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Depois de o Conselho Federal de Medicina estabelecer como "procedimento experimental" a administração de hidroxicloroquina e cloroquina por meio de inalação, médicos alertam para os perigos da prática. Pneumologistas ouvidos pelo Estadão dizem que a nebulização com comprimidos pode inflamar o pulmão e piorar a condição de pacientes com Covid-19.

"O comprimido foi desenvolvido para ser absorvido pelo trato intestinal e não para nebulização", fala André Nathan Costa, pneumologista do Hospital Sírio Libanês. Ele explica que a superfície do pulmão é muito delicada e pode ser inflamada pela inalação do medicamento.

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"Isso é o mesmo que jogar gasolina para tentar apagar a fogueira porque você vai inflamar ainda mais um pulmão que já está inflamado. Pode causar insuficiência respiratória", diz. Não há nenhum estudo apontando benefícios da nebulização com hidroxicloroquina.

Existem medicamentos que são inalatórios, como alguns tratamentos para bronquite, mas esses remédios foram desenhados para isso. "São remédios que foram testados pela indústria farmacêutica com essa finalidade, foram desenvolvidos para serem bem tolerados pelo pulmão", diz Costa. Não é o caso de comprimidos macerados.

O presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia (SPPT), Frederico Fernandes, reforça o alerta. "Isso é algo criminoso. É uma ideia de quem desconhece fisiopatologia e o método científico. Não recomendo a inalação de comprimidos a ninguém", diz.

Fernandes fala que os comprimidos possuem silicato, uma substância similar a um talco. O pulmão entende o silicato como um corpo estranho e se "fecha", aumentando a dificuldade de respirar. Essa reação, junto com a inflamação do órgão, tende a piorar o quadro do paciente.

O presidente da SPPT lembra que não há nenhuma comprovação científica de que a hidroxicloroquina e a cloroquina tragam benefícios na prevenção à covid ou em qualquer fase do tratamento da doença. "Existe toda uma narrativa em cima desses remédios para diminuir a percepção do impacto da pandemia", fala.

Pelo menos cinco pessoas morreram no Brasil depois de serem submetidas à nebulização com cloroquina. Quatro casos aconteceram no Rio Grande do Sul e um no Amazonas. O presidente Jair Bolsonaro apoiou publicamente o experimento.

Para Fernandes, as mortes têm ligação com a inalação do remédio. "Não tem como saber se essas pessoas não morreriam, mas com certeza o quadro clínico foi agravado pela nebulização", diz. Ele fala que tanto o paciente quanto a família têm direito de recusar a nebulização de cloroquina se ela for oferecida como terapia contra a covid.

"Causa uma ansiedade não ter o que oferecer ao paciente e alguns médicos inventam tratamentos achando que é melhor fazer alguma coisa do que não fazer nada. Mas isso é uma falácia porque pode prejudicar mais do que ajudar."

Fernandes diz ainda que, mesmo se o paciente ou seus familiares concordarem com a prática, o médico não estará isento de culpa caso o quadro piore em razão da inalação.

Segundo a Apsen, farmacêutica que é a principal fabricante da hidroxicloroquina no Brasil, a utilização do medicamento é recomendada apenas nas indicações previstas em bula, as quais são aprovadas pela Anvisa.

"Não há estudos dos efeitos do Reuquinol administrado por vias não recomendadas. Portanto, por segurança e para garantir a eficácia desse medicamento, a administração deve ser feita somente por via oral, conforme indicado em bula. Reforçando que não há aprovação de nenhum órgão regulador da saúde, nem da OMS, para sua utilização no tratamento da covid-19", diz.

A Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas demitiu e investiga a médica ginecologista Michelle Chechter, que trabalhava na maternidade Instituto da Mulher Dona Lindu, em Manaus, por aplicar nebulização de hidroxicloroquina como tratamento para covid-19. Pelo menos uma paciente morreu após o procedimento, conforme a secretaria.

A mulher morta depois da nebulização havia acabado de dar à luz. A pasta informou que o tratamento não faz parte dos protocolos terapêuticos do Instituto Dona Lindu "nem de outra unidade da rede estadual de saúde, ainda que com o consentimento de pacientes ou de seus familiares", diz nota da secretaria. O bebê passa bem.

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Conforme a pasta, "o procedimento tratou-se de um ato médico, de livre iniciativa da profissional, que não faz mais parte do quadro da maternidade, onde atuou por cinco dias". O comunicado diz também que "tão logo tomou conhecimento do ato, a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas determinou abertura de sindicância e o afastamento da profissional".

