Tópicos | Antônio Lucena

Democracia é o regime político onde o poder emana do povo. É assim que vem definida a palavra no dicionário e na sua etimologia. Mas não apenas isso, viver em um país democrático também é ter garantido os direitos expressos na Constituição, entre eles, a dignidade humana, o acesso aos serviços públicos, a garantia da liberdade e o respeito à todas as esferas de poder.

Estes e outros princípios estão expressos na Declaração Universal da Democracia, assinada durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em 1997 e lembrada anualmente no Dia Internacional da Democracia, celebrado por 128 países, inclusive o Brasil, nesta quinta-feira (15).

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A declaração construída pela ONU pontua que “a democracia é um direito básico de cidadania, a ser exercido em condições de liberdade, igualdade, transparência e responsabilidade, com o devido respeito à pluralidade de pontos de vista, no interesse da comunidade”. Mas será que o Brasil vive uma democracia plena ou recheada de interesses políticos individuais que se sobrepõem ao povo?

Para o historiador Barthô Júnior, ter hoje uma Constituição que garanta o direito da população e viver em um país com um regime democrático "é uma questão de orgulho e, de certa forma, alívio”, principalmente levando em consideração que tal sistema já foi anulado por governos que cercearam os rumos da democracia, como os dos 21 anos da ditadura militar brasileira.

"Viver hoje em uma democracia, cujo país já passou por tantos desmandos e pela ausência de um estado de direito, de um poder soberano do povo, é um fator que nos leva a comemorar e ao mesmo tempo pensar se ela é totalmente plena”, ponderou Barthô.

“Uma democracia plena deve estar presente não só na Constituição, e a mesma, como o próprio nome diz 'Constituição Cidadã', deve vigorar também na sociedade, não apenas nas urnas, onde na atual legislação o voto passa a ser universal para toda pessoa adulta, conquista importante obviamente, mas essa mesma legislação declara a seguridade de uma soberania, do bem estar da nação e da dignidade humana, ou seja, a Constituição por meio dos poderes Executivo e Judiciário devem garantir que tais direitos democráticos sejam de fato executados para aqueles ao qual a democracia foi criada, para o povo”, emendou.

Indagado sobre como avaliava o contexto atual da democracia brasileira, tendo em vista o que o país já viveu historicamente, o professor ressaltou o significado do direito do voto e a sua evolução, como também a eficácia do regime político na vida da sociedade.

"O voto é para nós o rosto da democracia, mas não devemos parar por aí. A democracia é muito mais ampla do que apenas o direito ao voto, e sim direito a serviços básicos que estão presentes na Constituição, que deveria dar a todo o povo brasileiro a dignidade humana, sem distinções. Isso não quer dizer que não estamos em um país democrático, constitucionalmente somos, mas o que falta é essa democracia estar refletida em todos os setores da sociedade que competem ao Estado. A democracia deve estar presente na educação, na saúde, na mesa e no prato do brasileiro, essa seria uma democracia plena, em direitos e deveres, entre o povo e o estado, não menos que isso”, frisou.

Um sistema ameaçado constantemente

O Brasil teve a democracia restituída em 1985, com o fim da ditadura militar que durou 21 anos, e em 1988 viu a sua Constituição Federal vigente ser elaborada. Após as duas décadas mais duras vividas pelo país, o regime democrático vem sendo cada vez mais amadurecido, contudo, nos últimos anos passou a ser alvo de ameaças constantes por grupos que começaram a pregar a volta dos militares ao poder e, mais especificamente de 2019 para cá, essa minoria viu suas falas endossadas em diversos discursos do presidente Jair Bolsonaro (PL), dos seus filhos e aliados.

Uma prova disso é a queda do Brasil nos índices internacionais que medem a eficácia da democracia nos países. Em fevereiro deste ano, o tradicional índice aferido pela revista The Economist – existente desde 2006 e que apura dados de 165 países – mostrou que a pontuação brasileira caiu de 6,92, em 2020, para 6,82, em 2021. Em 2006, o país registrava 7,3 pontos.

