Um campo minado ativo. É o que os documentos obtidos com exclusividade pela Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo através da Lei de Acesso à Informação revelam sobre o terreno conhecido como “Camboatá”, em Deodoro, subúrbio da Central, local escolhido para construção do novo autódromo do Rio de Janeiro.
Nem mesmo a “operação de descontaminação mecanizada e manual” realizada pelo “1º Batalhão de Engenharia de Combate” (RJ) em 2014 e 2015, quando se realizou a “detecção, varredura, limpeza e neutralização de artefatos” é capaz de assegurar risco zero e total ausência de tais artefatos.
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Trechos do “Relatório Final da Força Tarefa Camboatá”, elaborado pelo “1º Batalhão de Engenharia de Combate” (RJ) e encaminhado ao “Comando Militar do Leste”, citam um impressionante número de “167.000 (cento e sessenta e sete mil) artefatos e estilhaços de granadas e explosivos” localizados e neutralizados no “imóvel Camboatá” no período dessa varredura de 2014 e 2015.
Mas a grande revelação que pode colocar Lewis Hamilton e a trupe da Fórmula 1 em risco vem em três linhas sem maior destaque em meio ao relatório: em decorrência de limitação do material e da técnica necessária para execução da tarefa, a varredura não foi realizada em todo o terreno. A lacuna na varredura que impede assegurar risco zero para o pretendido futuro autódromo está assim descrita no documento verificado pela reportagem:
“Conforme consta do Relatório Final da Força-Tarefa Camboatá, elaborado pelo 1º BE CMB (ES) e encaminhado ao Cmdo do CML, as áreas permanentemente alagadas e os cursos d’água não foram objeto de varredura, levando-se em conta a limitação do material e da técnica para execução da tarefa”. (Ver trecho na arte abaixo):
De acordo com especialista ouvido pela reportagem e que preferiu não se identificar, nem mesmo na área em que foi realizada a varredura é possível 100% de garantia.
A área de 2 milhões de metros quadrados onde pretende se construir o autódromo pertencia ao exército e foi para a prefeitura do Rio, tendo passado antes por uma transação de reversão para o Ministério do Esporte, que pagou cerca de R$ 120 milhões ao exército, como mostrou reportagem deste site em 17/10 .E foi usada durante décadas como área de treinamento militar e paiol de armas, e por isso sujeita a existência de artefatos.
Acertada a transferência, estabeleceu-se o “Termo de Execução Descentralizada 72/2014”, assinado em 5 de dezembro de 2014, no qual o Ministério do Esporte financiou a “Operação de descontaminação mecanizada e manual” para o Exército, transferindo a quantia de R$ 12.575.802,77 (doze milhões, quinhentos e setenta e cinco mil, oitocentos e dois reais e setenta e sete centavos).
Ao fim de 2015, os mais de R$ 12 milhões pagos pelo Ministério do Esporte para o Exército pela tarefa foram ampliados no valor: em 28/12, foi assinado o aditivo de R$ 6.931.392,75 (seis milhões, novecentos e trinta e um mil, trezentos e noventa e dois reais e setenta e cinco centavos). Ficando um total de R$ 19.507.195,52 (dezenove milhões, quinhentos e sete mil, cento e noventa e cinco reais e cinquenta e dois centavos).
O temor por uma tragédia na área de Camboatá acompanha o imaginário da cidade desde o século passado. O próprio relatório da força-tarefa se refere a necessidade de remoção dos artefatos usando como referência a histórica explosão de 1958 citando “um imponderável ocorrido em 1958 e amplamente noticiado à época”.
O “imponderável ocorrido em 1958”, além de nem tão “imponderável” por se tratar de área com milhares de artefatos explosivos, na verdade foram dois e não um. Na noite de 1º de agosto de 1958, o pânico tomou conta da cidade com a explosão do ‘Depósito de Material Bélico do Exército” ali situado e composto por 45 paióis. O “Correio da Manhã”, relevante jornal da época, descreve dois dias depois do ocorrido, citando “explosões sucessivas, seguidas de tremores de terra…e estrondos com efeito de verdadeiro terremoto”.
O pânico em bairros vizinhos resultou em diversos feridos. Diversos bairros vizinhos além de Deodoro, entre eles Marechal Hermes e Ricardo de Albuquerque foram evacuados, em episódio singular na história da cidade. A reportagem diz ainda que a explosão foi sentida até em bairros da zona sul, como Leblon e Jardim Botânico.
