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Exceções de fato existem, mesmo que em quantidades escassas. Contam-se nos dedos situações que fogem do comum negativo que tanto instiga críticas. Sob a ótica dos espaços públicos e do panorama de mobilidade urbana das grandes cidades, a relação entre motoristas e flanelinhas, na maioria das vezes, tende a ser conflituosa, porém, existem alguns exemplos de gente que trabalha de forma honesta, não força a população a arcar com custos que em nada tem a ver com contribuição pública e não se apodera das vias como se fosse dono dela. Guardadores de carro que envelheceram junto com o tempo de trabalho em pontos estratégicos da metrópole e que ao longo de tantos anos conquistaram clientes e entenderam a importância de se respeitar a liberdade urbana dos cidadãos.
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Quem passa próximo à Padaria Massa Nobre, no bairro da Torre, Zona Oeste do Recife, pode ter presenciado um senhor magro, de alta estatura, sempre vestido com a camisa alvirrubra do Náutico. No ombro, a tradicional flanela, que por inúmeras vezes é passada para as mãos com objetivo de sinalizar e ajudar os motoristas que passam pelo local. Elogiáveis são as duas décadas que Gilvan Igidio da Silva trabalha todas as manhãs, das 5h às 11h, no mesmo local, faça chuva ou sol, domingos, feriados, férias. Tudo com o aval de todos os donos do estabelecimento comercial, que, segundo os próprios clientes, enxergam nele um homem honesto e responsável.
Atencioso com os clientes e a todo tempo com os olhos vidrados no fluxo do trânsito, seu Gilvan recebe com largo sorriso cada pessoa que chega aos estacionamentos privados da padaria. Um fica na frente do estabelecimento e o outro, onde o flanelinha trabalha, está localizado do lado inverso. Com tanto tempo de trabalho, seu Gilvan se orgulha da função e diz que nunca teve problemas com os motoristas da localidade.
“Todos aqui são tranquilos. Quando alguém chega dou bom dia, pergunto como a pessoa está e se ela precisa de alguma coisa. Fico olhando para o trânsito e ajudando o motorista a manobrar o carro. Graças a Deus nunca tive problemas com nenhum cidadão, porque procuro respeitar cada um e faço meu serviço com honestidade e qualidade. Aqui, o cliente paga quanto quiser e eu nem cobro. O cidadão paga se ele quiser, não é verdade? Estou aqui apenas para ajudar e se o cliente achar que pode me dar algo, ficarei feliz, se não estarei alegre do mesmo jeito”, relata seu Gilvan, que consegue juntar cerca de R$ 70 por semana de trabalho.
Quem comprova o bom trabalho do flanelinha é o engenheiro agrônomo Salvino Camarote, que há dez anos deixa seus carros sob o cuidado de Gilvan. De acordo com o cliente, diferente de muitos casos que acontecem principalmente no Centro do Recife, o trabalho de seu Gilvan preza pelo respeito às pessoas e pela conscientização de que a rua é pública. “Ninguém é dono da rua. Às vezes, em outros pontos da cidade, os flanelinhas chegam impondo quanto o cidadão tem que pagar. Como conheço Gilvan há muitos anos, sei que ele presta um serviço e não exige dinheiro por isso. Mas o caso dele não é normal, é uma exceção em comparação com outros por aí”, opina o cliente.
Segundo o gerente da padaria, Audemir Pontual, o respeito que seu Gilvan dá aos motoristas engrandece a admiração que os responsáveis pelo estabelecimento têm por ele. “Ele trabalha muito bem, ajuda até o trânsito quando está complicado. Sempre chegam clientes elogiando ele”, afirma o gerente. Elogios que alargam ainda mais o sorriso de seu Gilvan. “Fico muito feliz em saber que os clientes gostam do meu serviço. E eu estou aqui para ajudar. Nem gosto muito de viajar com a família, porque sei que quando não estou aqui, as pessoas sentem falta de mim e do meu trabalho”, brinca o flanelinha. No vídeo a seguir, veja o trabalho de seu Gilvan:
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Se os 20 anos de seu Gilvan são respeitados e admirados pelos motoristas do bairro da Torre, as mais de duas décadas de trabalho da flanelinha Tereza Pinheiro da Silva, de 67 anos, também arranca elogios dos clientes. Ela também trabalha próximo à Padaria Massa Nobre e convive, segundo ela, de forma harmoniosa com seu Gilvan. Dona Terezinha conta que o serviço ajudou a criar seus filhos e que, costumeiramente, recebe o carinho dos clientes.