A morte da paciente ocorreu em fevereiro, mas somente agora foi tornada pública. A secretaria diz que a médica passou a fazer parte da equipe em 3 de fevereiro "após contratação em regime temporário pela secretaria junto com outros 2,3 mil profissionais de saúde, via banco de recursos humanos disponibilizados ao Estado pelo Ministério da Saúde".

A secretaria afirma que uma outra paciente sobreviveu à nebulização de hidroxicloroquina. "Conforme o instituto informou à secretaria, duas pacientes foram submetidas ao tratamento de nebulização de hidroxicloroquina. Ambas assinaram termo de consentimento, como relatado em prontuário. Uma das pacientes veio a óbito e a outra teve alta. Todas as informações sobre o atendimento estão registradas em prontuário", afirma a pasta.

O texto diz ainda que a secretaria e o instituto não compactuam com a prática de "qualquer terapêutica experimental de teor relatado e não reconhecida e entendem que tais práticas não podem ser atribuídas à unidade de saúde, que tem como premissa o cumprimento da lei e dos procedimentos regulares, conforme os órgãos de saúde pública e os conselhos profissionais".

A paciente de Manaus não é a primeira a morrer depois de passar por nebulização de hidroxicloroquina. Em março, três pacientes que passaram pelo procedimento morreram durante o tratamento em Camaquã, no Rio Grande do Sul. A nebulização foi aplicada no Hospital Nossa Senhora Aparecida, que, assim como a maternidade de Manaus, informou que o procedimento não faz parte de seus protocolos.

Selo de 'tratamento precoce'

A ginecologista Michelle Chechter respondeu da seguinte maneira a pedido de contato feito pela reportagem: "nesse momento não estou conseguindo dar entrevistas. Futuramente entro em contato". Em suas redes sociais a médica mantém um selo com os dizeres "covid-19. Eu apoio o tratamento precoce". O chamado "tratamento precoce" é o uso de medicamentos sem comprovação de eficácia contra covid-19, como cloroquina e ivermectina.

Pelo menos uma publicação sobre eficácia da cloroquina da médica na rede social Facebook foi marcada como "informação falsa". Michelle Chechter é ainda apoiadora do presidente da República, Jair Bolsonaro, que também defende o uso de medicamentos sem eficácia contra a doença. Em publicação recente a médica publicou fotos da visita de Bolsonaro a Chapecó, em Santa Catarina, município que teria supostamente conseguido reduzir internações por covid-19 com uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença.

A cidade, no entanto, à época da visita do presidente, no início do mês de abril, tinha 100% dos leitos de unidade de terapia intensiva ocupados, além de ter mais mortes por covid-19 por 100 mil habitantes que Santa Catarina e o Brasil. Segundo Bolsonaro, Chapecó tinha feito um "trabalho excepcional" na pandemia e deu liberdade a médicos para prescreverem o "tratamento precoce".

A família do aposentado Lourenço Pereira, 69 anos, questiona na Justiça o uso de nebulização com hidroxicloroquina para o tratamento de covid-19. O homem era morador da cidade de Alecrim, no interior do Rio Grande do Sul, e foi internado no dia 19 de março, no Hospital de Caridade de Alecrim, vindo a falecer no dia 22. Segundo o prontuário a que a família teve acesso, o médico Paulo Gilberto Dorneles prescreveu no dia 20 de março o procedimento de nebulização com o medicamento que, de acordo com diversas pesquisas, não tem eficácia no combate ao coronavírus.

Filha do aposentado, Eliziane Pereira, 32 anos, conta que a família não foi comunicada nem consultada sobre o tratamento. De acordo com ela, Lourenço foi internado sem a presença de nenhum familiar, já que a mãe de Eliziane estava na casa da filha, em Porto Alegre, para tratamento médico. As informações entre os familiares e o paciente eram trocadas através do celular, e foi assim que Eliziane recebeu a notícia de que o pai estava se sentindo pior, justamente após a nebulização com cloroquina. "Não tivemos nenhuma informação do quadro do meu pai quando ele internou, o que o médico falou, ele mesmo nos repassou no dia 19."

