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As livrarias estão com os dias contados. Talvez meses. Ou uns poucos anos, quem sabe? E, confesso, não estou certo se terei saudades. Porque, em lugar das antigas, que há tempos passaram a vender livros como se fossem sabão, o mercado oferecerá muitas oportunidades para quem valorizar esse produto especialíssimo.

Morte sentida mesmo foi a do livreiro, aquele sujeito que não apenas vendia, mas também conhecia do assunto, orientava leitores, reunia escritores, fomentava a cultura. Em lugar, surgiram os grandes supermercados-fiteiros do mercado editorial, livrarias atulhadas de estantes, como se prateleiras de margarina, com vendedores desinformados, impessoalidade no trato e sujeição total às campanhas de marketing e distribuição.

Com a chegada dos livros digitais, das lojas virtuais, dos tablets e da pirataria, aqueles clientes que insistem em cultivar o suporte impresso exigem mais qualidade e serviços. Eles esperam, sobretudo, o devido respeito.

A livraria do século XXI – ou pelo menos das primeiras décadas – precisa de vendedores com razoável conhecimento sobre as obras, autores e temas disponibilizados; precisa encomendar e entregar rapidamente os títulos demandados e ainda não adquiridos; a realidade requer que ela tenha um bom site, inclusive com opção de venda on-line, além de oferecer os lançamentos também em formato digital.

Até aqui, são qualificativos já presentes no mercado, assim como os cafés e os auditórios, que visam relacionamento mais estreito, resgatando algo daquele sentimento de convivência que existia na época dos livreiros.

Esta livraria, no entanto, precisará ir além, preparar-se para apontar caminhos, tornar a jornada desses amantes da leitura ainda mais rica. Sem precisar que o cliente solicite, o vendedor deverá gastar mais tempo com as pessoas, conversar sobre os escritores, suscitar interesse por outras obras ao autor, por títulos de referência naquele gênero, por edições com melhores apresentações, prefácios e notas, com trabalho gráfico mais esmerado etc.

Livraria que não poderá viver à margem da vida cultural da cidade, sem apoiar os eventos literários e escritores, sem fazer parcerias com as mídias especializadas e os órgãos públicos.

Livraria que terá como outro diferencial saber potencializar o diálogo da literatura com outras formas de expressão, dispondo de músicas, filmes, peças de artistas plásticos e tantos mais que girem em redor do universo dos livros.

Se as obras estiverem fora de catálogo, que os clientes tenham ali área de usados, com acervo competitivo, que sobreviva minimamente às comparações com os emergentes sebos virtuais. Que as lojas tenham setor estratégico, para compra de coleções e bibliotecas particulares, enriquecendo sua área de livros raros.           

Capitalismo e lógica de consumo de massas não podem ser desculpas. Os diversos ramos empresariais têm buscado conciliar mercado e sofisticação, desenvolvendo estruturas, tecnologias e pessoas para que melhor atendam às expectativas dos clientes. Por quais latas de água barrenta, então, seríamos menos exigentes com esse objeto-fetiche-transcendente, que, como dizia o querido Luiz Carlos Monteiro, é capaz de “provocar insônias e revoluções”?

De minha modesta parte, quero é que aquele antiquado e tosco vendedor de sabão (que se imagina dono de livraria) procure outro meio de sobrevivência! Pois o livro merece viver sem ele, e por bastante tempo.   

 

Nas terças e quintas-feiras, coluna Redor da Prosa traz algo bem mais valioso do que meus escritos: textos literários ou teóricos – vozes tiradas dessas estantes que, assim como seu dono, quase não dormem. Hoje, Jeanne Gagnebin pensa as relações essenciais entre  infância, linguagem e natureza humana.

“As imagens da infância evocadas por Benjamin tentam pensar aquilo que, profundamente, jaz neste prefixo in – da palavra in-fância. O que significa para o pensamento humano essa ausência originária e universal de linguagem, de palavras, de razão, esse antes do logos que não é nem silêncio inefável, nem mutismo consciente, mas desnudamento e miséria no limiar da existência e da fala? Retomando esta questão, Giorgio Agamben nos indica que essa experiência inefável da in-fãncia – inefável não porque seria um início paradisíaco além das palavras, mas porque a in-fãncia está aquém das palavras, ao mesmo tempo sem palavras, sem linguagem e, porém, condição de possibilidade de sua eclosão –, que essa experiência da infância ‘exclui que a linguagem possa se apresentar como totalidade e verdade’. Nem domínio do pecado nem jardim do paraíso, a infância habita muito mais, como seu limite interior e fundador,nossa linguagem e nossa razão humanas. Ela é o signo sempre presente de que a humanidade do homem não repousa somente sobre sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tão essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas, sobre esse vazio que nossas palavras, tais como fios num motivo de renda, não deveriam encobrir, mas, sim, muito mais, acolher e bordar. É porque a in-fãncia não é a humanidade completa e acabada, é porque a in-fãncia é, como diz fortemente Lyotard, in-humana, que, talvez, ela nos indique o que há de mais verdadeiro no pensamento humano: a saber, sua incompletude, isto é, também, a invenção do possível”.

Do livro Sete aulas sobre linguagem, memória e história (Imago, 1997), páginas 182 e 183.

Frase do querido Rubem Rocha Filho: “trocar de casa é também hora de descobrir que tipo de leitor você é”. Ele se referia à revisão (ou mesmo à seleção) que fazemos ao transladar biblioteca. Nessa linha, dá para dizer mais, que é oportunidade de saber, ou pelo menos suspeitar, quem somos.

Estou de mudança. Primeira conclusão, após encaixotar metade dos livros? Não sou sujeito dos mais focados. Somente entre os títulos que resolvi não passar adiante, tem de física, cosmologia e eventos inexplicáveis; há prateleira de crônicas e pesquisas sobre futebol; por motivos familiares, guardo ainda bocado de obras sobre sociedade açucareira e Pernambuco de tempos holandeses.

