A pandemia do novo coronavírus não afetou apenas os humanos. Em vários países, aumentou o número de animais domésticos abandonados. Uma das causas para isso é, provavelmente, econômica. Mas o receio de que os pets sejam vetores da Covid-19 também pode ter colaborado para o problema. O que é um equívoco: apesar da falta de estudos mais aprofundados sobre o tema, o risco de animais contraírem Covid-19, ou contaminar seus próprios donos, praticamente não existe.
É o que explica o médico veterinário Paulo Abilio Varella Lisboa, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), da Fiocruz. Que acrescenta: em vez de perigo, animais domésticos podem ser muito benéficos para a saúde, em tempos de isolamento, ao colaborarem para diminuir o estresse e a ansiedade dos humanos. Nesta entrevista, ele explica os cuidados com a higiene dos bichos, que devem ser tomados mesmo fora do período pandêmico.
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Icict: Qual o risco da Covid-19 para cães e gatos domésticos? Eles podem se contaminar e até morrer?
Paulo Abilio Lisboa: Até agora, há menos de 25 relatos em todo o mundo de cães e gatos de estimação infectados com SARS-CoV-2, e nenhum relato de animais positivos no Brasil. Isso apesar de, em 9 de junho, o número de pessoas infectadas ultrapassar 6,2 milhões no mundo e mais de 740 mil casos no Brasil. Além disso, nenhum relatório oficial publicado sugere que animais de estimação sejam fonte de infecção para seres humanos. Há evidências de que as infecções nos animais são geralmente resultado de um contato próximo de pessoas — tutores ou tratadores — infectadas com Covid-19. Mas há pouca ou nenhuma evidência de que os animais domésticos sejam facilmente infectados com SARS-CoV-2. E, considerando que a população mundial de cães e gatos está em torno de 2 bilhões, o número de animais infectados representa menos de 0,001% do total e, por isso, não representa nenhum risco potencial de transmissão para outros animais ou pessoas.
Icict: Mesmo que não se contaminem, cães e gatos domésticos podem transmitir a doença a seres humanos ou levar o vírus para dentro da casa de seus donos, oferecendo risco de contaminação?
Paulo Abilio Lisboa: Não há evidência ou estudos nesse sentido. Os poucos animais infectados parecem ter adquirido a infecção dos seus donos, pelo contato direto, e não o inverso. Tampouco há evidência de que animais sejam vetores mecânicos ou possam carregar o vírus, ou que o vírus possa se replicar nos animais.
Icict: O vírus pode grudar no pelo do animal? A sujeira que as patas trazem da rua pode representar risco? E as fezes e urina dos animais, podem transmitir o vírus?
Paulo Abilio Lisboa: Em teoria, um tutor pode infectar os animais através do espirro ou da tosse e a partir de partículas em suspensão. Porém não há estudos que mostrem a permanência do vírus nos tecidos cutâneos (pele e pelos) de cães e gatos. Em teoria, animais que circulam ou possam ter acesso a áreas contaminadas na rua poderiam carregar o vírus para dentro de casa, mas não há estudos demonstrando essa evidência. De qualquer forma, é recomendável a higienização das patas e do focinho com uma combinação de água e sabão neutro em pano umedecido. Mas essa higienização deveria ser feita habitualmente em todos os animais que vão à rua, independentemente da epidemia. Sobre urina, fezes e também saliva, não há nenhum estudo ou evidência cientifica da transmissão do vírus.
Icict: É recomendável os donos adotarem alguma mudança de atitude com seus animais domésticos por causa da epidemia? Como, por exemplo, reforçar alguma medicação preventiva ou mudar a alimentação?
Paulo Abilio Lisboa: Não há necessidade de nenhuma mudança. Os cuidados de saúde já utilizados pelo dono devem ser mantidos, inclusive os calendários de vacinação e emergências médicas. As clínicas veterinárias e os profissionais veterinários são classificados como atividades essenciais e estão trabalhando normalmente.
Icict: Deve-se usar álcool em gel para limpar cães e gatos domésticos?
Paulo Abilio Lisboa: Não. O álcool em gel ou o álcool líquido em todas as suas concentrações pode ser abrasivo para a pele dos cães e gatos, principalmente se utilizado de forma rotineira ou crônica, e ocasionar lesões alérgicas ou tópicas.
