Até dentro das dificuldades impostas pela pandemia da Covid-19 existem grupos que conseguem se sair melhor ou pior que outros no Brasil. A população preta, desempregada - ou em trabalhos informais - que vive em áreas mais precárias e com difícil acesso aos serviços de saúde de qualidade é a mais impactada pelos resultados da doença que já matou mais de 362 mil brasileiros.
Segundo pesquisa da revista científica The Lancet, publicada neste mês de abril, as dificuldades socioeconômicas afetaram fortemente o curso da pandemia no país, mais do que a idade e as comorbidades das pessoas infectadas. Dentro dessas desigualdades, a população preta/parda do Brasil é a que mais morre em decorrência do vírus - podendo estas mortes estarem relacionadas às diferenças na sustentabilidade ao Covid-19 e no acesso aos cuidados de saúde, incluindo cuidados intensivos para essa população.
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A análise do The Lancet reforça que os negros e pardos brasileiros têm, em média, menos segurança econômica, são menos propensos a ficar em casa e trabalhar remotamente e representam uma proporção substancial de profissionais de saúde. Além disso, comparando os índices de vulnerabilidade socioeconômica dos estados aos registros de casos e mortes provocadas pelo novo coronavírus, o levantamento mostra que as regiões mais pobres do Brasil, como o Norte e o Nordeste, foram as mais impactadas.
A cidade de Manaus, Amazonas, por exemplo, viveu o pior cenário pandêmico do país entre os meses de janeiro e fevereiro deste ano. Sem oxigênio e com hospitais lotados, a grande demanda obrigou que as equipes de saúde precisassem realizar ventilações manuais para manter os pacientes vivos, enquanto familiares, amigos e até artistas de outros Estados lutavam para conseguir oxigênio para os manauaras que, sem esse suporte, iam morrendo ‘asfixiados’ por conta de um sistema de saúde colapsado.
"Nossa análise apóia um esforço urgente por parte das autoridades brasileiras, para considerar como resposta nacional ao COVID-19, poder proteger melhor os pardos e os negros brasileiros, bem como a população dos estados mais pobres, de seu maior risco de morrer de COVID-19", publicou a revista.
Não bastasse os 13,7 milhões de infectados e mais de 362 mil pessoas que perderam a briga desigual para o vírus, no Brasil, a fome bate à porta de milhares de brasileiros que vivem o dilema diário sobre o que comer.
Pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com a Universidade de Brasília (UnB) divulgaram que 59,4% dos lares brasileiros apresentaram algum grau de insegurança alimentar no último quadrimestre de 2020.
Outros dois quintos dos lares diminuíram o consumo de alimentos importados, como carnes e frutas. Os pesquisadores mostram que a situação mais grave da insegurança alimentar está no Nordeste. Por aqui, 73% das casas não tinham o que comer, ou tiveram que diminuir drasticamente o que vinha na sua cesta básica.
Os resultados desta pesquisa, que considera a insegurança alimentar a incerteza do que irá comer, foram divulgados na última terça-feira (13), tendo sido feita entre novembro e dezembro de 2020.
A insegurança alimentar só piora no Brasil. Foto: Fotos Públicas
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) também indica que nos últimos meses de 2020, cerca de 19 milhões de brasileiros passaram fome.
Além disso, do total de 211,7 milhões de brasileiros, 116,8 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos suficientes dentro de casa.
No Alto do Pascoal, periferia localizada na Zona Norte do Recife, Ruth* sentiu na pele as dificuldades impostas pela pandemia da Covid-19. Antes dos primeiros casos surgirem no Brasil, ela trocou as ruas do Recife e de João Pessoa, Paraíba, onde trabalhava como profissional do sexo, pelas cozinhas. Ela tinha conseguido um emprego, ainda na informalidade, mas que garantia um salário fixo, sem ter que ficar na espera de clientes.
“Todo mundo sabe que conseguir trabalho é difícil, ainda mais quando você é uma travesti. Ninguém quer dar oportunidade, então eu conseguia meu dinheiro com o meu corpo. Depois de um tempo a gente vai cansando e eu tinha conseguido a oportunidade de ser cozinheira - e como eu gosto de cozinhar - agarrei logo”, exclama Ruth.
