Próximo final de semana, começa a Fliporto. Aquela festa literária que tinha lugar em Porto de Galinhas, e que, ano passado, desembarcou em Olinda. Em qualquer lugar, de qualquer modo, evento nunca agrada todo mundo. Em 2010, por exemplo, vi gente reclamando que as pessoas “zanzavam” entre a feirinha, o lago e a tenda dos debates, mas não assistiam às discussões.
E por que deveriam?
Escrevendo um texto sobre Iracema, Macunaíma e Avalovara, acabei fazendo viagem de volta aos meus tempos de colégio. Isso para constatar que, embora os livros tenham me emancipado e, depois, rigorosamente me salvado, também as minhas primeiras experiências literárias rimaram com obrigação e controle. Os professores guiavam tanto a leitura, vestiam as obras com tamanha lista de intenções autorais, estilos e julgamentos, que conseguir ter prazer após cada página era um exercício de rebelião.
Época de vestibular, já era possível guardar sobretudo a transcendência, as viagens que somente a leitura trazia, deixando para as salas de aula, para os exames da universidade, toda aquela coisa estupidamente esquematizada que os manuais e ementas chamam de literatura. Ou seja, se não podia me libertar totalmente, ao menos me dividia em dois leitores: um, libertado pelas palavras; o outro, domesticado pelo sistema educacional.
Em parte, ofício da crítica literária interessou exatamente por conciliar as atividades que maioria dos professores tinha divorciado: liberdade e reflexão. É raro que alguém passe pela juventude sem sentir essa cortina de fumaça, a angustiante sensação de que há obras a serem lidas com fruição e outras pragmaticamente, algumas com deleite e outras forçosamente. Existem inúmeros alunos para os quais nem mais existe a cortina, tudo foi tomado pela fuligem, ler significa sofrer.
A crítica e a teoria, porém, estão longe de ser vistas principalmente como chaves de conciliação. Tornaram-se graus adiantados da clivagem, os tijolos mais altos do muro.
Seus militantes observam através da barreira com falso desdém.Mesmo que não seja crítico, tampouco estudante, o leitor ainda convive com esses olhares famintos.
Intelectuais adoram repetir que os leitores são regidos pelo mercado, que rumam entre os cercadinhos como gado, mas o que muitos deles querem não é sumir com as correntes, apenas substituir os feitores. Em lugar dos empresários e da mídia, as pessoas devem seguir quem sabe o que é boa literatura. Teóricos e críticos são candeias, sacerdotes que reconhecem quais textos engrandecem e quais bestializam.
A espiral não tem limites, ela vai riscando as paredes enquanto desce (sim, essa não sobe, decai). Para tais censores, a criança só deve ser apresentada aos livros que valem a pena; os jovens têm obrigação de saber o que interessa nessas obras, quais os objetivos a serem cumpridos em cada autor; os adultos inteligentes são aqueles que fogem dos estratagemas mercantis, que chegam à Terra Prometida pelos especialistas.
Mesmo numa festa literária, como a Fliporto, se as pessoas resolvem não assistir aos debates, nem aprender nas oficinas, se gastam todo seu tempo “zanzando”, comprando livros e comendo pastéis, então são obviamente leitores-menores, gente que orbita na margem, beirando o limite da dignidade cultural. São pouco mais que alfabetizados funcionais, cidadãos tantinho mais evoluídos.
Creio que podemos viver a literatura, na mágica conjunção entre o que ela propicia e aquilo que estamos dispostos a oferecer, construindo diálogo ansioso por liberdade (ainda que incompleta). Melhor ainda: acredito que muitos daqueles que “zanzam” na Fliporto consigam se mover com mais desenvoltura entre a promessa de emancipação e o risco de controle que toda leitura implica.
Para muitos dos “especialistas” – enfurnados em academias, escritórios ou tendas de debates –, os textos lidos engrossam um quarto tenebroso. O conhecimento, ao invés de emancipar, de convidar para o voo, reforça a cela de espelhos. Luz alguma que chega é capaz de amenizar a trevas do cômodo.
Estou lá dentro, na tenda, esta foi minha escolha. Mas olho as pessoas lá fora sem valorizar o que nos divide. Antes, comovido pelo que nos une. A literatura que salva também irmana. Porque, entre suas tantas magias, a leitura pode se vestir numa solidão sem tamanho, assim como em sentimento do mundo como nenhum outro.
Que esses especialistas, submersos na escuridão, possam relembrar aquele outro motivo de mergulho. Que, como escreveu Octavio Paz, sobre poetas, “o homem só, lançado nessa noite que não sabemos se é a da vida ou da morte, inerme, perdidos todos os liames, descendo interminavelmente, é o homem original, o homem real, a metade perdida. O homem original são todos os homens”.
Sem esse sentimento de retorno, a escuridão das leituras mesquinhas e pretensiosas nada garante, além das paredes úmidas do poço, onde quebrar unhas, sangrar os dedos, na tola ilusão de que lá fora é que estão os aprisionados infelizes. Os teóricos e críticos terminam como fantasmas que se acreditam vivos e assombrados. E destino pior não imagino.