“Não sou biografável”. Assim se define o poeta cuiabano Manoel de Barros. Por se considerar um “ser letral”, jamais permitiu gravar entrevistas que tivessem por suporte as “traquitanas tecnológicas” da modernidade. Resistiu mais de meio século porque “não saía de dentro de mim nem para pescar”.
A gentil demanda e sutil insistência do diretor Pedro Cezar dobraram o poeta. Resultado: o público brasileiro ganhou o documentário premiado no Festival de Cinema de Paulínia (2009) Só dez por cento é mentira – A desbiografia oficial de Manoel de Barros, vertido em DVD pela Biscoito Fino.
Contou ponto o neologismo desbiografia, uma das paixões do poeta, (admirador dos desheróis de Chaplin), antecedida pela saborosa expressão do próprio autor na definição de sua obra literária: “Só dez por cento é mentira. Noventa por cento do que escrevo é invenção”.
Manoel de Barros inventa poesia para ser sentida e para aumentar o mundo. Anticanônico confesso: “nunca fiz um soneto, uma rima, terceto, um sexteto...a poesia não precisa ser explicada. Aí deixa de ser poesia. Vira prosa. Poesia não é para explicar. Não é para escrever, é para descumprir. Dirige-se á sensibilidade. À percepção sensível do leitor. Quero dar encantamento. O poeta vê o que não existe. Os olhos vêem. A lembrança revê. O poeta transvê. Quem busca a verdade só vai encontrar beleza”.
Abílio, o irmão, reconhece que ele veio ao mundo com uma disfunção congênita: nasceu poeta em tempo integral. Anomalia incurável. Ao resolver as questões básicas da sobrevivência com a exploração das fazendas em Mato-Grosso, regozijou-se: “comprei o ócio e ficar à toa é ficar à disposição da poesia”. Deu adeus às coisas práticas da vida. Seu mundo é um cômodo de 3x4; seus utensílios, lápis e pequeninos blocos. Não usa computador para escrever porque na ponta do lápis, diz ele, “está um nascimento”.
Do resto, cuida a dedicada Estela, a esposa, autêntica “guia de cego” de quem revogou o mundo prático, não dirige automóvel, já deu o que tinha, recebe mesada e com miúda caligrafia procura e é procurado pelas palavras. Deste encontro, faz um tipo de armação que é o gorjeio, ou seja, a musicalidade poética. Não é o poeta da paisagem. É o poeta da palavra. Não aceita a adjetivação de “poeta pantaneiro”. Barros e a natureza se fundiram. Houaiss enxergava semelhanças entre ele e São Francisco de Assis na humildade diante dos seres e das coisas.
Sua fonte de poesia é o baú da infância. A criança “erra na gramática, mas acerta na poesia”. Encantou-se com a menina que disse: “a borboleta é a cor que avoa”. Falou e poetou. “Inspiração só conheço de nome”.
De fato, para Manoel de Barros o que vale é a artesania que descreve o poder de quem descobre, em vez de ouro, as desimportâncias. Inventa inutensílios; revela sentimentos na pedra que no, Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, proclama: “Pedra sendo tenho o gosto de jazer no chão [...] Há outros privilégios de ser pedra: a – Eu irrito o silêncio dos insetos. b – Sou batido de luar nas solitudes. c – Tomo banho de orvalho de manhã. d – E o sol me cumprimenta por primeiro”.
Premiadíssimo, manteve-se, até os anos 80, recoberto por um temperamento arredio e avesso às convivências literárias, quando Millor Fernandes o descobriu e botou a boca no trombone. Aí a mídia se deu conta do poeta que hoje, com 95 anos de lucidez, é o mais lido no Brasil. Com senso de humor, o mais avançado estágio da inteligência, Manoel se gaba de ter inventado “o idioleto manoelês, o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e as moscas”.
Na infância, o estalo poético lhe foi dado pelos sermões do Padre Vieira, lidos precocemente. Quanto às influências, é difícil definir diante de tamanha originalidade. Porém, a poesia manoelina tem traços do modernismo brasileiro, do simbolismo francês (Rimbaud), da inventividade de Guimarães Rosa e de vozes e visões que somente a ele é dado o privilégio de ouvir, enxergar e sentir.
Diante da cruel e inevitável pergunta de como gostaria de ser lembrado, não hesitou: “Permanecer como poeta. O ser biológico é sujeito às variações do tempo. O tempo só anda de ida. A poesia amarra o tempo no poste”.