No país da miscigenação, o dia da Consciência Negra é celebrado há nove anos para falar sobre a importância da inclusão do negro e resgatar a história daqueles vindos de África, que aqui foram escravizados. O dia 20 de novembro, não por coincidência, homenageia o líder do Quilombo dos Palmares, morto por causa de sua resistência e luta contra a escravidão instituída na Capitania Pernambucana e no Brasil. Em 2017, celebram-se os 322 anos de morte de Zumbi dos Palmares, responsável, junto com Dandara e tantos outros negros, pela libertação dos escravizados.
“Desde o primeiro negro que foi traficado em África, até os dias de hoje, a palavra que marca a caminhada deste povo no Brasil é resistência, frente toda negação de direitos e qualidade de vida”, é o que diz Valdenice Raimundo, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiro e Indígena da Universidade Católica de Pernambuco. A professora complementa dizendo que “existe também um espaço de conquista. A exemplo de Zumbi, a gente continua acreditando numa sociedade em que seremos respeitados e reconhecidos não pelo samba e futebol, mas por estarmos na universidade, na ciência, por todos os espaços que estamos ocupando”, afirmou.
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No entanto, mesmo ocupando todos esses lugares que antes não era possível por falta de políticas públicas e oportunidades, a real situação do povo negro parece não ter mudado muito. Ao que os indicadores mostram, apenas a “liberdade plena” do indivíduo, uma luta travada na época de Zumbi, foi uma conquista real. O extermínio dessa parte da população parece que persiste ao tempo.
Segundo o Instituto de pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 delas são negras. Jovens e negros do sexo masculino são os que mais continuam sendo assassinados todos os anos, como se vivessem em situação de guerra. Na faixa etária de 15 a 29 anos, são cinco vidas perdidas para a violência a cada duas horas no Brasil, de acordo com o estudo.
Quando separada as mortes por arma de fogo, que representa maior parte dos assassinatos de pessoas negras no Brasil, com dados do Mapa da Violência, os números continuam assustadores. Segundo publicado, no ano de 2003 foram cometidos 13.224 homicídios por arma de fogo contra a população branca; em 2014 esse número diminuiu para 9.766, o que representa uma queda de 26,1%.
Em contrapartida, o número de vítimas negras passa de 20.291, em 2003, para 29.813, em 2014, um aumento de 46,9%. Em Pernambuco, a chance de um jovem negro ser assassinado é 11,5 vezes maior que a de um branco da mesma faixa etária. O grupo Gente Preta fez um vídeo que ajuda a entender os números sobre a desigualdade racial no Brasil.
Desumanização da população preta e a contínua resistência
“Isso é um resquício da escravidão negra no Brasil. É um segmento da raça humana que ficou subordinada aos dominadores (brancos) por mais de 500 anos. Durante muito tempo houve uma desumanização da população preta e parda, e essas posturas se mantém até hoje. Só para fazer um comparativo, a morte de uma criança preta, pobre e da periferia, que ocorre por conta da incursão da polícia na favela, não causa uma comoção como geraria se o mesmo acontecesse num bairro nobre”, comentou o advogado Humberto Adami. Ele foi um dos responsáveis pela sustentação oral no Supremo Tribunal Federal para a implementação das cotas raciais.
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Organizações como o coletivo Cara Preta tentam - através do empoderamento da juventude negra - mudar o que está posto. “A luta contra o genocídio dos jovens negros é nossa maior dificuldade. A juventude negra está escancarada. Nós do coletivo tentamos trabalhar na questão da intervenção de políticas públicas, esperando do Estado uma conversa com a juventude negra. Nada de nós sem nós. A gente entende que para se construir essas políticas o Estado tem que sentar com os coletivos e com aqueles que estão sendo mais atingidos”, reiterou Suzana Santos, universitária e integrante do Cara Preta.
Jardel Araújo, também integrante do coletivo, trouxe uma discussão que nem sempre é lembrada pela população: para ele, existem várias formas de "genocídio". “Não é só a ‘morte morrida’ ou a ‘morte matada’. O silenciamento do jovem preto pra gente também é uma forma de genocídio. As chances que não são dadas, o não acesso à educação, ao lazer, a saúde (de qualidade) também são formas de extermínio. São mortes sociais que fazem com que a gente perceba. E dói muito”, pontuou.
Violência e desigualdade
Esse caráter discriminatório que vítimiza proporcionalmente mais a juventude negra, também foi documentado no estudo “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade”. Neste trabalho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública incorporou um indicador de desigualdade racial ao indicador sintético de vulnerabilidade à violência dos jovens (mortalidade por homicídios, por acidente de trânsito, frequência à escola e situação de emprego, pobreza e desigualdade).
Foi constatado que em todas as Unidades da Federação, com exceção do Paraná, os negros com idade entre 12 e 29 anos apresentaram mais risco de exposição à violência que os brancos na mesma faixa etária. Mesmo o país vivendo, até o ano de 2015, um de seus melhores momentos econômicos e de condição de vida, o Brasil continuou sendo um país extremamente desigual.O perfil típico das vítimas fatais permanece o mesmo: homens, jovens, negros e com baixa escolaridade. Segundo pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo Senado Federal, 56% da população brasileira concorda com a afirmação de que “a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco”.
Com relação à questão salarial, a renda média de homens brancos com ensino superior é de R$ R$ 6.702. Este quantitativo é 29% maior que a de homens negros com ensino superior, que recebem algo em torno de R$ 4.810. Já a renda média de mulheres brancas com ensino superior, gira em R$ 3.981, é 27% maior que a de mulheres negras, com a mesma qualificação profissional, recebendo R$ R$ 2.918. Quando analisados os que ganham salários acima de R$ 10 mil, a disparidade persiste. A pesquisa aponta que entre aqueles que ganham mais de R$ 10 mil por mês, 81% são “não negros” e apenas 19% são “negros”.
Neste 20 de Novembro há o que se comemorar?
“Eu sou otimista. É sempre bom lembrar que muitas pessoas sofreram para que tanto 13 de maio (abolição da escravidão), quanto 20 de novembro ocorressem no Brasil. Muitas foram as vidas poupadas após as realizações dessas datas. Eu penso que há sempre o que comemorar. Temos a lei de cotas, o feriado de Zumbi dos Palmares, que funciona em alguns lugares e outras possibilidades de luta, como a luta do povo de terreiro. O dia da Consciência Negra é um dia de renovação das forças para continuar as lutas”, finalizou Humberto Adami, que também é mestre em direito e Presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra do Brasil.
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