A higienização das mãos é um cuidado importante de saúde muitas vezes negligenciado. No entanto, com o surgimento do novo coronavírus (SARS-COV-2), patógeno causador da Covid-19, todo o mundo passou a se preocupar com a limpeza das mãos como forma de se proteger da pandemia.
Lavar corretamente as mãos com água e sabão segue sendo a maneira mais indicada para matar os agentes causadores de doenças, mas nem sempre as condições são favoráveis para isso. Foi a preocupação com as condições para limpeza das mãos por parte de profissionais de saúde que motivou a criação, no ano de 1966, do álcool gel, produto altamente procurado no momento pelo seu potencial auxílio no combate à contaminação por coronavírus. A invenção e patente do produto significaram um grande avanço para a sociedade, no entanto, poucas pessoas conhecem sua origem e quem o criou.
##RECOMENDA##Lupe Hernandez estudava enfermagem na cidade de Bakersfield, localizada no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Percebendo a falta de água e sabão à disposição dos profissionais que atuavam no segmento de saúde, a estudante de origem latina começou a buscar uma solução de limpeza que fosse portátil e de fácil utilização na falta de uma pia, por exemplo. O produto criado por Lupe Hernandez, segundo o professor de química Josinaldo Lins, é composto por etanol, o álcool etílico que conhecemos, em uma concentração de varia de 60% a 80%, menos volátil que em concentrações mais altas, e também por um composto chamado carbopol, que age como espessante que torna o produto gelatinoso.
Uso do álcool gel foi intensificado com a pandemia do coronavírus. Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens
“Alguns apresentam fragrância, porém isso não influencia na sua ação germicida”, explicou o professor, uma vez que “a eliminação de germes se deve ao fato destes apresentarem em sua estrutura uma camada de gordura, na qual o álcool adere, e feito isso, o produto penetra na estrutura interna do microorganismo e o mata”. Josinaldo Lins destaca a importância da descoberta de Lupe Hernandez, pois em condições de difícil acesso a meios que permitam uma boa lavagem das mãos, que é a melhor escolha sempre, o álcool gel supre essa necessidade. “Se não tem água corrente, se o fornecimento de água não é adequado, se não tem sabão ou detergente a cada vez que vamos ao banheiro ou a outro lugar da casa ou do trabalho que seja usado para higiene pessoal, temos que ter uma alternativa, e essa é o álcool em gel. Claro que não substitui a lavagem tradicional das mãos, com água e sabão, e também tem restrições de uso, o uso excessivo pode irritar a pele”, afirmou o educador.
Com os avanços que a descoberta representou no acesso da sociedade à boa higiene das mãos, era de se esperar que existisse um grande volume de informações a respeito da pessoa que possibilitou essa descoberta. No entanto, não foi bem isso que aconteceu: pouquíssimas informações a respeito da vida e história de Lupe Hernández são conhecidas e puderam ser resgatadas para esta reportagem.
“Eu lembro de ter lido em uma matéria que nos Estados Unidos há meio que uma política de não haver o reconhecimento de que latinos têm protagonismo em determinadas áreas para que haja aquele conceito do ‘all american’, ou seja, todos são americanos, para afirmar que todos são americanos no final das contas. A gente vê uma pessoa que tem uma importância imensurável, que só foi reafirmada agora, em tempos dessa pandemia, só que infelizmente ela não teve o tratamento necessário. Não se sabe nem se ela recebeu os direitos, os royalties por ter inventado o álcool gel”, criticou o professor Josinaldo, quando perguntado sobre a ausência de informações acerca de Lupe Hernandez.