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Embora o prontuário aponte que o tratamento tenha começado apenas no dia 20, Eliziane diz acreditar que a nebulização com cloroquina tenha iniciado já no dia 19. "Tem algumas informações escritas a mão e para nós que não somos da área não conseguimos entender, mas acredito que a medicação tenha iniciado já no dia 19 porque no decorrer do dia 20 meu pai me passou uma mensagem dizendo que estava se sentindo estranho porque no dia seguinte já não conseguia respirar sem ajuda do oxigênio."

Lourenço era semianalfabeto - de acordo com a filha sabia apenas escrever o próprio nome e, mesmo assim, de forma incompleta. A família afirma que não foi consultada em nenhum momento sobre o tratamento que iria ser aplicado. "O fato de já no sábado o nosso pai não conseguir ficar sem oxigênio nos faz questionar essa conduta, que não nos foi repassada, questionada ou informada, por qual motivo ela foi usada, o que me leva a crer que ela tenha contribuído para a piora do meu pai."

Os familiares de Lourenço comunicaram o fato ao Ministério Público (MP) de Santo Cristo e o caso ficou sob a responsabilidade do promotor Manoel Figueiredo Antunes. Ele já requisitou os prontuários médicos e documentos de Lourenço para requisitar a abertura do inquérito policial.

A reportagem procurou a direção do Hospital de Caridade de Alecrim, que alegou que não iria se manifestar à imprensa, mas apenas aos órgãos competentes.

Em busca de justiça

Eliziane afirma que se a família fosse consultada, não autorizaria o tratamento com o remédio reconhecidamente ineficaz no combate ao coronavírus. Agora, ela espera que o médico que prescreveu a medicação esclareça os motivos que o levaram a adotar o tratamento. "Queremos que o profissional prove que aquela medicação não piorou o caso clínico do meu pai e que ela não levou ele a óbito. Além do uso desse medicamento a falta de assistência dentro do hospital enquanto meu pai ficou internado, vivenciando o descaso e negligência", afirma Eliziane ao citar que o pai não foi submetido a nenhum exame durante o período de internação. Ela diz temer algum tipo de retaliação, já que a mãe ainda vive na pequena cidade de Alecrim, e o médico que está sendo questionado tem mais de 20 anos de trabalho na comunidade. De acordo com ela, nas redes sociais já foi possível sentir animosidades. "Não queremos aparecer, tanto que relutamos em conversar com a imprensa, mas sim buscar a verdade."

Lourenço era um homem simples de uma cidade do interior, pai de sete filhos, entre eles Eliziane, que se formou em direito no início de março. A formatura, mesmo online, não pôde ter a presença dele, já que a filha estava com covid na época, e ele não pôde acompanhá-la em casa recebendo a graduação. Para Eliziane, uma marca ainda mais forte, já que o pai faleceu dois dias após seu aniversário.

Este não foi o primeiro caso no Rio Grande do Sul de pacientes que faleceram após receber nebulização de hidroxicloroquina. Entre os dias 22 e 23 de março, três pacientes internados no Hospital Nossa Senhora Aparecida, em Camaquã, cidade na região Sul do Estado, faleceram após receberem o tratamento. Diferente do caso de Lourenço, eles foram informados sobre o procedimento, chegando a buscar na Justiça a autorização para receber a nebulização por hidroxicloroquina. A médica que ministrou o tratamento foi afastada do hospital.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul vai investigar a conduta da médica Eliane Scherer, que receitou nebulização com hidroxicloroquina para pacientes do Hospital Nossa Senhora Aparecida, da cidade de Camaquã, na região sul do Estado. Três pacientes da Covid-19 que tiveram este tratamento morreram entre segunda (22) e quarta-feira (24). Esse remédio tem ineficácia comprovada cientificamente contra o novo coronavírus.

A investigação foi informada pela promotora de Justiça de Camaquã, Fabiane Rios. O MP vai averiguar se o procedimento de nebulização com hidroxicloroquina está dentro dos protocolos corretos e da ética profissional. Em conjunto com a Polícia Civil, a promotoria fará oitiva com os envolvidos e vai cruzar com as orientações do Ministério da Saúde. "Em constatada eventual falta, esta será encaminhada na esfera cível e administrativa. Se for provada a imperícia da médica ao adotar tal procedimento, causando o óbito dos pacientes, sua conduta será apurada na esfera criminal".

