De uma juventude conflituosa, muito se guarda na memória. É difícil esquecer-se de uma época em que sair de casa em nome de uma identidade de gênero foi a única alternativa diante do preconceito e da rejeição familiar. Aos 14 anos de idade, Francine Correia revelou-se à família como transexual e acabou sendo expulsa do próprio lar; saiu da cidade de São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana do Recife, e descobriu as realidades das ruas do Centro da capital pernambucana, tornando-se profissional do sexo antes mesmo de completar a maioridade.
Em frente à Casa da Cultura fez os primeiros contatos com os clientes. A escolha pelo local, segundo Francine, se deu pela facilidade de chegar ao Centro do Recife, além do conhecimento construído com outros profissionais do sexo que atuavam na área. "Saí de casa muito cedo porque dividi minha sexualidade com meus pais. A gente não saía das nossas casas como travesti, trans ou homossexual, a gente saía como gay. Até trabalhei em casas como doméstica, mas quando ficava desempregada, ia para a rua; fui aprendendo a partir dos 14 anos, conversando com os clientes", recorda.
##RECOMENDA##
Hoje, aos 43 anos de idade, Francine mostra que superou o atrito familiar. No entanto, ainda tenta passar por cima de um cenário de crise, em alguns momentos desolador, que corresponde à vivência como profissional do sexo nas ruas. De acordo com ela, além dos riscos de violência nos espaços públicos, a escassez de clientes se apresenta como o principal problema enfrentado por travestis e transexuais que tentam conquistar uma renda ou complementá-la. Nos finais de semana, insiste em aguardar companhias na Avenida Mário Melo, área central da cidade, cobrando inicialmente R$ 50 por programa. "Hoje você pede R$ 50 e o cliente oferece R$ 30, e olhe lá. Quem vive hoje de prostituição de rua morre de fome", comenta.
Francine não consegue definir ou até mesmo descrever o perfil de seus clientes, além de garantir que nunca perguntou quem é ou não comprometido. Segundo a profissional do sexo, é praticamente impossível somar uma renda fixa mensal com o dinheiro oriundo da prostituição, e por isso, ela ainda trabalha como cabeleireira no bairro do Curado, no Recife, onde reside sozinha. "Já teve noite de eu não pegar cliente. Se em um final de semana aparecerem três, cinco pessoas, já é muito para os dias de hoje", conta.
Assim como Francine, a travesti Roberta Paris (foto), 42 anos de idade e com quase duas décadas como profissional do sexo, também enxerga diminuição na clientela. De acordo com ela, há cerca de cinco anos sua renda oriunda dos programas sexuais era em torno de R$ 1 mil. "Hoje só consigo ganhar mais ou menos R$ 100 por semana. Trabalho na Imbiribeira, a partir das 20h, mas está muito complicado. Há poucos clientes, são contados a dedo. É muita violência na rua e aumentou o consumo de drogas", diz Roberta, justificando a ausência da clientela.
Roberta revela que a maioria de seus clientes corresponde a homens adultos, muitos deles envolvidos em problemas de relacionamento. Ela afirma que, em algumas ocasiões, não chega nem a praticar sexo, pois o cliente se contenta apenas com uma boa conversa e troca de conselhos. "Às vezes somos até um pouco de psicóloga", brinca. Para a profissional do sexo, esse tipo de trabalho está acabando, principalmente para as transexuais e travestis com anos e anos de atuação. "Só vou para as ruas porque sou vivida, mas preciso ainda trabalhar como auxiliar de cozinha para complementar minha renda", fala.
Em uma das esquinas da Avenida Mascarenhas de Morais, no bairro da Imbiribeira, Zona Sul do Recife, ao menos cinco profissionais do sexo se reuniram em busca de clientes. O calendário marcava uma sexta-feira, o relógio apontava para quase nove da noite e até então, nenhum centavo ganho. Uma das profissionais, 36 anos, que preferiu não ter a identidade revelada, confirma a escassez de clientes. Ela afirma que começou a fazer programas aos 16 anos e nunca presenciou uma realidade tão ruim como a atual. “Praticamente não recebemos clientes. A salvação são os mais antigos, que nos conhecem e sempre que podem nos procuram”, conta.