A lembrança do saudoso amigo Josué Mussalém também ocupa lugar razoável, com a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, tema de nossa predileção. Está junto de um punhado de obras sobre Guerra do Paraguai, porque recentemente planejei romance ambientado nos dois cenários de conflito – não é por falta de planos que publiquei nada, preciso é de disciplina e um tantinho daquele sentimento de urgência típico de minha geração.

Cinema, fotografia e comunicação ficam pertinho de livros sobre música erudita, jazz e blues; filosofia, ali ali com psicologia (principalmente a patológica). Na parte de ciências sociais, duas dúzias tratam das democracias pelo mundo – porque ainda cogito investigar melhor o que a mídia entende por regimes democráticos. Existe, sobretudo, área de poesia, ficção e teoria da literatura. Mas, se vale é saber o que procuramos ter completo, há Guimarães Rosa, Borges, Kafka, Calvino, Hermilo Borba filho e João Cabral. O que não significa desistir de inteirar Tolkien, Saramago e Mário Quintana – para desagrado de uns dois ou três amigos.

Cismando nisso, quantos autores eu doei ou troquei para não perder amizades? De quantos me desfiz para não perder a alma (se é que esse produto ainda tem reparo)? Ou, simplesmente, quantos abandonei por não lhes arranjar cantinho? Uns 2/3 já não estão comigo. Ou eles ou meus filhos gêmeos, que nascerão em 1014 (segundo uma cigana japonesa e caolha que apareceu em sonho). Porque espaços nos apartamentos andam custando fortunas no Recife.

Para chegar à verdade, com o avanço da tecnologia – recentemente lançaram pen drive onde arquivar mais de cem mil títulos –, manter biblioteca é negócio que exige alguma tara. Percebo que as pessoas se deparam com minhas estantes e fazem aquele olhar de desconfiança, como se eu fosse algum depravado ou serial killer potencial.

Fetiche, ganha-pão, quebra-galho... Existem os que adoram mostrar suas estantes no Facebook. Tem outros que não podem é se separar de algo, mesmo que seja unha encravada. Há profissionais que vivem dos livros, e Antonio Maria já falava de pessoas que empilham alguns para substituir pé de cama ou criado-mudo.

Eu, enfim, que tipo de leitor sou, além de desfocado? Provavelmente, ser humano bem pior do que os livros requerem que eu seja. E, decerto, alguém muito melhor do que eu seria, caso eles não houvessem me acompanhado. Entre as margens em branco, sob as mais diversas capas, está boa parte do peso que conta ao meu favor, nesta balança invisível e afiada que mede meus ganhos e desacertos.  

Nas quartas-feiras, a coluna Redor da Prosa traz mais intenções do que impressões. Dia de elencar leituras e notícias.

Comprar a História da Literatura Ocidental. Clássica e monumental obra de Otto Maria Carpeaux, acabou de ser relançada pela editora Leya Brasil e pela Livraria Cultura. Os quatro volumes estão em caixa exclusiva, que não pode ser comprada noutra loja. Caixa linda, mas pouco funcional, diga-se. Quando a tampa é levantada, literalmente se desmancha. Sem falar que a edição original, em oito volumes, tornava o manuseio mais fácil, além de respeitar a divisão planejada pelo autor. Nada que tire a vontade. Obrigatório para os estudiosos em literatura, o box custa R$ 179,90. Vale cada centavo.

Ficar de olho nas promoções. Os sites sempre trazem campanhas exclusivas, onde livros saem bem mais baratos do que os vendidos nas lojas. Mas, virada de ano, é bom redobrar atenção, costumam rolar descontos ainda mais interessantes. Uma pedida, para quem deseja economizar, é a coleção Saraiva de Bolso, que, mesmo em edições tanto frágeis, com capas delicadas demais, oferece grandes obras.

Pensei em escrever sobre dois livros que estavam fora de catálogo no Brasil, e que podem ser adquiridos justamente nessa série da Saraiva: Orlando, de Virginia Woolf, e Fausto, de Thomas Mann (não confundir com o de Goethe, facilmente encontrado em sebos e livrarias). Melhor começo de ano para as críticas semanais desta coluna Redor da Prosa não haveria.

Falando em início de 2012, ainda esta semana volto a atualizar o blog NotaPE – leitura, literatura e crítica (www.notape.com.br), parceiro do LeiaJá. Intenção é bolar novidade, algo que dê uma balançada positiva no projeto. Garantido é o programa NotaPE, realizado e veiculado primeiro aqui no portal, semanalmente. Os próximos já foram gravados: Julia Larré e Anco Márcio Tenório Vieira. Amanhã, já tem entrevista nova na rede. 

Toda época elege suas posturas politicamente incorretas. Por muito tempo, ser liberal e contestador garantia lugar nas listas negras. Agora, ser conservador é a escolha arriscada. Em muitos círculos, não há espaço para religião, posições políticas moderadas ou desconfiança estética com as novidades, por exemplo. Mesmo o escritor Gilvan Lemos pode se tornar alvo das lentes mais severas.

Todos estão sujeitos a responder pelas suas declarações, naturalmente. As personalidades públicas, então, sabem que a liberdade de opinar implica possibilidade de ser interpretado – mal ou bem – e criticado. Acredito, porém, que cada caso é um caso. Em alguns, podemos refletir tantinho mais, enriquecer as discussões. É assim com Gilvan.

Aos 83 anos, esse escritor nascido em São Bento do Una, autor de romances como O anjo do quarto dia e A lenda dos cem, tornou-se assunto até nas redes sociais. Reverberaram bastante suas declarações depreciativas sobre a literatura contemporânea, sobre a suposta ditadura editorial das invencionices, das narrativas curtas, dos textos escritos por homossexuais, blogueiros etc. Entre as coisas verdadeiramente ditas por ele e as atribuídas, ficou um balaio sem critério aparente, senão o de que nenhuma dessas esferas combina mesmo com Gilvan Lemos.