Icict: É verdade que a epidemia aumentou o abandono de animais domésticos por seus donos?
Paulo Abilio Lisboa: Percebemos um maior abandono por conta de notícias veiculadas pela imprensa e a partir de ONGs e grupos de apoio e cuidados de animais. Há três fatos a considerar. Em primeiro lugar, as notícias iniciais de que cães e gatos foram infectados pelo SARS-CoV-2, o que gerou uma primeira onda de medo e abandonos por conta da desinformação e fake news. Em seguida, houve o abandono intencional, que possui duas características de cunho muito social. Em várias regiões, famílias ou pessoas idosas – que viviam de forma isolada ou sozinhas e que, por conta da quarentena, foram morar com outros parentes – tiveram que migrar ou abandonar sua moradia e, em muitos casos, não tiveram condições de levar o animal que morava com elas. Por outro lado, houve aspectos socioeconômicos: algumas pessoas, por desemprego ou diminuição da renda, abandonaram animais próximos a instituições ou parques públicos, ou mesmo nas ruas, para diminuir a responsabilidade sobre os cuidados do animal. E, por fim, alguns tutores pediram ajuda exatamente por conta de pessoas que abandonaram as casas e deixaram os animais. E isso aconteceu de forma mundial, principalmente nos EUA, que tem os dois maiores abrigos de animais do mundo, em Denver e Nova York.
Icict: A notícia vinda da Europa de que os donos de gatos teriam alguma imunidade contra a Covid-19 faz sentido?
Paulo Abilio Lisboa: Tivemos relatos neste sentido, a partir da publicação de uma médica na Espanha, que observou que tutores de gatos tinham sinais menores em relação à doença ou não apresentavam sintomas. A informação da médica da Espanha é observacional e sem base científica nenhuma. Por isso, não devemos considerar essa hipótese. Mas temos outro aspecto menos falado que é o papel dos animais domésticos na casa das pessoas, diminuindo a sensação de isolamento e criando um momento diário de convívio e felicidade – reduzindo assim o estresse e a ansiedade, contribuindo com a saúde mental em tempos de isolamento. Pessoas felizes tem menos estresse e têm melhor escore imunológico, sendo naturalmente menos suscetíveis a doenças.
Icict: Outros animais domésticos – como papagaios, canários, periquitos, calopsitas, hamsters – podem representar risco de contaminação para seus donos?
Não temos evidências (relatos, estudos ou pesquisas) de outros pets se infectarem pelo SarsCov-2.
Icict: Morcegos, que eventualmente entram em casas, são um risco de Covid-19 para os humanos? O SARS-CoV-2 veio mesmo de um morcego?
Paulo Abilio Lisboa: Não, morcegos não representam risco. No Brasil a maior preocupação em relação aos morcegos é a possível transmissão do vírus da raiva. Sobre a origem do SARS-CoV-2, temos dois cenários possíveis. O primeiro tem o vírus evoluindo através de seleção natural em um hospedeiro não humano e pulando para humanos. Não há casos documentados de transmissão de um coronavírus de morcego para humanos. Mas todos os coronavírus anteriores passaram por um hospedeiro mamífero intermediário antes da infecção humana. A identidade do hospedeiro intermediário SARS-CoV-2 é atualmente desconhecida, mas vários animais foram sugeridos, principalmente pangolins. Em um cenário alternativo, uma versão não patogênica do vírus teria pulado de um hospedeiro animal para humano e depois evoluído dentro de humanos para seu estado patogênico atual. Mas nenhuma dessas hipóteses foi confirmada até o momento.
Icict: E os micos que entram pelas janelas em alguns prédios e casas próximo de matas? Apresentam risco?
Paulo Abilio Lisboa: Também não há qualquer relato de infecção do Sars-CoV-2 em primatas. Assim, não há risco de transmissão de micos ou primatas para o homem.
Icict: E nas fazendas? Vacas, cavalos, cabras, patos, porcos, esses animais trazem algum risco?
Paulo Abilio Lisboa: Não temos nenhum relato de infecção de Sars-CoV-2 em animais de produção. Assim, também não há risco de transmissão.
Da assessoria da Fiocruz