O mês de setembro reserva espaço para um debate mais amplo, entre educadores, psicólogos e pedagogos, sobre como incluir pessoas com necessidades especiais nos ambientes educacionais com efetividade. Através da Semana da Educação Especial estes profissionais revisam os programas existentes, as políticas, cartilhas de orientação local e reacendem a dicotomia da inclusão versus integração. Um dos maiores desafios do ensino e aprendizagem de pessoas com deficiência (PCD) no Brasil ainda é fazer a teoria encaixar com a prática. Na realidade, os recursos não são suficientes e nem os mesmos para todos os espaços da educação, o que dificulta o trabalho do professor e a coexistência das necessidades de crianças PCD e crianças neurotípicas.
Apesar de crianças com necessidades especiais terem sido incluídas nos últimos dois decênios de formulação do Plano Nacional de Educação (PNE), foi somente em junho de 2014 que o programa estabeleceu a “Meta 4”, que diz respeito à inclusão, no ensino regular, de crianças e adolescentes com deficiência e/ou transtornos que afetam o aprendizado. O PNE parte de diretrizes que visam uma educação mais igualitária e de qualidade e, para tanto, estabelece 20 metas e estratégias para o ensino no país em todos os níveis (infantil, básico e superior). As metas são válidas para os 10 próximos anos de estratégias das políticas de educação para o Brasil.
##RECOMENDA##A versão que instituiu a Meta 4 — em vigor — só é um pouco mais nova que o Estatuto das Pessoas com Deficiência (EPD), funcionando desde o dia 3 de janeiro de 2016, e chamada de Lei Brasileira de Inclusão, instituída através da lei nº. 13.146 no dia 6 de julho de 2015.
Para tratar da prática e do avanço dessas metas, as cúpulas da educação se reúnem na Semana da Educação Especial, bem como para celebrar as conquistas já obtidas, é o que acredita a psicóloga especializada na adaptação de crianças e adolescentes, Giedra Marinho, entrevistada nesta matéria.
“A gente gosta de dizer que essa semana da Educação Especial é um espaço para dar maior visibilidade a essas pessoas, para quebrar vários mitos em relação às pessoas que possuem deficiências ou distúrbios intelectuais, e que muitas vezes são confundidas com pessoas incapazes. Elas não são incapazes, são limitadas, há questões que elas não lidam da mesma forma que uma pessoa neurotípica, uma pessoa com função cognitiva considerada normal. A semana serve também para a manutenção dos espaços que foram conquistados, presentes nas escolas, com salas de recursos multifuncionais, cujo espaço é adequado e preparado pras crianças e adolescentes que apresentam necessidades educativas especiais”, elucida Marinho.
O Programa Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais auxilia na oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE), prestado de forma complementar ou suplementar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades/superdotação matriculados em classes comuns do ensino regular, assegurando-lhes condições de acesso, participação e aprendizagem, e é regulamentado pelo MEC.
Esses programas são a perspectiva teórica e possuem peso histórico para o Brasil, que somente dentro das suas últimas duas décadas desenvolvem políticas contextualizadas para essa comunidade. No âmbito prático, que é onde vivem os educadores, pedagogos e psicólogos, o campo ganha maior profundidade. Confira abaixo a colaboração da profissional entrevistada pelo LeiaJá.
— Giedra Marinho, psicóloga especialista em Infância e Adolescência e mestre em Educação para o Ensino e Saúde (UNICAP/FPS/IMIP)
LJ: No que pode acarretar uma escola/ambiente educacional mal preparado para incluir pessoas com deficiência, motora ou intelectual, ou transtornos no geral? Há disparidade na aprendizagem de crianças bem acolhidas e mal acolhidas, ou essa questão é particular?
GM: As escolas, particulares ou públicas, deveriam ter um espaço que a gente chama de salas de recursos multifuncionais, que são espaços para contemplar e acolher todas as crianças e adolescentes que têm alguma questão de déficit intelectual ou cognitivo, ou que tem uma questão de síndromes, transtornos, distúrbios e outras dificuldades de aprendizagem. Então é um espaço que deveria ser sempre ocupado com um profissional da educação especial — professor, pedagogo — e que faça especialização em educação especial. Nas escolas que não têm esse espaço, o que que acontece? As crianças ficam nas salas regulares, comuns, e quando não tem assistência dentro da sala, o que agrava a situação, os professores têm que dar conta das crianças neurotípicas, que não tem nenhum tipo de problema, também das crianças com algum problema e atraso. Muitos professores reivindicam que é complicado para eles dar assistência aos dois tipos de criança. Então com certeza haverá déficit, haverá perdas, tanto para as crianças neurotípicas, porque dividirão o espaço e a atenção do professor, e com as crianças que precisam de mais atenção, que deveriam estar numa sala adequada, com o profissional adequado. O professor tem que se dividir, então há perdas para todos quando não há um espaço adequado, quando não há um profissional adequado na escola e nem dentro da sala de aula para prestar assistência.
LJ: Só a inclusão é suficiente ou é preciso integração?
GM: A inclusão só não é suficiente. Não adianta só incluir, não adianta jogar na escola, jogar na sala de aula, sem que se tenha uma integração completa da tríade família, escola e aluno. E essa integração tem que ser feita contemplando todas as necessidades que essa criança possui. Tem que ter o material adequado, tem que ter o profissional adequado, uma sala adequada; quando não tem isso, há perdas para todos, não só com as crianças com necessidades educativas especiais. É preciso falar em integração total, cooperação.
LJ: O Plano Nacional de Educação atual é bem atendido no tocante à inclusão?
