“O Estado entregou meu filho todo queimado, em um caixão de R$ 250. Sete horas da manhã me ligaram para avisar que teve a rebelião e um dos mortos era meu filho. Encaminharam para o IML [Instituto Médico Legal] e eu fui reconhecer. Só isso, até hoje. Depois, vi fotos do meu filho algemado, nu, no pátio da unidade. Isso é socioeducativo? A direção e os agentes que fizeram isso, não foi simplesmente os adolescentes que mataram. Me falaram que ele estava de castigo. Tem precisão de colocar algema?”.
Esse é o relato de Paulo Félix de Almeida, 44, pai de um dos adolescentes mortos na rebelião do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Timbaúba (PE), ocorrida no dia 25 de outubro. Ele é apenas uma das pessoas que apresentaram denúncias de graves violações de direitos humanos de jovens com menos de 18 anos que praticaram delitos e estão cumprindo medida em unidades da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase). Os depoimentos foram feitos nesta quinta-feira (24) para uma comitiva encabeçada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que começou hoje uma visita em Pernambuco para verificar denúncias contra o sistema do estado.
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Da sociedade civil a membros de órgãos como o Tribunal de Justiça e da Defensoria Pública de Pernambuco, todos os presentes foram enfáticos ao afirmar as péssimas condições do sistema no estado. Superlotação, torturas físicas e psicológicas, estupros, falta de materiais básicos como papel higiênico e material de limpeza, adolescentes levados para a aula algemados e ausência de atividades educativas foram alguns dos temas apresentados na reunião.
Em seu relato, proferido de pé no meio da comissão federal, Paulo contou ainda que essa não foi a única vez em que seu filho teve seus direitos violados. Em uma passagem anterior pelo sistema, há quatro meses, o jovem de 17 anos sofreu uma tentativa de estupro na unidade de Abreu e Lima. “A direção colocou meu filho numa sala para fazer a segurança dele, mas nem um porco ficava lá. Meu filho foi vítima e foi tratado como um bicho”, diz. O pai narra que foi avisado por um dos próprios adolescentes por meio de um celular clandestino. Quando ele chegou ao local, encontrou fezes e urina espalhadas na cela e não havia colchão. Por três dias o garoto dormiu em cima de um pano, segundo o soldador.
Estado não cumpre TAC
A crise no estado tem um histórico. O procurador de Justiça Francisco Salles, do Ministério Público de Pernambuco, expôs a luta para que um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado em 2012, seja obedecido pelo Estado. “Sentei com o Estado por quase nove meses para construir o acordo. O estado de Pernambuco tirou o que pôde e já tinha descumprido dois TACs antes desse, o primeiro de 2009. Ficou acertado dois anos para a construção de unidades de internação. Até hoje o acordo nunca foi cumprido”, diz. “Nesse período o Estado assassinou 32 adolescentes”.
Um dos momentos de maior comoção foi ocasionado pelo procurador. Depois de um relato repleto de palavras como “vergonha” e “fraude” para classificar o sistema socioeducativo, passou as fotos dos adolescentes mortos nas rebeliões de Timbaúba e Caruaru - local onde sete adolescentes morreram em uma rebelião no dia 30 de outubro . Jovens completamente queimados, alguns com as mãos amarradas e algemadas, e um deles com os membros amputados.
O desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) e coordenador da Infância e Juventude do órgão, Luiz Carlos Figueiredo, criticou ainda a falta de sistemas de Liberdade Assistida, responsabilidade dos municípios, e disse que uma das causas da violência e da superlotação das unidades é a internação de adolescentes que cometeram crimes menores, muitas vezes pela primeira vez.
“Um dos meninos mortos na rebelião estava preso por furtar um relógio”, disse. Figueiredo defendeu audiências concentradas nas unidades para reavaliar casos e a estruturação das redes municipais que permitam a adoção de medidas em meio aberto – já que, segundo ele, muitos juízes enviam jovens para o internamento porque não há outra alternativa.