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Nos últimos anos, a demanda por uma malha cicloviária nas grandes cidades brasileiras tem se intensificado, na esteira dos enormes problemas de mobilidade que atingem todos os grandes centros do país. Na Região Metropolitana do Recife não é diferente, e a pressão crescente por estrutura e estímulo ao uso da bicicleta como modal de transporte fez com que o poder público passasse a dar atenção ao tema, o que resultou, em 2014, no Plano Diretor Cicloviário (PDC), um documento com diagnósticos, parâmetros e objetivos para o estímulo à circulação de bicicletas.

Com recursos do Prodetur, o governo de Pernambuco vem construindo, em etapas, a malha cicloviária prevista no Plano Diretor. A mais recente inauguração foi a da segunda etapa do Eixo Cicloviário Camilo Simões, que pretende ligar o Recife ao município de Igarassu, passando por Olinda, Paulista e Abreu e Lima, num total de 33,8 km. O novo trecho foi inaugurado em abril deste ano e começa no bairro do Varadouro, em Olinda, seguindo por 2,9 km até a Fábrica Tacaruna, na divisa com o Recife, onde se conecta com a primeira parte do eixo, inaugurada em abril de 2017. Dali, são pouco mais de 5 quilômetros até o Marco Zero do Recife.

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A construção de uma estrutura ciclável é sempre bem-vinda para quem usa a bicicleta, mas a rota construída até aqui é alvo de crítica de ativistas, que apontam problemas na estrutura, no trajeto e na paradoxal falta de prioridade ao ciclista no eixo cicloviário. “A ciclovia foi feita para manter todos os privilégios dos motoristas”, argumenta Daniel Valença, coordenador da Ameciclo - Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife. “Falta coragem para utilizar os espaços destinados aos carros, priorizando as pessoas”, conclui.

Antes mesmo da execução da obra, a Ameciclo analisou o projeto e entregou ao governo o resultado desse estudo com sua visão dos problemas da estrutura. O documento, que você pode ler na íntegra, também aponta soluções. “Recebemos um ‘não’ para todos os itens”, diz Daniel.

O LeiaJá percorreu – de bicicleta – todo o trajeto de 8 km que já foi inaugurado do Eixo Cicloviário Camilo Simões, partindo de Olinda (confira o vídeo completo abaixo). Logo no início, uma questão estrutural já chama atenção:

Mobilidade ou turismo?

Um eixo intermunicipal com a previsão de mais de 30 km de extensão tem naturalmente vocação para ser um corredor de mobilidade, oferecendo mais um modal para a população na região metropolitana no seu deslocamento pendular diário casa-trabalho-casa. No entanto, a construção da ciclovia é uma ação da Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer de Pernambuco (Setur) e, segundo o diretor de Ciclomobilidade Jáson Torres, “O eixo cicloviário tem objetivo turístico”. O gestor pondera que, apesar disso, “sua utilização para mobilidade urbana é muito importante, assim como para lazer ou uso individual, além de atender diretrizes do Plano Diretor Cicloviário.”

Em seu diagnóstico, porém, o PDC identificou que 58% dos ciclistas da Região Metropolitana dos Recife se deslocam ao trabalho. Outros 7% usam a bicicleta para ir ao local em que estudam. Apenas 10% dos ciclistas apontaram como motivo do deslocamento o lazer. O mesmo estudo aponta que 77% dos usuários de bicicleta são trabalhadores e 13% estudantes; e que as viagens se concentram quase que totalmente nos horários de pico do trânsito (41% das 7h às 8h e 34% das 17h às 19h), deixando claro o perfil de quem utiliza o modal e precisa de uma estrutura ciclável que permita seu deslocamento diário com segurança.

Albery Silva Bezerra, de 54 anos, sabe a importância da existência de vias destinadas aos ciclistas, separadas dos carros: “Onde tem ciclovia, até onde ela for, eu faço questão de usar, por questão de segurança”. O porteiro usa a bicicleta há 8 anos e diariamente vai da cidade alta de Olinda até a Avenida Ruy Barbosa, no Recife.

Quem também se desloca de bicicleta ao trabalho é o fotógrafo Gustavo Bettini. Ele é mais um que faz críticas à estrutura dedicada à bicicleta no Recife, mas reforça que é importante que ela exista. “Qualquer ciclovia é melhor que nenhuma”, argumenta, afirmando que sente falta de uma ligação cicloviária entre as Zonas Norte e Sul da cidade.

Ciclovia ou calçada?

Uma característica que chama atenção no Eixo Cicloviário Camilo Simões é o grande número de trechos compartilhados entre ciclistas e pedestres. Toda a extensão da via localizada na Rua da Aurora é assim, e boa parte do trecho localizado em Olinda também. O compartilhamento chega a ser radical em alguns pontos em que a ciclovia ocupa toda a calçada. Na prática, em vez de se avançar sobre o espaço dedicado aos veículos automotores para fazer a ciclovia, o que foi feito foi apenas deslocar o fluxo de ciclistas da rua para a calçada. Acabou sobrando para os pedestres.

“Nem sempre há problemas no compartilhamento”, afirma Daniel Valença, da Ameciclo, citando exemplos de locais em que ciclistas e pedestres convivem sem problemas. “Mas nesse eixo cicloviário, que passa por vias de alta velocidade, não colocaram proteções para os ciclistas, não criaram novos espaços, apenas permitiram aos ciclistas trafegarem pela calçada”, critica.

