Um drama atual de Ken Loach sobre o desamparo social na Inglaterra e uma comédia excêntrica do francês Bruno Dumont ambientada na Belle Epoque levaram lágrimas e risadas nesta sexta-feira (13) ao Festival de Cannes. Os dois filmes, "I, Daniel Blake" e "Ma Loute", estão na mostra oficial e disputam a Palma de Ouro. As produções foram aplaudidas nas exibições para a imprensa.
Naufrágio social na Inglaterra
##RECOMENDA##Ligar para algum organismo público e cair em uma mensagem automática com sua música impessoal e opções inflexíveis é uma das pragas dos século XXI. Do outro lado da linha não há ninguém, nem um supervisor a quem apelar: todos os caminhos levam a um anônimo "decision maker", o responsável pelas decisões na boca de todos os burocratas que se recusam a aparecer.
Para a classe trabalhadora em queda livre, protagonista do inquietante espelho de nossa época no filme "I, Daniel Blake" de Ken Loach, esta é apenas mais uma etapa no calvário cotidiano de buscar emprego ou conservar a ajuda social. Daniel Blake (Dave Johns) é um carpinteiro de 59 anos da cidade inglesa de Newcastle que se vê obrigado a recorrer a esta ajuda depois de sofrer problemas cardíacos. Apesar do médico proibir seu retorno ao trabalho, o sistema o obriga a procurar um improvável emprego ou ficar exposto a perder a pequena ajuda que recebe, apenas o suficiente para sobreviver.
Em sua visita diária à agência que atende os desempregados, ele conhece uma mãe solteira (Hayley Squires), que também passa por dificuldades e sofre, ao lado dos dois filhos, nas mãos do sistema. Aos 80 anos e com uma extensa filmografia ativista, Loach mantém suas convicções. Em seu universo, os pobres são necessariamente bons e o capitalismo afunda o indivíduo.
O filme narra o relacionamento entre dois náufragos que buscam apoio um no outro, mas o lado social entra pelo individual e, como acontece com frequência no cinema do irlandês, os momentos de emoção mais eficientes são os coletivos, quando o indivíduo se rebela, reivindica sua dignidade e recebe o apoio solidário de seus pares. "Quando você perde o respeito próprio é o fim", adverte Daniel Blake.
Deliciosa carne burguesa
Do outro lado do Canal da Mancha, não muito longe da Inglaterra, onde saber rir de si mesmo é uma obrigação moral e uma cortesia com os demais, está o norte da França, região de paisagens abertas e pessoas de extrema convicção. Nesta área nasceu Bruno Dumont, diretor de "Ma Loute", que defende em seu cinema que sua região natal é, ao mesmo tempo, bruta e engraçada.
Duas características que, somadas ao grotesco, guiam sua tragicomédia, que em alguns momentos lembra uma história em quadrinhos. Tudo acontece ao redor de uma casa de extravagante estilo egípcio onde passam férias, no início do século XX, os Van Peteghem, família burguesa de Tourcoing, com seus preconceitos de classe e segredos do passado.
Perto da residência estão os moradores da região, os rudes Brufort, que vivem da captura de mexilhões e que, embora observem os burgueses com receio, os consideram apetitosos a ponto de comer os vizinhos. Literalmente. O insólito vício em carne humana gera uma série de desaparecimentos misteriosos, investigados por uma dupla de policiais, ao melhor estilo 'O Gordo e o Magro'.
Da interação entre dois universos de classes sociais que não se falam - uma alegoria plausível da sociedade francesa de ontem e hoje - surge uma história de amor, a de "Ma Loute", apelido do jovem filho dos Brufort (Brandon Lavieville) e do andrógino Billie, filho dos Van Peteghem, que tem o hábito de se vestir como mulher.
O filme tem cenas surrealistas e gira sobretudo ao redor do personagem do pai, ridiculamente afetado até na forma de caminhar, interpretado por Fabrice Luchini, ao lado de uma eficiente Valeria Bruni Tedeschi no papel da esposa. Em alguns momentos o grotesco passa dos limites e perde a eficácia com a histriônica Aude Van Peteghem (Juliette Binoche). "O cômico é esquemático, são caricaturas, não é sociologia", disse Dumont à imprensa.
Ele afirmou que sua fábula não se limita a uma reconstituição de época, mas aspira apresentar um retrato da humanidade. "Meus personagens são eu mesmo ou vocês. É bom rir de si mesmo".