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Onyx e Bolsonaro

Eliane ficou conhecida em todo Brasil após o ministro Onyx Lorenzoni divulgar em sua conta no Twitter vídeo no qual ela administra nebulização com hidroxicloroquina. No último dia 19, o presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) também entrou ao vivo em uma rádio de Camaquã para sair em defesa do tratamento por meio da nebulização de hidroxicloroquina.

Além de utilizar um medicamento amplamente rejeitado pela comunidade científica no tratamento da covid, a médica o fez de uma forma pouco usual. Segundo o diretor-clínico do Hospital Nossa Senhora Aparecida, Tiago Bonilha, a nebulização em pacientes covid é altamente contra indicada, pois aumenta a produção de aerossóis que podem transmitir o vírus. Especialistas consultados pelo Estadão apontam que a prática pode trazer ainda mais riscos de efeitos colaterais para os pacientes do que a administração oral do remédio. Nesta semana, o Estadão também mostrou que pacientes foram parar na fila do transplante de fígado após usar o kit covid, com remédios sem eficácia contra a doença.

Eliane era integrante da escala de plantão do hospital, contratada por uma empresa terceirizada. Conforme Bonilha, ela já tinha um histórico de "incidentes de conduta", mas nada que a levasse a ser demitida. "No dia que houve o primeiro episódio da terapêutica dela no pronto-socorro, foi solicitado o desligamento dela." Bonilha diz que todos os problemas anteriores não seriam passíveis de demissão. Ele descreve o perfil de uma médica que criava dificuldades de acesso, na liberação de ambulâncias e macas e até mesmo, para atender as exigências de paramentação no setor de emergência.

Toda essa dificuldade, porém, contrastava com um perfil bem visto na cidade. Tão logo foi feito o pedido de demissão, pacientes reclamaram."A partir de então, iniciou toda uma campanha para que ela fosse reintegrada a essa escala porque ela salvava vidas", conta Bonilha, mostrando que o discurso em defesa da cloroquina havia surtido efeito.

Pacientes entraram na Justiça para ter acesso à terapia

Os pacientes chegaram a entrar na na Justiça exigindo a continuidade da nebulização com hidroxicloroquina. O pedido foi acatado. Aproximadamente cinco pacientes tiveram o tratamento de nebulização com cloroquina. Destes, três morreram nesta semana.

A médica teria se baseado na experiência de um único médico, que não é pesquisador a respeito do tratamento. "Em entrevista, ela chegou a falar quem é o médico que aplicou esse método. Mas o que acontece é que nunca vi nenhuma instituição séria fazer uso dessa medicação. Na minha opinião, essa prescrição transcende o caráter off label da categoria médica, tem uma série de protocolos de segurança que, a meu ver, fazem com que não seja uma terapia a ser aplicada".

Bonilha conta que Eliane não seguiu sequer os protocolos para informar a adoção do tratamento pouco convencional. "Fato que gerou uma quebra de harmonia entre ela e a equipe assistencial foi que na primeira vez que ela quis usar essa terapia, ela não formalizou essa prescrição. Ela orientou que fosse feita e o enfermeiro e o técnico me ligaram. A primeira coisa foi mandar ela prescrever no sistema formalmente o que ela quer que faça."

"O jeito com que a terapia foi apresentada, pareceu que aquilo fosse a salvação da pátria, a chance de cura dos pacientes graves", conta Bonilha. Ao Estadão esta semana, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, negou rever o parecer que libera médicos a prescreverem cloroquina, mas admitiu investigar médicos que tratarem kit covid como cura.

A proposta de Eliane era que estes pacientes seguissem internados no hospital, e ela então fosse até o local administrar o remédio por meio da nebulização. A direção do hospital então pediu que a transferência dos pacientes dos pacientes do tratamento convencional contra a covid para a experiência da médica fosse formalizada judicialmente, o que aconteceu e ela seguiu aplicando a terapia.

Em entrevista a uma rádio local, Eliane chegou a falar que se "emocionava" ao ver os pacientes recuperando o ar. "A impressão que tenho é que de repente essa sensação de alívio que os pacientes percebem tão logo fazem a terapia pode estar relacionada ao simples aumento da pressão na via aérea ou melhor fluxo de oxigênio causada pela nebulização. Se fosse feita com soro, poderia ter esse mesmo efeito", explica Bonilha ressaltando que esse procedimento não está prescrito para atender pacientes covid.

A reportagem do Estadão procurou a médica Eliane Scherer para explicar sua versão dos fatos, mas ela afirmou que não pretende mais falar com a imprensa.

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