Apóiem ou repudiem as assertivas (até as falsas), faz parte. Sem, no entanto, tirarem de Gilvan os direitos de prosseguir sendo quem é, de ter suas convicções, de viver e morrer com elas. Seus princípios têm razão de ser, que em nada são banais. Não se trata de simples turrice,  

Menino de interior, não terminou os estudos, aprendeu a escrever sozinho, evoluiu quase que completamente de maneira intuitiva. Rapaz de timidez castradora, solitário, ele arranjou emprego público onde sobreviver (e, de certa forma, esconder-se).

Apesar de tudo, foi autor muito bem aceito no início da carreira, juntou elogios de peso, virou leitura obrigatória em vestibulares. Depois é que foi sendo gradativamente esquecido pelo mercado e pela mídia nacionais. Isso quando progredia de maneira comovente, pois Morcego Cego (Record, 1998) foi o supremo e mais belo esforço de Gilvan em apreender os movimentos literários de nosso tempo. Tempo que não é, nunca foi, e jamais será o dele.

De tão inábil com lobby, estranho às rodas de influência e de autolegitimação, Gilvan nem devia ter se candidatado à Academia Pernambucana de Letras, senão quando esta resolvesse recebê-lo de braços abertos, sem a necessidade de campanha, de disputa. Resultado foi que, na primeira tentativa, perdeu para um quase desconhecido escritor. Mais que isso: recebeu somente um voto. Precisou esperar até 2011 para que a instituição reparasse a “injustiça”.

Tudo explicado, estou para defender a tese de que Gilvan Lemos já transcendeu demais. Lutou e até venceu (espantosamente) diversas e desmedidas batalhas. Seria cruel cobrá-lo que fique entre as cordas por mais 5, 10 ou 15 rounds. Quase um E.T. vivendo na pele de um pacato morador da Boa Vista, foi humilde suficientemente para apanhar e se aperfeiçoar com as quedas. Conseguiu também deixar de ser tão bicho do mato, fez mais que os cinco amigos com quem convivia nos bancos da Livro 7 e da Nossa Livraria; concedeu entrevistas, foi a eventos, circulou. Daí as polêmicas aumentarem.

Seus mais recentes momentos no ringue têm sido de resistência aos problemas de memória. A idade o deixou tão, mas tão esquecido, que precisou optar por narrativas curtas.

Esse escritor, desmemoriado e memorável, possui direito de sentar na arquibancada, de resmungar, de reclamar das lutas que atualmente são travadas por jovens autores. Há muita estrada corrida, conquistou o privilégio de não pagar ingresso, de gastar seu tempo sentado ao lado dos poucos (mas antigos e fiéis) amigos, atirando para cá e acolá.

Gilvan, força da natureza que foi muito além do que pareciam ser limites instransponíveis. Gilvan, que, das tripas coração, correu atrás e subiu em bondes diversos, fez-se contemporâneo de pelo menos duas gerações na literatura brasileira. Gilvan Lemos que, se não assoma antenado, afinado com nossas demandas, merece compreensão, generosidade e reconhecimento.

Se os leitores me tomam por equivocado, azar. Sou e serei pelos direitos de Gilvan, assumo partido mesmo. Melhor assim. Meu coração pede, minha memória embasa, minha consciência dorme sono de uns trezentos justos.

Nas terças e quintas-feiras, Redor da Prosa traz algo bem mais valioso do que meus escritos: textos literários ou teóricos – vozes tiradas dessas estantes que, assim como seu dono, quase não dormem. Hoje, Marthe Roberts, sobre o romance:

“A fortuna histórica do romance deve-se evidentemente aos privilégios exorbitantes que a literatura e a realidade lhe concederam ambas com a mesma generosidade. Da literatura, o romance faz vigorosamente o que quer: nada o impede de utilizar para seus próprios fins a descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; nem de ser a seu bel-prazer, sucessiva ou simultaneamente, fábula, história, apólogo, idílio, crônica, conto, epopéia; nenhuma prescrição, nenhuma proibição vem limitá-lo na escolha de um tema, um cenário, um tempo, um espaço; nada em absoluto o obriga a observar o único interdito ao qual se submete em geral, o que determina sua vocação prosaica: ele pode, se julgar necessário, conter poemas ou simplesmente ser “poético”. Quanto ao mundo real com que mantém relações mais estreitas que qualquer outra forma de arte, permite-se-lhe pintá-lo fielmente, deformá-lo, conservar ou falsear suas proporções e cores, julgá-lo; pode até mesmo tomar a palavra em seu nome e pretender mudar a vida exclusivamente pela evocação que faz dela no seio do mundo fictício. Se fizer questão, é livre para se sentir responsável por seu julgamento ou sua descrição, mas nada o obriga a isso: nem a literatura nem a vida pedem-lhe contas da forma como explora seus bens”.

“Para o romancista, portanto, o romance tira sua força precisamente de sua absoluta liberdade; para o crítico, essa liberdade tem algo de escandaloso, não podendo aceitá-la sem nela introduzir pelo menos alguns limites, disposto a se basear neles para substituir as regras que lhe faltam sobre seus sentimentos, seus gostos, seu humor (o que faz, não raro, sem se dar conta, ao erigir, segundo a fórmula de Remy de Gourmont, ‘seu gosto em lei’)”.

As duas citações estão no livro Romance das origens, origens do romance (Cosac Naify, 2007). A primeira, nas páginas 13 e 14; a segunda, página 16.

