectar nosso público. Ele participou de uma delas e passou a frequentar o espaço, muitas vezes acompanhado de colegas da escola que ele traz para cá. É um dos frequentadores mais assíduos”, afirma. De acordo com Ednílio, que é nascido e criado no Coque, a biblioteca existe há 16 anos, atravessados a despeito de uma série de dificuldades financeiras e estruturais. “Já tivemos quatro sedes, todas elas localizadas em casas alugadas na comunidade. A gente saiu da última em razão de infiltrações causadas pelas chuvas. Isso provocou a perda de um acervo que também tinha três mil livros”, lamenta.

Com um novo acervo organizado a partir de doações, o espaço sobrevive através com o apoio do projeto Itaú + Leitura, com término previsto para o final deste ano. “Se a gente não conseguir renovar um projeto que permita o pagamento de pessoal, não sei se poderemos manter as atividades. Estamos iniciando uma campanha, em busca de parcerias para poder construir formas de impedir que isso aconteça. Se a gente fechar, vamos perder toda essa estrutura, muito importante para a comunidade”, ressalta Ednílio.

Formação de leitores

Em 2007, um grupo de bibliotecas comunitárias da Região Metropolitana do Recife (RMR) deu início à Releitura- Bibliotecas Comunitárias em Rede, uma iniciativa conjunta para promoção do diálogo entre as instituições.“A Releitura hoje congrega nove instituições dos municípios de Olinda, Recife e Jaboatão dos Guararapes. A princípio, várias delas passavam pelas mesmas dificuldades, a exemplo de falta de conhecimento de gestão, captação de recursos, manutenção e catalogação de acervos. Com a rede, passamos a contar com um fórum que dialoga com o poder público, pois infelizmente Pernambuco ainda não possui uma política pública voltada para apoio e permanência de bibliotecas comunitárias”, cobra.

Sob a batuta da Releitura, o grupo buscou articulação nacional e fundou a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, atualmente composta por 133 instituições de todo o país. “Na rede, nosso foco é estimular a formação de leitores. Por esse motivo, geralmente a gente não aceita doações de livros didáticos, dicionários e enciclopédias, que ficam desatualizados muito rápido e não têm viés literário. Além disso, pedimos que os livros estejam em bom estado, com todas as páginas, sem mofo e sem rasuras, até porque se você empresta um livro rasurado para as crianças, está incentivando essa prática”, ressalta.

Cultura: o oposto de morte

Em 1997, Rogério fez parte do grupo de artistas que decidiu ocupar de forma autônoma a estrutura do antigo Matadouro Municipal Industrial de Peixinhos, um dos grandes responsáveis pelo arruado que fez deslanchar o bairro homônimo, localizado na região limítrofe entre Recife e Olinda. Inaugurado em 1919, o Matadouro funcionou até 1970, a partir de quando se tornara uma espécie de não-lugar, tomado por mato, prostituição e tráfico de drogas. Apenas no ano 2.000, a inauguração de uma biblioteca comunitária transformou em Nascedouro um espaço que parecia vocacionado à morte. “Ela surgiu como um equipamento importante inclusive para os fundadores. A maioria de nós não teve uma boa relação com a escola formal, onde a biblioteca costumava ser tratada como depósito de materiais ou sala de castigo. A biblioteca foi criada para ser o oposto, é o que chamamos de biblioteca viva, que dialoga com outras linguagens artísticas, contando com cineclube e espaço de leitura coletiva”, lembra Rogério.