A memória de Lupe Hernandez enfrenta, ainda, outra barreira de preconceito para que sua criação tenha o reconhecimento merecido. Vale ressaltar que, além de latina, trata-se também de uma mulher na ciência, ambiente historicamente hostil às mulheres. Lupe não foi a primeira e infelizmente muito menos a última mulher a sofrer com a falta de reconhecimento por suas descobertas científicas, como evidencia a fala de Rita Moura, doutora em ciências biológicas, professora de genética e diretora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE). “Como geneticista me vem à mente um exemplo memorável, a descoberta feita na década de 40 pela Bárbara McClintock ao estudar grãos de milho quanto ao fenótipo e aspectos genéticos relacionados, na Cornell University. Ela inferiu que os resultados do seu trabalho indicavam a ocorrência de elementos genéticos móveis. Seu trabalho quebrou muitos paradigmas na genética e só foi reconhecido 30 anos depois. Ela recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1983, bem como outros prêmios. Poucos a conhecem além daqueles que estudam genética, mesmo ela tendo dado uma contribuição científica que a colocou no mesmo patamar de Gregor Mendel”, contou Rita, que costuma citar a história de Bárbara, que a emociona, quando sente que precisa inspirar alunas e futuras cientistas.
A falta de reconhecimento e apoio às mulheres nas ciências não é um fato que ficou no passado. Rita cita diversos problemas que as mulheres ainda enfrentam em suas carreiras como pesquisadoras para conseguir desempenhar seus trabalhos, conciliar a profissão com a família e obter o devido crédito pelos seus feitos. “A preocupação das mulheres não é só com a diminuição da produtividade, mas também com a forma de conciliar suas atividades com o período de gestação, em particular para aquelas que fazem experimentos que utilizam drogas em sua rotina. Com relação à redução da produtividade, ela irá naturalmente acontecer pelo menos no primeiro ano de vida de seu filho e para voltar a crescer exigirá uma dedicação extrema. A alta cobrança das mulheres pesquisadoras nesse sentido, ocasiona a ocorrência de ansiedade e muitas vezes faz com que elas passem a questionar se vale a pena se dedicar à carreira científica”, disse a doutora.
As cobranças que as mulheres que optam pela vida acadêmica sofrem durante o exercício de seu trabalho e também fora dele, especialmente se elas forem mães, também estão entre as dificuldades impostas pela sociedade às cientistas. “As mulheres são julgadas no ambiente de trabalho, inclusive por colegas do sexo feminino que se mostram impiedosas com as colegas que deixam de acompanhar o filho ao médico, ir à abertura dos jogos na escola e viajam para ficar alguns meses em instituições em outros estados ou no exterior, mesmo que de forma esporádica. Quando a mulher está à frente da pesquisa coordenando, os resultados em geral ao serem divulgados e repercutidos, eles são muitas vezes creditados ao trabalho da equipe. Diferente dos trabalhos coordenadas por homens, cujos resultados de imediato geram grande visibilidade ao coordenador”, declarou Rita.
Quando questionada sobre questões ligadas à nacionalidade e origem étnica na ciência, a diretora do Instituto de Ciências Biológicas da UPE destacou as diferenças estruturais para a produção de conhecimento e pesquisa em diferentes países, e como isso pode levar ao preconceito dentro da comunidade científica. “No Brasil, fazer ciência tem sido um ato de resistência considerando que nos últimos quatro anos as perdas de investimentos relativas às pesquisas não afetaram apenas o ritmo dos trabalhos, atingiram também a autoestima dos estudantes de pós-graduação. Esta realidade aumenta a distância que já existe quanto à credibilidade da pesquisa feita no Brasil. Contudo, é importante dizer que no Brasil temos excelentes pesquisadores, incluindo os pós-graduandos, os quais se empenham enormemente para mudar essa realidade quanto às condições de trabalho e a valorização profissional. E por último dizer que o desafio para nós mulheres na pesquisa foi e ainda continua sendo maior, mas que é transponível e que podemos e devemos continuar lutando para transformar essa realidade”, afirma Rita Moura.
A falta de informações sobre Lupe Hernandez e seu legado afeta também a sua história de vida. Mesmo após uma longa busca por artigos científicos, notícias e pesquisadores em universidades que pudessem informar coisas básicas como quando Lupe Hernandez nasceu e quando (e se) morreu, nossa reportagem não conseguiu obter mais dados sobre ela, além dos que já foram citados.