Sabem aquele livro que sulca definitivamente o coração do leitor, criando lugar que nada mais pode preencher, senão a literatura? Comigo foi Margem de lembranças, de Hermilo Borba Filho. É o romance de abertura da tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, cujos volumes serão relançados hoje à noite, 19h00, na Fundaj. Deixo aqui a sugestão do evento, porque não vou estar lá. Não posso.

Nada contra o autor, pelo contrário: morreu em 1976, ano anterior ao meu nascimento, e nada que descubro ou aprendo sobre ele reduz minha admiração. Tampouco sua obra foi daquelas que, passado tempo, a gente vai desgostando. Negócio é que planejo fazer doutorado em breve, e detestaria pensar novamente em Hermilo como tema.

Existem necessidades na vida acadêmica com as quais reconheço ter enorme dificuldade: 1) não sei lidar com o tempo dos cursos, mudo demais ao longo da pesquisa, quero refazer o rumo sempre; 2) embora saiba que correr anos em qualquer estudo requer simpatia pelo objeto escolhido, não sei conciliar afeto demais com racionalidade. Ou gosto muito, ou trabalho muito com algo – as duas coisas, não dá.

Sei que tem monte de gente que separa paixão e reflexão sem grande sofrimento. Eu, contudo, nunca transito tão facilmente nessas esferas. Se me apego bastante, perco metade da clareza, no mínimo. Namoradas, vejo com metade dos defeitos que outros denunciam; meu time de futebol, desagrada-me bem menos do que os resultados dentro de campo pedem; e não consigo ler meus escritores preferidos como se fosse médico tecendo diagnóstico – a simples ideia de riscar páginas de Hermilo com caneta marca-texto já me deixa agoniado.

Naquela Margem de lembranças, não sei medir friamente as marés. Rios, pais, casa, mulheres, cachaçadas, brigas, desespero... Ali, navego de olhos fechados, sou quase todo imaginação, enlevo. Ainda tem aquela familiaridade, sensação que chega a ser angustiante. Nada disso combina com meu jeito de lidar com as obras que tomo para crítica ou análise mais demorada.

Verdade que falei sobre os romances hermilianos como especialista, principalmente em 2007, quando dos 90 anos desse genial palmarense. Palestrei algumas vezes sobre como Hermilo Borba Filho era antenado, como sua obra juntou bastante das principais características e temas que moveram sua geração, como Um cavalheiro da segunda decadência é leitura obrigatória para estudiosos da literatura brasileira. Desconfio, no entanto, que nunca fui além uma espécie de noivo apaixonado, com os quatro pneus arriados, dizendo palavras sobre a amada na festa de casamento. Meu julgamento é suspeitíssimo.

Casamento que não acabou. Por isso mesmo, desisti de lhe prestar homenagens ou dedicação profissional. Deixo Hermilo como tema privado, para intimidade da casa. Sem cerimônias, sem prazos, sem caneta marca-texto.

Pode até ser promessa furada, pois amores têm disso. Mas creio publicar aqui, nesta coluna, minhas últimas palavras sobre Hermilo Borba Filho. Poucas, pobres, cansadas pela madrugada de sono. Mas que palavras dariam conta desse caso de amor entre um romancista-morto e um leitor-nem-tão-vivo, ambos da Mata-Sul de Pernambuco, ambos de uma civilização perdida entre rios e partidos de cana? Nenhuma. São margens inacessíveis. Águas ora submersas, ora voando longe demais. Longe demais. 

Nas terças e quintas-feiras, Redor da Prosa traz algo bem mais valioso do que meus escritos: textos literários ou teóricos – vozes tiradas dessas estantes que, assim como seu dono, quase não dormem. Hoje, Walter Benjamin, sobre a arte de escrever:

 “Escrever bem

O bom escritor não diz mais do que pensa. E isso é muito importante. É sabido que o dizer não é apenas expressão do pensamento, mas também a sua realização. Do mesmo modo, o caminhar não é apenas a expressão do desejo de alcançar uma meta, mas também sua realização. Mas a natureza da realização – faça justiça à meta ou se perca, luxuriante e imprecisa, no desejo – depende do treinamento de quem está a caminho. Quanto mais mantiver a disciplina e evitar os movimentos supérfluos, desgastantes e oscilantes, tanto mais cada postura do corpo satisfará a si própria e tanto mais apropriada será sua atuação. Ao mau escritor ocorrem muitas coisas, e nisso se gasta tanto quanto o mau corredor não treinado nos movimentos indolentes e gesticulados dos músculos. Mas exatamente por isso nunca pode se dizer sobriamente o que pensa. É dom do bom escritor, com seu estilo, conceder ao pensamento o espetáculo oferecido por um corpo gracioso e bem treinado. Nunca diz mais do que pensou. Por isso, o seu escrito não reverte em favor dele mesmo, mas daquilo que quer dizer”.

A citação está presente no ensaio Pequenos trechos sobre arte, publicado no livro Obras escolhidas II: rua de mão única (Brasiliense, 2004), nas páginas 274 e 275.

Nas quartas-feiras, a coluna Redor da Prosa traz mais intenções do que impressões. Dia de juntar leituras, eventos e outras coisas programadas.

Terminar de ler O cemitério de praga, de Umberto Eco (Record, 480 páginas, R$ 37). Que os desavisados não se assustem, o autor de O nome da rosa e O pêndulo de Foucault não escreveu um Dan Brown, apesar da sinopse-caça-leitores-de-best-seller: “Personagens históricos em uma trama na qual se desenrola a história de complôs, enganos, falsificações e assassinatos, em que encontramos o jovem médico Sigmund Freud (que prescreve terapias à base de hipnose e cocaína), o escritor Ippolito Nievo, judeus que querem dominar o mundo, uma satanista, missas negras, os documentos falsos do caso Dreyfus, jesuítas que conspiram contra maçons, Garibaldi e a formação dos Protocolos dos Sábios de Sião. A única figura inventada nesse romance é o protagonista Simone Simonini, embora o autor defenda que basta falar de algo para esse algo passar a existir”.