A dimensão da tragédia pode ser medida pela presença de autoridades no local depois das explosões. Do presidente da República, Juscelino Kubitschek, morador da ainda capital federal, a ministros e todo alto comando do exército. A reportagem cita dezenas de feridos mas não fala em mortes.
O então chefe do Estado-Maior, general João Urahy Magalhães, se pronunciou logo depois para dizer que não havia mais perigo de novas explosões. Não era bem assim. Dois meses depois, no dia 2 de outubro, a manchete do Correio da Manhã relatava a repetição da tragédia: “Nova catástrofe em Deodoro leva o pânico à população suburbana”.
Dessa vez o jornal fala em 4 mortes e pânico ainda maior, evacuação, caminhões do exército levando moradores da redondeza para o estádio do Maracanã. Campo de Santana e Central do Brasil também receberam milhares de moradores. Para completar o caos, o dia seguinte, 3 de outubro, era data de eleições gerais. O jornal estima que cerca de 100 mil eleitores ficaram sem votar. Naquelas eleições foram eleitos Carlos Lacerda para governador do Rio e Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, entre outros nomes da vida nacional.
A construção do Autódromo de Deodoro e conseqüente mudança do GP de Fórmula 1 saindo de São Paulo para o Rio é questão da agenda encampada como compromisso de Jair Bolsonaro. Uma série de atos ao longo do ano tem marcado as cartas do jogo que se desenrola nos planos federal, estadual e municipal.
No último dia 8 de maio, em cerimônia no Aterro do Flamengo de comemoração do Dia da Vitória na 2ª Guerra Mundial, ladeado por militares, o presidente afirmou que “a Fórmula 1 do ano que vem será realizada no Rio”, mesmo sem um prego batido para a construção do autódromo.
Dia 20 de maio, doze dias depois do tal discurso que parecia descolado da pauta presidencial e perdido numa cerimônia de homenagem aos pracinhas, saiu o resultado do vencedor da concorrência para a construção do novo complexo.
Para surpresa geral, uma empresa absolutamente desconhecida arrebatou a concessão de 35 anos, no valor de R$ 697.400.000,00 (seiscentos e noventa e sete milhões e quatrocentos mil reais), para explorar o autódromo a ser construído por ela em Deodoro. O espanto se justifica: a vencedora Rio Motorpark Holding S.A. foi constituída pouco tempo antes, em 17 de janeiro deste ano. Exatos 11 dias antes da abertura da licitação, no dia 28 de janeiro de 2019, como mostrou reportagem do G1, de Felipe Grandin e Gabriel Barreira.
Tendo como acionista JR Pereira. Um sócio misterioso com histórico de representar empresas em negócios de milhões nas Forças Armadas brasileiras, como está na reportagem da Agência Sportlight em 25/7.
No último dia 29/11, o “Blog do Berta, de Ruben Berta, mostrou que o Rio Motorpark Holding recebeu isenção fiscal da prefeitura mesmo com a construção ainda sendo uma incógnita.
Em cima dessa renúncia fiscal, que chega a R$ 302 milhões nos dois primeiros anos, a empresa de JR Pereira fez lance de R$ 270 milhões pelos direitos da prova, muito acima das possibilidades de São Paulo no leilão, reportagem de Julianne Cerasoli e Demétrio Vecchioli no UOL na última segunda-feira.
Encampado por Jair Bolsonaro como projeto prioritário em sua agenda e pelos militares, o Rio parece avançar no leilão para realização do Grande Prêmio de Fórmula 1.
Será preciso saber se Lewis Hamilton e companhia, o famoso circo da Fórmula 1, com seus pilotos superstars e equipes poderosas estarão dispostas a se instalar por uma semana em meio aos fantasmas de 1958. E sobre áreas em que o exército já garantiu risco zero de explosões por uma vez e dois meses depois foi pelos ares. Muito mais do que isso: sobre áreas que “não foram objeto de varredura” até aqui.
Outro lado
A reportagem enviou no dia 4 de dezembro para o Comando do Exército (CEX), através da assessoria de imprensa da instituição, questão sobre o terreno onde existiu a “Área de Instrução de Camboatá” e a garantia de risco zero para a existência de minas terrestres, granadas ou qualquer tipo de explosivo. Não houve resposta por parte do CEX.
Via Agência Sportlight