Segundo o cientista político Antônio Henrique Lucena, desde a crise financeira de 2008 se instalou nos Estados Unidos e na Europa uma onda de políticos antissistema e com discursos populistas, e o Brasil está passando por esta onda. Se ela continuará ou não veremos com o resultado das eleições em outubro.

“Bolsonaro terminou sendo um ‘acidente’ em virtude do lavajatismo e do antipetismo que a gente tinha e foi galvanizado por Sérgio Moro, o descontentamento com os anos petistas e a crise econômica. Isso tudo ajudou na ascensão dele que se vendia como um outsider, mas na verdade, ele era um insider heterodoxo que se vendia como um outsider do sistema, não conformado com as regras estabelecidas. E aí, a gente viu como tudo se colocou”, disse o especialista.

De acordo com os dados do Índice da Democracia do The Economist deste ano, o melhor aspecto democrático apontado no Brasil é o processo eleitoral, que atinge uma pontuação do que classificam como sendo de uma “democracia perfeita”. Ainda assim, os brasileiros viram Jair Bolsonaro – eleito em 2018 e outras oito vezes – questionar a lisura do sistema eleitoral e levantar suspeitas, antecipadamente e sem provas, de uma suposta fraude no pleito deste ano.  

Além disso, também vem sendo possível registrar eleitores bolsonaristas indo às ruas, como no último 7 de setembro, pedir uma espécie de intervenção militar, mas com o presidente Jair Bolsonaro no poder. O que é inconstitucional.

“[Pedidos de intervenção militar] mostram um descontentamento com a democracia, assim como também irresponsabilidade, porque é inconstitucional. Intervenção militar com Bolsonaro no poder não existe. É uma minoria que não respeita o processo democrático. Não são pessoas que estão preocupadas com a democracia, mas em manter seu candidato no poder e isso é muito ruim”, avaliou Antônio Lucena.

Até que ponto vão os riscos?

A junção dos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral – que desencadearam uma carta elaborada pela Faculdade de Direito da USP em defesa da democracia com o endosso de juristas, políticos e artistas – com esse possível desejo de manter Bolsonaro no poder, mesmo que não seja vitorioso nas urnas - tema que levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a investigar um grupo de empresários brasileiros, entre eles o fiel bolsonarista Luciano Hang, dono das Lojas Havan – tem gerado discussões sobre os reais riscos que a democracia corre atualmente.

Na ótica de Antônio Lucena, contudo, é “relativamente baixa a possibilidade de um golpe de estado, com blindados na rua e militares apoiando o governo Bolsonaro caso ele perca as eleições”.

"O custo disso é muito alto, não estamos em 1964. O Brasil já é uma democracia. Estamos vendo um mundo muito mais organizado, apoiando militarmente a Ucrânia frente a uma investida genocida da Rússia contra aquele país, várias sanções que a Rússia está sofrendo, e provavelmente um golpe militar no Brasil não seria bem visto internacionalmente e catastrófico para a nossa economia”, argumentou o cientista político.

Fora os dois aspectos citados acima, também há quem tema um rompimento democrático com uma replicação do que se viu nos Estados Unidos, quando o então presidente não reeleito, Donald Trump, incentivou a invasão do Capitólio - centro do poder Legislativo americano – por seus apoiadores para contestar o resultado das urnas.  

Entretanto, para Lucena, isso não deve acontecer no Brasil, pois haveria um isolamento em uma tentativa de aventura.  

“Arruaças a gente deve ter, sem dúvida nenhuma. E já estamos vendo pessoas já morreram por conta disso. Em grande medida, o fruto dessa instabilidade é o próprio Bolsonaro que fica atiçando, batendo de frente contra as instituições e esticando a corda. Termos governantes que respeitem a democracia, que defendam esse legado tão dificilmente construído após 1988 é extremamente importante para a população, e em uma tentativa de aventura, as pessoas que lideram ficariam isoladas”, projetou.

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