Jáson Torres, da Setur, afirma que “O trecho de área compartilhada com pedestres é bastante reduzido e tem caráter temporário”. O gestor explica que há a necessidade de readequação de vários imóveis com expansão sobre o espaço público. “Ao longo da Avenida Agamenon Magalhães, todo o trecho de ciclovia está construído ao lado do que será uma futura calçada. Como ainda não existe a calçada, os pedestres optam por utilizar a ciclovia”, conclui.

Em seu artigo 68, o Código de Trânsito Brasileiro afirma que “É assegurada ao pedestre a utilização dos passeios ou passagens apropriadas das vias urbanas”. O mesmo artigo permite que uma parte da calçada seja usada para outros fins, “desde que não seja prejudicial ao fluxo de pedestres”. O Plano Diretor Cicloviário, ao estudar a legislação internacional, registra: “Outro ponto no qual concordam a grande maioria dos países é em não poder circular pela calçada, diferenciando-se só na permissividade quando o condutor for criança.”

De quem é a preferência?

Durante todo o trajeto, o ciclista se depara com inúmeros sinais de ‘pare’. De fato, todas as esquinas e cruzamentos, mesmo as entradas para vias locais, são sinalizadas de forma a tirar da bicicleta a preferência, mesmo estando numa ciclovia. Caso decida seguir à risca a sinalização, o ciclista literalmente terá que parar em todas as esquinas pelas quais passar.

O artigo 38 do CTB, que estabelece o que deve fazer o motorista “antes de entrar à direita ou à esquerda, em outra via ou em lotes lindeiros”, em seu Parágrafo Único, deixa claro: “Durante a manobra de mudança de direção, o condutor deverá ceder passagem aos pedestres e ciclistas”. Essa lógica é invertida, no entanto, pelo eixo cicloviário que corta Recife e Olinda: aqui, é o ciclista que deve ceder passagem aos condutores de veículos motorizados.

Um exemplo claro dessa situação fica na Avenida Dr. Jayme da Fonte, no bairro de Santo Amaro:

“Eu fui atropelado assim, numa conversão em que o motorista não parou e eu voei longe”, conta Daniel Valença. Para o cicloativista, “o motorista do Recife é mimado”. “A ele é dado a via, é desligada lombada eletrônica; para fazer uma faixa de ônibus tem que antes mudar a estrutura para não incomodar os motoristas. Isso é uma coisa que precisa ser desconstruída”, opina.

Questionado sobre o motivo da sinalização que retira a prioridade da bicicleta numa via cujo objetivo é exatamente reforçá-la, Jáson Torres afirma que “Toda a sinalização foi apontada pela empresa projetista, com análise e aprovação do órgão municipal de trânsito de Olinda”. Para o Diretor de Ciclomobilidade da Setur, “Dada a condição desigual entre os equipamentos de mobilidade de ciclistas e motoristas, associada à necessidade de incremento de mais sensibilização e educação para os motoristas, a condução preventiva dos ciclistas caracteriza-se uma conduta salutar”.

Monte na nossa bicicleta virtual e sinta um pouco como é percorrer os cerca de 8 quilômetros das duas primeiras etapas do eixo cicloviário Camilo Simões:

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Cadê a ciclovia?
Quem parte de Olinda rumo ao Bairro do Recife usando a rota ciclável oferecida pode se perder ao chegar na Praça da República, no bairro de Santo Antônio. Quem faz o caminho contrário, partindo do Marco Zero, talvez nem a encontre.

No pé da ponte Buarque de Macedo, a via segregada é interrompida sem nenhuma sinalização que oriente o ciclista sobre por onde deve seguir. É preciso se esforçar para perceber, na faixa esquerda da ponte, a pintura que indica o trecho de ciclofaixa. Se de bicicleta é difícil identificar a faixa, para os motoristas, na prática, ela inexiste.

A falta de sinalização continua na Marquês de Olinda - que hoje é fechada aos carros e foi pedestrianizada - até o Marco Zero do Recife, local anunciado como o início do Eixo Cicloviário Camilo Simões:

“A bicicleta faz bem, é saudável. Com a bike, você tem um tempo certo de chegar ao trabalho, e sem aquele estresse”. O elogio de Albery, que usa a bicicleta diariamente, é também um incentivo ao uso dela como meio de transporte, diminuindo o foco do planejamento urbano de mobilidade nos veículos motorizados, especialmente os carros. “Ha três anos comecei a andar de bicicleta e desisti de ter carro”, reforça Gustavo.

Deve-se dar ao poder público o reconhecimento de que, pela primeira vez, estão sendo feitas intervenções a fim de incluir a bicicleta no rol de veículos do trânsito, como estabelece o Código de Trânsito. O Eixo Cicloviário Camilo Simões se insere em outros trechos de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas que já foram ou estão sendo construídas, perseguindo o estabelecido no PDC.

Mas usar a estrutura já construída até agora montado numa bicicleta, como fez essa reportagem, deixa a clara sensação de que tal estrutura está sendo feita a partir da visão do motorista, não das necessidades do ciclista. Quase todo o traçado é nitidamente feito para evitar o uso de qualquer espaço que já seja dedicado aos carros, admitindo-se contudo avançar consistentemente sobre o espaço destinado aos pedestres, estes já acuados por calçadas precárias e pelo desrespeito generalizado de condutores.

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