GM: O Plano Nacional de Educação atual não é bem atendido quando envolve a inclusão. São muitos gaps, muitas falhas. A teoria é totalmente diferente da prática. Existe, dentro das políticas públicas da pessoa com deficiência, toda uma orientação; de fato, a gente tem um manual, uma cartilha que é oferecida às escolas de implementação dessas salas de recursos multifuncionais. Na teoria é tudo muito bonito, mas na prática a gente vê que não adianta. Na prática são feitos muitos arranjos: “a gente não tem esse material”, “a gente faz com esse aqui”, e não é o mais adequado. A gente tem também que adequar a questão da regionalização. Não se pode ter uma única política para todo o país, porque a gente tem que adequar as necessidades culturais, econômicas, sociais de cada região.
LJ: Quais as principais dificuldades de inclusão no país?
GM: As principais dificuldades de inclusão no país têm um só nome: preconceito, que é exatamente o conceito que a gente adquire antes de conhecer. As pessoas têm muito preconceito: “não vou colocar meu filho numa escola que tem uma criança retardada”, “que tem uma criança mongolóide”, que é como antigamente chamavam as crianças com síndrome de Down. Muita gente não sabe nem a origem desse nome "mongolóide", que vem da etnia mongol, um povo que tinha olho puxado e em grande parte, apresentava um certo retardo mental. Daí é que vem esse termo pejorativo de chamar as crianças com síndrome de Down, porque elas também têm o olho puxado, de mongolóide. O preconceito é a base para uma das principais dificuldades dessa integração das crianças com necessidades educativas especiais nas escolas. Existem escolas aqui em Recife que têm salas de aula nas quais crianças com necessidades educativas especiais participam junto às crianças neurotípicas; têm salas que são só essencialmente para essas crianças especiais. Os pais escolhem e eu acho que isso é uma possibilidade para a gente tentar melhorar essa questão. Ou ela (a PCD) fica integrada numa sala com alunos regulares ou ela participa de uma sala com a maior parte das crianças com problemas parecidos com os dela. Acho que isso ainda é uma coisa pra ser discutida, uma pauta que não é totalmente amadurecida
LJ: A criança deve se adaptar à escola ou ao contrário?
GM: Esse movimento tem que ser de mão dupla: tanto a escola tem que se adaptar às necessidades da criança, quanto a criança deve se adaptar a esse colégio. As duas coisas têm que acontecer simultaneamente, não podem acontecer sozinhas. Para que se consiga atingir os fins educativos, os dois devem buscar a adequação.
LJ: Quais os preconceitos referentes às pessoas com deficiência que ainda precisam ser urgentemente combatidos?
GM: Os preconceitos são de que as crianças são incapazes, que elas têm um déficit cognitivo e retardo grandes, que fazem com que elas não consigam fazer nada, mas isso não é verdade. Elas têm limitações e podem alcançar objetivos que podem ser traçados individualmente, através de um plano de objetivos de aprendizagem para cada criança. Já escutei pais falando que não querem suas crianças perto de crianças com necessidades especiais porque seus filhos podem pegar a “doença”, como se fosse algo que se pega pelo contato. Por exemplo, crianças que têm paralisia cerebral, que é uma alteração neurológica na hora do parto, pelo fato de oxigênio no cérebro da criança. E aí essa criança nasce com uma condição, às vezes bem severa, a tetraparesia, a hemiparesia, que vai prejudicar principalmente a parte motora dela.
Às vezes a parte cognitiva é preservada e algumas dessas crianças apresentam uma espasticidade muscular, uma rigidez muscular e alguns apresentam saliva em excesso. Muitas vezes essa baba ou saliva tem um cheirinho que é desagradável, e muitas mães sentem nojo, não querem que seus filhos encostem na saliva dessa criança porque acham que elas vão pegar (uma doença). Então existe esse mito de que seu filho que é neurotípico e não tem nenhum problema, vai pegar alguma dessas questões com a criança, ou de que essas crianças vão atrapalhar o desenvolvimento do seu filho. Muitas famílias pensam que o professor, por dar assistência a essas crianças que demandam muita atenção, poderão prejudicar seus filhos ou que suas crianças receberão menos atenção. Por isso é preciso lutar para que todo professor que tenha dentro de suas salas de aula crianças e adolescentes com necessidades alternativas, tenha acompanhantes terapêuticos (ATs), para que eles deem suporte aos professores. Mesmo que seja uma criança só, já é suficiente para ter o acompanhante terapêutico.
LJ: Deve haver uma diferença na forma de educar PCD e não-PCD, ou cada aluno deve ser tratado com particularidade independente de um diagnóstico?
GM: Não pode haver o mesmo tratamento, tipo de obrigatoriedade ou mesmo tipo de tarefa para uma criança que tenha necessidades especiais. Porque uma pode escrever e a outra não, uma pode ter dificuldade de pegar no lápis, uma outra tem déficit de atenção e de concentração. Por isso, repito, é importantíssimo ter as salas de recursos multifuncionais, com profissionais adequados. A gente fala da integração da criança à sala de aula com crianças que não têm deficiência, e isso envolve a questão da sociabilidade, da interação emocional, da empatia que essas outras crianças têm com elas, de aprenderem a ser mais tolerantes e pacientes. Mas de fato, elas precisam dessa assistência diferenciada, que pode ser dada por um acompanhante terapêutico dentro da sala de aula, mas deixar a criança com necessidades sozinha e esperar que ela tenha o mesmo desempenho das outras crianças é algo que não vai acontecer. Ela precisa de logística e o professor também, pois o professor não dá conta só.