Marcar gravações do NotaPE. Depois da primeira fase, que serviu para refletirmos sobre formato, ajustes técnicos e resposta dos internautas, o programa de TV originado do blog NotaPE, e realizado pelo portal LeiaJá, voltará na quinta-feira da semana que vem. Um convidado já está agendado, o professor e pesquisador Luis Reis. Conversa poderia ser sobre bocado de coisas, mas, nesta oportunidade, tema será Hermilo Borba Filho. Até porque...

Segunda-feira é dia de lançamento hermiliano: Editora Bagaço republicou a estupenda tetralogia de romances Um cavalheiro da segunda decadência, composta por Margem de Lembranças, A porteira do mundo, O cavalo da noite e Deus no pasto. Até lá, trarei detalhes do evento para a coluna Redor da Prosa. Pegando carona em notícia tão boa, decidi atender ao pedido de um amigo, listando escritos em prosa que mais me marcaram, entre autores pernambucanos ou radicados:

Minha lista dos 10 romances, novelas ou livros de contos de pernambucanos (por nascimento ou vivência) não apresenta as melhores, apenas as mais visitadas obras, nessas noites quase sempre insones:

Rainha dos cárceres da Grécia,
Avalovara e
Nove Novena – todos de Osman Lins;
Margem de Lembranças, de Hermilo Borba Filho;
Somos pedras que se consomem e
Sombrias ruínas da alma, de Raimundo Carrero;
Faca, de Ronaldo Correia de Brito;
Aspades, ETs etc., de Fernando Monteiro;
A pedra do reino, de Ariano Suassuna;
Morcego cego, de recém eleito na Academia Pernambucana de Letras, Gilvan Lemos.

Nas terças e quintas-feiras, Redor da Prosa traz algo bem mais valioso do que meus escritos: textos literários ou teóricos – vozes tiradas dessas estantes que, assim como seu dono, quase não dormem. Hoje, o filósofo Diderot, sobre papeis dos autores, críticos e público.

“O papel de um autor é um papel bastante vão: é o de um homem que se julga em condição de dar lições ao público. E o papel do crítico? É bem mais vão ainda: é o de um homem que se julga em condição de dar lições àquele que se julga em condição de as dar ao público.

O autor: ‘Senhores, escutai-me; pois sou vosso mestre’. E o crítico: ‘É a mim, senhores, que cumpre escutar; pois sou o mestre de vossos mestres’.

Quanto ao público, toma o seu próprio partido. Se a obra do autor é má, zomba dela, assim como das observações do crítico, caso sejam falsas”.

“A crítica procede bem diversamente com os vivos e com os mortos. Um autor está morto? Ela se ocupa de realçar suas qualidades, e em paliar seus defeitos. Está vivo? É o contrário: seus defeitos realça, e suas qualidades esquece. E há certa razão para tanto: pode-se corrigir os vivos; ao passo que os mortos não têm recurso”.

Os trechos são do ensaio Dos autores e dos críticos (1973), de Denis Diderot , publicado no recente Uma ideia moderna da literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922), organizado por Roberto Acizelo de Souza. Os três parágrafos da primeira citação estão na página 491, e o excerto final, página 492.

Nas terças e quintas-feiras, Redor da Prosa traz algo bem mais valioso do que meus escritos: textos literários ou teóricos – vozes tiradas dessas estantes que, assim como seu dono, quase não dormem. Hoje, Leyla Perrone-Moisés e Octavio Paz, sobre a inexistência de literaturas nacionais.

“A literatura, pelo menos no Ocidente, sempre foi supranacional. Os grandes autores ocidentais nunca se ativeram às fronteiras nacionais na escolha de seus modelos ou temas, desde o romance de cavalaria, passando pelo Corneille de O Cid ou pelo Shakespeare de Romeu e Julieta, até a modernidade, com Baudelaire irmanando-se a Poe, e Pessoa a Whitman, anunciando as vanguardas internacionais do século XX. Isso sem falar da América Latina, que, por sua condição de herdeira lingüística e cultural da Europa, teve suas literaturas sempre entrelaçadas com as do outro lado do Atlântico”.

“Vivendo no regime de ficção, a literatura tende a relativizar a questão da identidade pessoal ou nacional do autor, e, quando esta é prioritária, a obra fica mais próxima do testemunho do que da criação artística. As “integrações” e “assimilações”, tão problemáticas na política das nações, sempre foi a regra nos textos literários, que praticam a intertextualidade sem limites históricos e geográficos”.

“Pois bem, o nacionalismo não é só uma aberração moral; é também uma falácia estética. Nada distingue a literatura argentina da uruguaia, nem a mexicana da guatemalteca. A literatura é mais ampla do que as fronteiras. (...) Os grupos, os estilos e as tendências literárias não coincidem com as divisões políticas, étnicas ou geográficas. Não há escolas nem estilos nacionais; em compensação, há famílias, estirpes, tradições espirituais ou estéticas.”.

Os dois primeiros trechos são de Leyla Perrone-Moisés, do livro Vira e mexe nacionalismo (Companhia das Letras, 2007), páginas 11 e 12. A terceira citação está no clássico ensaio Literatura de fundação, de Octavio Paz (Signos em Rotação. Perspectiva, 2006, pág. 126).