[@#video#@]
Valorização da saúde e o fortalecimento do respeito
O Recife recebeu, no dia 25 de agosto, um evento voltado a profissionais do sexo. O seminário, cujo título foi "Do que nos fala a rua", focou nas mulheres travestis e transexuais, além de homens, e procurou discutir o cotidiano desse público e os desafios existentes no mundo da prostituição. Entre os assuntos abordados, formas de violência, dificuldade no acesso aos serviços de saúde e a diminuição da clientela.
O evento foi promovido pelo Grupo de Trabalho Prevenção Posithivo (GTP+), organização não governamental que há 17 anos realiza ações de prevenção de HIV/Aids, tuberculose, formação em direitos humanos e redução de danos. Coordenador da ONG, Wladimir Reis detalhou ao LeiaJá o contexto dos profissionais do sexo no Recife e Região Metropolitana, alertando para a importância de preservar o respeito a essas pessoas.
"A gente trabalha com uma população de profissionais do sexo ainda mais invisível diante da sociedade: são mulheres travestis e mulheres transexuais. Para esse público, é mais difícil e complexo, porque já não há oportunidades de trabalho formal, então, consequentemente, elas aparecem mais no trabalho sexual. Se a gente entende que as regiões Norte e Nordeste são as mais vulneráveis do Brasil, então, esses são locais abertos a quem busca o sexo barato. Geralmente, recebemos muitos turistas estrangeiros em busca desse profissional mais barato", explica Reis.
"Está mais complicado porque o país vive uma crise. Essa crise é extremamente forte nas populações vulneráveis. Nas regiões mais nobres da cidade, os profissionais do sexo são mais novos e mais bonitos. Quando você vai para os subúrbios e bairros da cidade, a situação fica mais difícil. É importante salientar que esses profissionais fazem programas porque faltam outras oportunidades de trabalho", complementa o coordenador do GTP+.
Uma das mais importantes ações do GTP+ é o Projeto Mercadores de Ilusão. Todas as sextas-feiras, a partir das 22h, integrantes da iniciativa visitam pontos de prostituição no Recife, a exemplo da Avenida Norte, Boa Viagem, Boa Vista, Avenida Mário Melo, Rua da Soledade e Imbiribeira. Durante as visitas, são repassadas informações aos profissionais do sexo sobre prevenção de doenças e valorização dos direitos humanos.
De acordo com a coordenadora do Mercadores de Ilusão, Céu Cavalcanti, na grande maioria das situações, mulheres transexuais e travestis entram no universo da prostituição por problemas sociais, como rejeição familiar e falta de oportunidades de emprego no mercado formal. Ela também destaca que existe uma parcela que realiza programas não por necessidade, mas para complementar a renda financeira.
"Começam a fazer esse trabalho por vulnerabilidades. As meninas travestis, por exemplo, saem muito novas de casa. Mas a gente também encontra pessoas que trabalham para complementar a renda. Aquela ideia de que 'a pobre coitada foi fazer trabalho', é preciso ter cuidado para não estigmatizar", reforça Céu. "No público que a gente atende, a maioria infelizmente nos mostra que está no trabalho sexual por falta de opção. A gente entende que a pessoa não tem outra possibilidade de vida, de comer e trabalhar. A maioria das mulheres transexuais queria fazer outra coisa", complementa.
Em 2013, uma estimativa realizada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelou um dado alarmante. Segundo a instituição, no Brasil, 90% das pessoas transexuais devem ser profissionais do sexo ou ter tido experiência. No que diz respeito ao trabalho do GTP+, interessados em conhecer a ONG podem acessar seu endereço eletrônico.