Sem recursos, o grupo contou com a solidariedade dos moradores do bairro para organizar a biblioteca. As primeiras prateleiras, por exemplo, foram improvisadas em caixas de tomate cedidas por feirantes. “Hoje, a gente conta com cerca de 8 mil livros. Apesar disso, as doações seguem sendo muito importantes para a renovação do acervo”, ressalta Rogério. Nascida e criada em Peixinhos, a fotógrafa Renata Rodrigues atribui à biblioteca uma profunda ressignificação de sua relação com o bairro. “Quando eu comecei a frequentar o Nascedouro, ainda na adolescência, eu mesma reproduzia vários preconceitos contra o bairro, que eu via como um lugar ruim e violento. Ainda é uma comunidade muito invisível, composta por maioria de população negra e pobre. Além disso, fica localizada entre Olinda e Recife, parece que nenhuma das duas prefeituras quer assumir a responsabilidade pelos problemas daqui”, denuncia. Aos 32 anos, Renata deixou de ser apenas usuária, para se tornar doadora da instituição. “É uma forma de agradecer por tudo que esse lugar me proporcionou. Aqui descobri que Peixinhos tem uma cultura forte e uma história muito interessante”, orgulha-se, citando o cantor e compositor Chico Science como um dos ícones culturais revelados pelo bairro.

Cultura de doação

Após a perda do pai, a engenheira civil Patrícia Torquato também escolheu as bibliotecas comunitárias como principal destino para centenas de livros que herdou. “Meu pai sempre nos mostrou que através dos livros a gente poderia conhecer muita coisa e que esse conhecimento precisava ser repassado para outras pessoas.Ele tinha um acervo bem eclético, era um amante de literatura de maneira geral”, afirma. Segundo Patrícia, não houve apego no processo de repasse dos títulos, pois a família já nutria forte cultura de doação. “Sempre fomos uma família estimulada a doar aquilo que a gente não estivesse utilizando. O que a gente ganha com isso é saber que o conhecimento está sendo multiplicado e com isso a educação está sendo ampliada, especialmente para pessoas que não têm condições de comprar um livro”, coloca.

Segundo a Pesquisa Doação Brasil 2022, promovida pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), 84% dos brasileiros realizaram alguma doação no ano passado, dos quais 75% praticaram repasses de bens, materiais e alimentos. Além disso, 48% dos doadores brasileiros fizeram doações em dinheiro, 36% repassaram dinheiro para ONG’s e 26% doaram o próprio tempo, através de trabalho voluntário. “Outro dado interessante é o aumento do valor doado no ano, que passou de R$ 200, em 2020, para R$ 300, em 2022. Esse número representa uma mediana, isto é, o valor que ficaria no meio se a gente fizesse uma reta entre todos os valores doados”, explica a gerente de comunicação do IDIS, Luísa Lima.

De acordo com Luísa, o doador brasileiro não possui um perfil específico, em relação a categorias como classe social, raça, gênero e adesão a uma religião. “A doação está muito enraizada em diferentes níveis e estratos da população”, frisa Luísa. Apesar disso, a pesquisa traz um recorte específico sobre a participação de jovens entre 18 e 27 anos nas doações. “Eles são menores doadores porque têm menos recursos, mas estão mais conscientes em relação ao trabalho das organizações. De forma geral, nossa leitura é a de que a pandemia de covid-19 teve um impacto muito grande na cultura de doação, com uma série de campanhas e iniciativas convocando pessoas e empresas a realizarem doações”, comenta Lima.

Para ela, o aquecimento do debate sobre as doações na opinião pública e nos meios de comunicação é a maneira mais eficaz de difundir a importância de doar. “Quando falamos de cultura de doação, falamos de pessoas que entendem a doação como um ato cívico, que contribui para a transformação dos problemas e combate às desigualdades. É diferente de uma doação pontual, que muitas vezes tem o objetivo de aliviar o sofrimento de alguém. A cultura de doação é quando as pessoas entendem que podem ir além da emergência”, defende.