Foi Joaldo Diniz primeiro a dizer que gostava das Quartas Intenções, notinhas publicadas semanalmente aqui na Redor da Prosa. Depois, mais dois amigos disseram que essa ideia era melhor do que publicar entrevistas, como eu pretendia. Sendo assim, conVencido por goleada, madruguei juntando algumas vontades:

Retomar a coluna Redor da Prosa. Após a Fliporto, deixei de enviar textos por alguns dias. Tempo de pensar sobre as possibilidades de um espaço diário para a literatura. Crônicas, notas, entrevistas, críticas... Independente do que seja publicado, iniciativas como esta geralmente requerem sacrifício. Elas não pagam as contas, costumam ser mal ou nada remuneradas, restam tocadas nas raríssimas horas vagas que aparecem. Consomem energia danada e, por mais aceitação que recebam, sempre criam desafetos, gente que nasceu com peça faltando – aquela que transforma as críticas em oportunidades de reflexão. Resumindo, negócio de doido. Por isso, vez por outra, preciso fazer autoanálise, descobrir se minha falta de juízo ainda é suficiente para tocar o bonde.

Dar um gás ao NotaPE, que também estava parado. Já de visual novo e algumas boas notícias, o blog (www.notape.com.br) vive aquele momento crítico. Quem tocou projeto de militância cultural na web, sem grana, sabe que, após aniversário de um ano, os meses seguintes são decisivos. Lá estão as duas dezenas de colaboradores e os trezentos visitantes/dia, no entanto, para deixar essa decisão um bocadinho mais simples. O programa de entrevistas NotaPE, realizado em parceria com o portal LeiaJá, apesar de pedir ajustes, é outra motivação. Falando nisso...

O poeta, tradutor e editor Everardo Norões, que foi entrevistado do programa NotaPE da semana passada, conquistou o Prêmio Literário Cidade de Manaus, da Fundação Municipal de Cultura e Artes (Manauscult). E na categoria contos, com o livro O fabricante de histórias. Coisa boa! Preciso arranjar tempo para um café, tardinha onde parabenizá-lo, além de explorar alguns de seus ensinamentos – quanto mais críticos, mais indispensáveis.

Bater um papo no Festlatino. Evento ainda pouco conhecido pelo público, o congresso, que faz parte do Movimento Internacional de Culturas, línguas e literaturas neolatinas, acontece pela tarde, até a sexta-feira, na Fafire. Hoje, às 17h00, participarei da mesa “Mídia e literatura”, com Cássio Cavalcante (UBE), Marcelo Sandes (Programa de rádio Café Colombo), Carolina Leão (Prefeitura do Recife) e Fernandino Neto.(jornal Vanguarda, de Caruaru).

Nas segundas-feiras, a coluna Redor da Prosa traz crônicas, que não devem ser lidas por gente séria demais, sob hipótese alguma.

Depois de ouvir um amigo taxista dizendo que deseja morrer de infarto, à noite, quando estiver no décimo sono, lembrei do escritor Fausto Wolff. Na primeira vez em que liguei, para marcar entrevista, perguntei se atrapalhava algo, porque a voz do outro lado era baixo profundo saindo da hibernação.

– Você me acordou, mas fez bem, que esse cochilo tava ficando longo. Rapaz, quando a gente vai ficando velho, fica é feliz toda vez que desperta. E não sou desses que querem morrer dormindo. Não mais. Quando Ela chegar, não vai me pegar roncando.

Desconheço se morreu dormindo, menos ainda se roncava. Mas suspeito que eu possa ter colaborado com seu passamento. Ou será coincidência?

Tenho um romance guardado há dez anos, cuja segunda parte mudei doze vezes, antes de deletá-la. O prefácio também sumiu. Depois voltou. Mas importante mesmo é que pedi a duas pessoas para lerem o livro e, se possível, escreverem uma apresentação: Fausto Wolff e Moacir C. Lopes.

Preciso dizer que eles aceitaram? Que eles já morreram, encantaram-se, é necessário lembrar também?

Foram autores que entrevistei porque responsáveis por duas das melhores leituras que tive, entre romancistas brasileiros: À mão esquerda e A ostra e o vento. Duas das pessoas mais gentis que conheci, dentro da intimidade que ligações e mensagens eletrônicas podem oferecer.

Guardei outros escritos, poemas que fiz entre 1991 e 1994, moleque ainda. Aliás, eles foram salvos mesmo foi pela minha avó paterna, Edite, que também arriscava versos. Não fosse por respeito a ela, que me devolveu os cadernos pouco antes de morrer (ops), decerto eu teria me livrado deles.

Mário Hélio e Bruno Piffardini leram e acharam melhor não se pronunciarem. Everardo Norões defendeu que sejam trabalhados, muito, sugeriu caminhos. Pedro Américo gostou, com ressalvas. Quem se entusiasmou realmente foi Luiz Carlos Monteiro, querido poeta e crítico. Ele até prometeu escrever algo sobre essa minha verde poesia. Foi aí que, vocês sabem... Perdemos LC faz pouco.

O editor do portal onde publico esta coluna Redor da Prosa, o jornalista Diogo Monteiro, foi único que leu o romance e os versos. Como jamais se comprometeu, não jurou prefácio ou apresentação, segue vivinho – no máximo, causei-lhe queda de cabelo.

Dia desses, mediei mesa de Contardo Calligaris no Festival Recifense de Literatura. Ele contou das duas vezes em que cursava pós quando o orientador morreu. Creio que um desses foi Barthes. Mas, diferente de mim, ele não anda encasquetado com tais coincidências. Contardo também repetiu aquela frase, que “nossa história não deixa de ser a ficção que escolhemos como realidade”. De repente, escolheu não se culpar.

Nesse embalo, até imaginei uma personagem: crítico literário tardio que, após meia dúzia de notícias ruins, nota que os autores sobre os quais escreve terminam espichados. Se eu conseguir terminar logo esta coluna, posso começar a rascunhar, hoje ainda.

Como negócio mais acertado é citar somente escritores reais, vou começar pelo... Aquele, como é mesmo o nome? Que apareceu há pouco no programa do Jô, e que falou quase nada, mal conseguiu mostrar a capa do livro... É tão difícil assim? Se o citado apresentar algum problema de saúde repentino, prometo não acusá-los de cúmplices. Ah, lembrei...