“Muitos chegam pra mim e me dão uma cesta básica, uma roupa, qualquer tipo de ajuda. As pessoas que vêm comprar na padaria gostam de mim, os donos também são muito legais. Para falar a verdade, eu devo muito a este comércio, porque os funcionários nunca implicaram com meu trabalho. Também não sou de acordo com os flanelinhas que obrigam o camarada a pagar e quando a pessoa não paga, eles querem arranhar o carro. Isso é errado! Ninguém é obrigado a pagar”, relata dona Terezinha. A flanelinha ainda completa: “E aqui com Gilvan não tem isso de concorrência. A gente, graças a Deus, trabalha em paz. Ele é meu companheiro”, conclui.
“Não sou dono da rua”
Seu Cícero José dos Santos não para um segundo. Com a flanela no ombro, ele anda de um canto para outro em uma das ruas próximas ao hospital Imip, no bairro dos Coelhos, Centro do Recife. Todo esforço é para achar vagas em frente a um galpão que serve como estacionamento para dezenas de motoristas. Como não há muitos locais vagos para deixar os veículos, o jeito é acreditar na sorte e buscar o mínimo de espaço para estacionar. E é seu Cícero que cuida de “desenrolar a vaga”.
Aos 83 anos de idade, seu Cícero acorda todos os dias, por volta das 3h, para tomar conta dos veículos que já de madrugada são estacionados em frente à sua humilde residência, construída com madeiras e composta por alguns eletrodomésticos. Antes de o dia amanhecer, funcionários do hospital que chegam para dar expediente acordam o flanelinha na intenção de deixar seus carros em segurança. “Tenho muitos conhecidos na comunidade e principalmente no hospital. São enfermeiros, médicos, pessoal da limpeza. Muita gente deixa o carro comigo. As pessoas sabem que não exijo dinheiro de ninguém. Não peço, porque cabe ao cliente querer dar ou não. Só que muitos me dão um trocadinho e isso me ajuda a cuidar da família”, conta o flanelinha, que ganha cerca de R$ 40 por dia.
Morador do bairro dos Coelhos há 40 anos, seu Cícero se orgulha da boa relação com os clientes. De acordo com ele, são três décadas de trabalho duro, da madrugada até o fim do dia, sem nenhum registro de atrito com motoristas. Admiração que se comprova pelas dezenas de cumprimentos de populares e motoristas que passaram pelo flanelinha durante as horas de entrevista com o LeiaJá. Um dos clientes, o agricultor Aloizio Soares, há três anos sai de Goiana, no Litoral de Pernambuco, para o Recife. Pelo menos uma vez por mês, ele leva o pai para atendimentos médicos no Imip e deixa o veículo aos olhares de seu Cícero. “Quando a gente chega nunca tem vaga no estacionamento do hospital, principalmente porque viemos de longe. A solução é deixar com ele e com certeza ficamos tranquilos. Quando não tenho dinheiro não preciso pagar e ele sempre faz um bom serviço. Isso nos ajuda”, diz o cliente.
Já a rotina do aposentado Edson Vicente é ainda mais intensa no bairro dos Coelhos. Todos os dias, ele precisa deixar e pegar os filhos na escola. “Seu Cícero tem minha confiança e por isso, com toda tranquilidade do mundo, deixo meu carro aqui. Se fosse com outros flanelinhas, como os que têm em alguns pontos do Recife, jamais deixaria, porque quando a pessoa não tem dinheiro, eles ficam querendo cobrar a força. Com Cícero é diferente”, conta o aposentado.
Cadastro
De acordo com a Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano (Semoc), no começo de 2015 foi realizado um cadastro de guardadores de carros. A ideia é identificar os flanelinhas e coibir irregularidades e abusos. Por enquanto, o trabalho de registro foi feito apenas no Bairro do Recife, somando, ao todo, 118 guardadores.
É importante que a população saiba que não é obrigada a pagar pela atuação dos guardadores e nem muito menos eles podem definir valores. Cabe a cada cidadão decidir se vale ajudar ou não aqueles que prestam um bom serviço.