Espontaneidade e autonomia

De acordo com a professora aposentada do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ester Rosa, as bibliotecas comunitárias têm em comum o fato de que não serem fruto de iniciativas do poder público, mas da atuação de pessoas ou grupos já envolvidos na luta por direitos e melhores condições de vida das comunidades, que colocam em pauta a importância do acesso à leitura. “As bibliotecas comunitárias surgem e se mantêm de forma autônoma. Mesmo quando recebem recursos de editais, elas têm autonomia para gerir a programação ou escolher quem vai trabalhar lá. Outra característica é que normalmente quem atua na biblioteca muitas vezes são jovens, mulheres e vizinhos do próprio bairro, que têm vontade de manter um projeto, mas também precisam ser remuneradas por seu trabalho”, explica.

Coordenadora do projeto de extensão “Bibliotecas Comunitárias na UFPE e UFPE nas Bibliotecas Comunitárias”, que articula alunos dos cursos de letras, biblioteconomia e pedagogia a 13 bibliotecas comunitárias da Região Metropolitana do Recife (RMR), a professora também observa que esses equipamentos costumam surgir como espaços de apoio às tarefas escolares, com acervos inicialmente compostos por livros didáticos e informativos, que, com o tempo, passam a ganhar perfil mais literário. “A gente vê uma predominância de literatura para jovens e crianças, bem como um estímulo para práticas de leitura compartilhada. Em Peixinhos, há um cineclube, enquanto na biblioteca comunitária de Caranguejo Tabaiares há um trabalho com idosas. São bibliotecas que têm o cuidado de atender às demandas dos leitores”, completa.

Uma das bibliotecas contempladas pelo programa “Bibliotecas Comunitárias na UFPE e UFPE nas Bibliotecas Comunitárias”, a Biblioteca Comunitária Inez Fornari- Mangueira da Torre, na Zona Norte do Recife, foi inaugurada em outubro de 2019 com o objetivo de preencher a carência de atividades para crianças e jovens no horário de trabalho das mães. “Aqui temos muitas mães solo, mulheres negras, que precisam trabalhar e não tem com quem deixar os filhos. Eu mesma trabalho das 16h às 00h e uso a biblioteca como uma creche temporária ”, diz a atendente Tássia Andrea da Silva, mãe de Maria Laura Silva, de 10 anos.

A menina frequenta a biblioteca desde os quatro anos de idade e, graças ao contato intenso com a leitura, aprendeu a ler ainda aos seis anos. “Minha mãe me deixava aqui e eu vinha ler com a tia. Aí, um dia, eu juntei as palavras de um livro e comecei a ler. Gosto de vir para cá ficar com as tias, brincando e lendo”, diz Maria Laura.

Composta por apenas três ruas, Mangueira da Torre é lar de 600 famílias e curiosamente não possui nenhuma casa para vender ou alugar. Imprensada entre os edifícios dos bairros da Torre e da Madalena, ambos majoritariamente habitados pela classe média, a pequena comunidade se desenvolveu a partir de casamentos entre membros de quatro famílias, que ao longo de pelo menos cem anos de existência foram construindo moradias para os parentes em seus quintais e garagens. “Aqui não tem problema de violência nem de drogas, todo mundo se conhece. Mesmo assim, a gente não vê ninguém descer dos prédios para ajudar nossa biblioteca, que é o único equipamento cultural que temos”, acrescenta Tássia.

Uma das responsáveis pela biblioteca, fundada com o apoio das lideranças comunitárias, ela ressalta que a biblioteca só conta com o apoio dos bolsistas da extensão da UFPE para manter suas atividades, motivo pelo qual não consegue se manter aberta todos os dias. “Os livros sempre são bem-vindos, mas o que a gente está precisando muito de voluntários para fazer atividades com as crianças, sejam leituras, brincadeiras e ou sessões de cinema”, cobra Tássia. Na biblioteca também falta acesso à internet, bem como fornecimento de água e alimento em atividades importantes. “Outra coisa que a gente queria era uma parceria para oferecer passeios culturais para as crianças. É importante ler, mas elas não podem ficar fechadas no mundo lúdico dos livros, sem conhecer o mundo real, os museus e espaços culturais do estado. Principalmente os que são voltados para nossa história, como uma comunidade de maioria negra”, completa.

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