Nas segundas-feiras, a coluna Redor da Prosa traz crônicas, que não devem ser lidas por gente séria demais, sob hipótese alguma.

Eu somente assistia ao bate-boca, coisa repetida, um conhecido médico e um pastor discutindo a existência de Deus. Éramos convidados do programa de rádio de Geraldo Freire, teoricamente escolhidos para o tema “perspectivas 2011”. Não demorou para o mote inicial ser esquecido, e pensei em ficar como coadjuvante do papo. Isso até que, com olhar cúmplice, de quem tinha certeza da parceria, o médico solta:

– Quem não é ateu é ignorante!

A lógica era simples, muito, simplória mesmo: “se alguém tem conhecimento de ciências, estuda a história da Bíblia e das religiões, não acredita em Deus, não segue igreja alguma”. E completou, ainda me reservando aquele sorriso camarada, que nosso “povo precisa é ler”.

– Imaginem, Geraldo e ouvintes, um mundo sem Deus no coração, como seria? – perguntou o religioso, levantando a bola para o Doutor, que se empolgou:

– Ora, mundo bem melhor, sem tanta guerra, sem o povo se matando em nome de um Deus único e verdadeiro, com pessoas mais cultas, mais sofisticadas.

Foi quando me confessei cristão, sujeito que deixou de posar de ateu faz bocado de tempo. O que antes era cumplicidade, tornou-se um balançar de cabeça decepcionado. Para o médico, antes, este jornalista que publica a coluna Redor da Prosa era “um jovem muito inteligente”, que ele acompanhava desde os tempos do programa de debates na TV, quando eu demonstrava “muita cultura e jogo de cintura”. Tais gentilezas, ditas nos bastidores, foram substituídas pela resposta condescendente e menos grosseira que ele achou:

– Cristiano, você é sabido e tenho certeza que lê, mas ainda é muito jovem, moço demais.

Alguém já argumentou que não existe maior fé que a do ateu. Será apenas uma frase de efeito? Nosso respeitado médico afirmara antes que suas convicções foram construídas sobre muitas leituras, incontáveis. Não era por falta de conhecimento, portanto, que ele desconsiderava as civilizações politeístas e as comunidades descrentes, gente que, mesmo permitindo várias divindades ou negando todas, não deixou de se matar. Nem era por desinformada teimosia que ele também esquecia quantos dos intelectuais mais respeitados da história foram, são e continuarão sendo crentes em algum deus (mesmo depois dos cabelos brancos).

São diversos os caminhos que levam alguém como eu a acreditar em Deus. Escola, família, Bíblia, Hollywood... E, contrariamente ao que pensava meu interlocutor naquela manhã, foram os livros que me reconciliaram com o Cristianismo. Não só as obras teóricas, mas também a literatura, a ficção.

Conviver com os livros me levou a assumir a tese de Ricoeur: é somente através das narrativas que nós compreendemos o que nos cerca, elas nos permitem ter visões totalizadoras do mundo. As nossas memórias são histórias que montamos, são os pedaços (vividos ou imaginados) que selecionamos, organizamos e vestimos de credibilidade. As ideias que juntamos sobre o universo não são diferentes. Sejam científicas, metafísicas ou religiosas, as narrativas refiguram o que está em nosso redor, são decisivas para aquilo que entendemos como realidade.

Ou, nas sintéticas frases que Contardo Calligaris repetiu em nosso recente encontro no Festival Recifense de Literatura, a realidade nada mais é do que a ficção em que decidimos acreditar, e as memórias são as narrativas que estamos sempre inventando e reinventando para explicar quem somos.

Podemos crer em Deus, ou que milhões de fenômenos cósmicos ocorreram ao acaso para que a vida humana fosse possível; temos o direito de acreditar que existe liberdade, e que ela reside no insubordinado coração humano, ou que a democracia é chave indispensável para conquista de um mundo livre; é escolha nossa dedicar à família a razão de todas as coisas, ou depositar nossa fé no mercado. Seja lá como for, sempre criamos narrativas, fábulas sem as quais seria inviável levantarmos nossos castelos. E, dependendo de quem vê, tais castelos são de areia ou da argamassa mais sólida.

O médico estava resolvido a simplificar a questão para chamar todos os crentes em Deus de ignorantes, assim como minha Fé exige que eu faça escolhas, tome por minhas Verdades alguns tijolos entre tantos outros disponíveis.

As pessoas se matam não só por causa deste Deus que está comigo, tampouco pela laicidade do Doutor que odeia religiões. Elas sempre se violentaram, por terra, por causa da cor da pele, do gênero, da sexualidade, do idioma, do time de futebol. Final das contas, não sabemos é lidar com as diferenças.

Em A conquista da América, Todorov afirma que “quando dizemos que Colombo tem fé, o objeto é menos importante que a ação: sua fé é cristã, mas tem-se a impressão de que, se fosse muçulmana, ou judaica, ele teria agido do mesmo modo”. A força da crença (e não o tipo) é que movia suas aventuras. E sua ignorância sobre o índio não decorria de seus princípios, mas porque nunca saiu de si mesmo.

Descobrindo um continente, ou debatendo em programa de rádio, somos movidos pelas crenças (mesmo que seja a fé na ausência de fé), e fazemos uso de narrativas para explicar nossas visões do mundo. A ignorância não reside no fato de ser ou não ateu. Empedernida, ela resta é nesta indisposição de sairmos de nós mesmos, de nos colocarmos no lugar do outro e, assim, descobrirmos como somos semelhantes em nossas divergências.

Ou não. Porque isso é uma crônica, apenas. Uma narrativa, onde decidi começar a semana mais sério do que de costume, e bem mais generoso do que tenho sido.