No entanto, depois de alguns meses nesse novo trabalho, ela lembra que os casos de Covid-19 começaram a crescer e a situação começou a “apertar”, não tendo mais garantido pelos seus patrões o salário. “A mulher só queria me dar comida, até quando eu pedia dinheiro para comprar o meu cigarro ela dizia que não tinha. Não estou podre pra ficar me humilhando, não. O jeito que eu encontrei foi voltar pras ruas, meu filho. Hoje mesmo eu fui pra um motel belíssimo, tô aqui com o meu dinheirinho e minhas duas carteiras de cigarro”, disse a profissional.
Mesmo voltando para a prostituição, Ruth aponta que está passando por dificuldades, tendo que “correr atrás de comida”, seja ela ofertada pelo governo municipal ou por pessoas próximas que sabem das dificuldades que ela enfrenta dentro de casa.
Neste momento de pandemia, o número de pessoas desempregadas no Brasil foi estimado em 14,3 milhões no trimestre encerrado em janeiro deste ano, o maior contingente desde 2012, início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgado no dia 31 de março, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em Pernambuco, entre janeiro e fevereiro 37.044 pessoas perderam o seu emprego. Além disso, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) mostra que, de abril até dezembro de 2020, 808.334 pessoas fizeram acordos trabalhistas no Estado. Esse número inclui contratos intermitentes, suspensão de trabalho e redução de 70%, 50% ou 25% do salário - tudo no período pandêmico.
O Auxílio Emergencial deve ser disponibilizado poucas pessoas, se comparado ao ano passado. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens/Arquivo
Auxílio Emergencial
Na nova fase do auxílio emergencial deste ano, apenas uma pessoa poderá acessar o benefício por família. Além disso, o valor médio das novas parcelas é de R$ 250, variando de R$ 150 a R$ 375, a depender do perfil do beneficiário e composição de cada família.
Segundo dados do Ministério da Cidadania, as famílias em geral vão receber R$ 250; a família monoparental, chefiada por uma mulher, vai receber R$ 375. Essa queda brusca nos valores recebidos pelas pessoas, que estão vivendo uma situação complicada com o desemprego e o desaquecimento da economia, deve ajudar, mas não como das primeiras vezes que o auxílio foi liberado, com valores variando entre R$ 300 e R$ 1.200.
Tendo que pagar água, luz, internet e aluguel, a manicure Sônia Pereira Barbosa, 47 anos, aponta estar vivendo um dos momentos mais difíceis de sua vida. Como não tem contrato com a empresa que trabalha, ela ganha pela quantidade de unhas que cuida. Na necessidade do isolamento social e das restrições impostas pelo governo de Pernambuco, Sônia se viu sem trabalho e sem dinheiro para comprar o básico.
“Desde quando a quarentena começou, pra mim ficou muito difícil porque eu trabalho como Microempreendedor Individual (MEI), então a empresa que eu trabalho não tem vínculo comigo. Eu ganho pelo que faço, então pra mim ficou muito difícil, principalmente por não ter minha carteira assinada”, explica.
Ela diz que junto com sua filha chegou a ter acesso ao auxílio emergencial prorrogado, que se encerrou em dezembro do ano passado. A junção do dinheiro recebido por mãe e filha ajudava a manter a casa onde moram, juntamente com mais duas crianças de 5 e 2 anos.
Neste ano, sem trabalho certo, Sônia soube que apenas sua filha, de 22 anos, vai ter acesso ao auxílio, já que apenas um CPF por família vai ser beneficiado nesta nova rodada. O valor que a jovem deve receber é de R$ 375. A manicure está preocupada, sem saber como vai fazer para pagar o aluguel de R$ 400, pagar água, luz, internet, comprar o gás e ainda colocar comida na mesa com esse valor. “O que dá pra fazer com isso? É praticamente o valor do gás de cozinha”, lamenta a manicure.
Essa segunda onda da pandemia deixa latente que as piores vítimas da crise sanitária são, ‘escancaradamente’, os trabalhadores temporários e mal pagos, aqueles que vivem na informalidade, não têm trabalho e vivem nas áreas mais pobres das cidades brasileiras, com destaque para o Norte e Nordeste do País.
*Nome fictício