Uma produção filmada em ordem cronológica, sem que os atores ou equipe de produção tivessem acesso a todo o roteiro, com direito a instruções contraditórias para confundir o elenco: "Roma" foi laboratório para Alfonso Cuarón reinventar seu estilo de fazer cinema.
Era um projeto muito pessoal, íntimo, tanto que é praticamente uma fotografia de sua infância no número 21 da rua Tepejí, no bairro Roma Sul, na Cidade do México.
##RECOMENDA##Ele não imaginou que esta produção em preto e branco, produzida em seu país natal e por uma equipe técnica mexicana, falada em espanhol e no dialeto mixteco, teria tanto êxito na temporada de premiações no cinema mundial, incluindo dez indicações ao Oscar. No evento de gala do cinema americano, que será realizado no próximo domingo, o próprio Cuarón concorre nas categorias de produção, roteiro, fotografia e direção.
"(O objetivo) Era participar de um processo que não superasse o fazer, reinventando-o e aprendendo com o processo, era fundamental isso", disse à AFP o cineasta de 57 anos, vencedor do Oscar em 2014 por "Gravidade".
A intenção do mexicano era trabalhar de uma forma que nunca havia feito. Por isso a decisão de filmar cronologicamente, algo muito incomum na produção de um longa-metragem, e de não apresentar à equipe o roteiro completo.
"Um caos" criado de propósito
"Roma" conta a história da babá de Cuarón, uma jovem de origem indígena que engravida após as primeiras experiências sexuais e que é interpretada pela novata Yalitza Aparicio, indicada ao Oscar na categoria melhor atriz.
O filme também aborda a história da mãe do cineasta, que encara um processo de separação, e os conflitos domésticos e estrutura social do México da década de 1970.
O elenco também participou muito do processo de reinvenção: o primeiro requisito era que os atores tivessem traços físicos parecidos com os personagens que deveriam interpretar, deixando em segundo plano a experiência profissional.
A maior parte dos atores de "Roma" era de estreantes num set de filmagem, como Aparicio.
Cada manhã, durante os 108 dias de gravações, o período mais longo de trabalho de sua carreira, Cuarón dava instruções diferentes para a equipe, e assim, "quando começava a filmar era um caos, como um engarrafamento, pois assim é a vida, que não é organizada", disse numa entrevista recentemente.
Essa situação aconteceu na cena em que a mãe pede às crianças para escreverem cartas para pai que pensam estar viajando a trabalho.
"Eu disse à Marina (de Tavira), que interpreta a mãe: 'o filho mais velho é o que mais sente falta do pai, é o mais próximo dele, por isso garanta que ele escreva uma boa carta'. Em seguida, secretamente, disse ao ator mirim: 'na hora que tua mãe começar a falar contigo, levanta e sai'".
O mesmo aconteceu quando o bebê de Cleo, a empregada doméstica, nasce morto.
Aparicio "não sabia o que estava para acontecer", contou Cuarón. "Quando o médico pergunta para ela se quer ver a criança, ela disse que sim, foi uma reação honesta", apesar de que na história real, Libo, a babá do diretor, ter se recusado a vê-lo. "Cedi a um momento de verdade nessa história".
"Não quero que seja assim"
Marina de Tavira, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por seu papel de Sofía, disse à AFP que vivenciou "todo um processo de ajuste", mas que não conhecer o roteiro completo "ajudou muito para não recorrer a um processo técnico de criação de um personagem, levando a algo muito próximo de uma consequência da realidade, ao mergulhar nesse mar que Alfonso propôs".
Cuarón destacou que dentro de sua carreira, este nível de improviso foi algo que o cativou. "Havia feito pequenas coisas, mas nunca neste nível, e isso é algo que me intriga, é algo que continuarei experimentando".
Um processo similar aconteceu também com o desenho de produção.
Quando Eugenio Caballero, vencedor do Oscar por "O labirinto do fauno", foi chamado por Cuarón para participar do trabalho, a primeira coisa que fez foi pedir ao diretor o roteiro. "Ele me disse: 'não, está escrito, mas não quero que seja assim'", recordou Caballero.
Após longas conversas com o cineasta, Caballero recriou a casa da família de Cuarón nos anos 1970. Ser detalhista era o ponto chave.
"O que havia na mesa, que tipo de vendedor ambulante passava pela rua, o que lhe chamava atenção pelo som", explicou à AFP. "Como era o cheiro de um local, de alguma planta, esse tipo de coisa, e assim construímos o filme".