Nas segundas-feiras, a coluna Redor da Prosa traz crônicas, que não devem ser lidas por gente séria demais, sob hipótese alguma.

Todo sujeito que odeia os Estados Unidos é como aquele bêbado chato, que sempre termina a noite reclamando da mesma coisa, seja do chefe chato ou da ex-namorada, do irmão que é o preferido em casa ou da programação da Globo. Não tem novidade, os argumentos são os mesmos, noite após noite, grade depois de grade. Mas, nos fins de 2001, encontrei um bem original.

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Professor da UFPE naquele tempo (agora é aposentado), ele se sentou à mesa onde eu comia alguma besteira, apresentou-se com jeito de quem ensaiou a fala, disse que acompanhava o programa de TV que eu apresentava e sugeriu uma pauta. Diferente do que eu suspeitei no começo do papo, tinha nada com o atentado às Torres Gêmeas.

– Gibis! Ninguém se dá conta, mas os americanos vêm utilizando os gibis há tempos, são sua principal arma imperialista, porque nos pegam desarmados, desavisados, e fazem a cabeça das nossas crianças.

“Verdade”, eu respondi. Tenho esse péssimo cacoete, quando não estou interessado no papo, fico repetindo “verdade, verdade”. Ou seja, ao invés de uma fala que desestimule, eu incentivo ainda mais o cidadão. Esse foi o caso do paranóico professor, ele anoiteceu naquela teoria da conspiração, sem que eu pudesse fugir, porque esperava uma estagiária da TV ali, para lhe dar carona, e ela sequer tinha celular (é, faz tempo).

– Nossos pequenos brincam de mocinho e bandido americanos, não se interessam pela cultura de outros países, não assistem às aulas!

– Verdade.

–Mesmo quando o personagem é estudante, como o Peter Parker, termina cabulando aula. Como se prender um batedor de carteira fosse mais importante do que ter conhecimento. Ora, aquele ladrãozinho nem existiria, nem precisaria ser vencido pelo Homem-Aranha, se tivesse estudado.

– Verdade.

– Você já viu herói de gibi americano lendo um livro? Depois ainda querem dizer que esse tipo de revista é uma boa entrada no mundo da leitura. É como pensar que comprar álbum de figurinha da Copa do Mundo sirva para o menino sonhar em ser presidente de clube de futebol.

“Heim?”, pensei, começando realmente a me assustar. Porém, após estudar o que dizer, soltei:

– Verdade.

– É como imaginar que jogo de quebra-cabeças é convite à filosofia!

– Verdade (“Meu Deus!”).

– Que brincar de Lego instigue o moleque a ser arquiteto quando crescer!

– Verda... Ei, professor! E se eu disser que brincava de Lego e achava sim que seria legal construir prédios?

– Certo. Mas construiu algum? Ou virou cartola de seu clube? Tornou-se filósofo? Ou um grande leitor? – epa!

– Por que o senhor acha que não sou um grande leitor? Jornalistas, até os apresentadores de TV, também leem, professor.

– Cristiano... É verdade.

– E também fui leitor de gibis, muito, mas não me transformei em um bitolado.

– Verdade.

Lembrei daquele senhor antiamericano por dois motivos: os dez anos do atentado de 11 de setembro tomando conta da mídia durante a semana inteira, e um aluno meu, que estava reclamando porque já era domingo. “Veja o lado bom, amanhã teremos aula”, brinquei. E ele respondeu: “É verdade”.

Sempre gostei de ler crônicas por isso, mesmo assuntos banais, lembranças corriqueiras e aparentemente insignificantes como a paranóia daquela professor, podem dar um bom texto. Como este.

– Verdade.

Nas quartas-feiras, a coluna Redor da Prosa traz mais intenções do que impressões. Dia de elencar leituras, eventos e outras coisas programadas.

Ler Alvo Noturno, do argentino Ricardo Piglia, que chega às prateleiras na próxima semana (pela Companhia das Letras, com 256 páginas). Crime, mistério, dialogismo; em outros autores, nada disso promete coisa além, são elementos bem rodados nas calhas editoriais, faz tempo. Mas Piglia é assunto outro, que requer texto separado, crítica mesmo. Era em escritores como ele que eu pensava, por exemplo, quando indaguei Cristovão Tezza (em evento) por que ele sempre repete que “os imitadores de Borges são horrorosos”. Creio que o problema está na imitação – ou melhor seria dizer no resultado da imitação – e não na fonte copiada. Sei montes de seguidores de Machado que nunca conseguiram melhor sorte.

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Ir ao lançamento de O destino das metáforas, livro de contos de Sidney Rocha, em edição caprichada da Iluminuras (R$ 38,00 /114 págs.). Acontece hoje, às 19h00, na Livraria Cultura (Recife Antigo). Intenção que é dívida. Devo por conta da obra em questão, das conversas com o autor (que tanto tem me estimulado em reflexões recentes sobre os caminhos e possibilidades da crítica) e também das férias que não tive. É sempre descanso raro estar com os amigos.

Escrever sobre Faca, de Ronaldo Correia de Brito, para coluna futura. Prefiro este livro ao premiado romance do autor, Galiléia (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, em 2011). E por razões opostas às qualidades que tantos veem na obra. Por enquanto, no papel rabisquei apenas dois parágrafos e o título: Sobre uma Faca pouco afiada. Como em O imperfeito, impreciso e bom livro de Sidney Rocha, acredito que as virtudes dos contos de Ronaldo não precisam nem podem surgir de lugares-comuns da crítica, como a “depuração da linguagem” e o “domínio da narrativa”.

Preparar o programa NotaPE, que será outra parceria com o portal LeiaJá. Coisa anda atrasada, mas ideia aparenta chances grandes de sucesso. Gravaremos talk show em teatro, com plateia, de modo que funcione como televisivo e também como evento sobre temas ligados à leitura, e não só à literatura.

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