Foi na Albânia, um pequeno país de 3 milhões de habitantes, situado no leste europeu, que Vicente De Paula Mercedes decidiu jogar futebol. O brasileiro, de 24 anos, recebeu uma proposta tentadora, de seu então agente Jean Pierre, para jogar no Bylis Ballshi, da primeira divisão albanesa, e não pensou duas vezes. "Me ofereceram um apartamento e dois meses de salários adiantados, para jogar durante cinco meses", conta o lateral-direito, ao Estadão, que acrescenta: "Nada disso foi cumprido".
O que Vicente não esperava era que alguns meses após sua contratação teria que executar uma fuga cinematográfica para voltar ao Brasil. Tudo isso, em meio a uma pandemia e com a iminente possibilidade de sua mãe, Doraci De Paula, falecer. "Eu alertei ao Vicente para ele não ir jogar no futebol albanês. Conhecia um pouco da personalidade daquelas pessoas e sabia como o futebol funcionava lá", explicou Bruno Ricardo, atual empresário do atleta, que já jogou em Kosovo, país vizinho à Albânia, e o ajudou em sua fuga.
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Vicente, como grande parte das crianças brasileiras que crescem em meio a precariedades, via no futebol um refúgio. Um lugar em que poderia se ausentar dos obstáculos impostos pela vida e se divertir. "Nunca foi fácil, sempre convivi com barreiras e tive que superá-las. O futebol era uma válvula de escape pra mim. Era o momento em que eu esquecia e deixava as dificuldades de lado. Sempre fui um guerreiro", revela o jogador, que começou a dar seus primeiros toques na bola aos seis anos, nas ruas da Vila dos Remédios, zona oeste de São Paulo.
Foi a cerca de seis quilômetros dali que ele se profissionalizou como jogador. Vicente passou numa peneira do Osasco Audax, em 2011, e jogou durante sete anos na equipe da região metropolitana de São Paulo, até ser emprestado ao Atlético de Cajazeiras, da Paraíba. Lá, suas boas atuações chamaram a atenção do Lviv, da Ucrânia, onde jogou por uma temporada, até partir para a Albânia.
"O Vicente estava indo para sua segunda temporada na Ucrânia. Eu pedi para que ele continuasse lá", disse Bruno, que, na época, tentava recrutar o jogador para sua lista de agenciados. "Eu disse que a liga ucraniana era muito melhor que a albanesa, mas ele queria brigar por algum título, o que não aconteceria no Lviv, e as condições da proposta do clube albanês eram, de fato, melhores", completou o agente.
Vicente, então, arrumou suas malas e partiu para a Albânia. Chegando lá, ele caiu em desalento. Nada do que foi combinado pelo clube foi cumprido. O agente, Jean Pierre, que viabilizou sua negociação, desapareceu. "As coisas estavam estranhas. Concordei com uma situação e era completamente diferente. Os salários adiantados não foram pagos. Me deram apenas mil euros. Sequer o apartamento foi entregue no tempo certo. Demorou mais de um mês para eu ter onde morar", disse o jogador.
O lateral revelou que o clube afirmava estar disposto a ajudar, mas nada era feito. Ele decidiu manter seu compromisso com o Bylis Ballshi, na expectativa de que a equipe cumpriria com o que havia sido acordado, mas com a chegada da pandemia o cenário ficou mais complicado. "Continuei trabalhando, mesmo com a paralisação dos campeonatos e com a chegada da Covid-19. O clube decidiu não parar e ameaçou impor uma multa aos atletas que parassem. Nem equipamentos de proteção eles deram. Tive que tirar tudo do meu bolso, para ter o mínimo de higiene", revelou.
Vicente vivia com os 1000 euros recebidos em sua chegada e outros 250 euros dados pela Federação Albanesa de Futebol por conta da paralisação das atividades futebolísticas. "Tive que economizar ao máximo para sobreviver", disse o lateral, que morou, de favor, na casa de um jogador argentino da equipe, que falava bem português, enquanto sua residência não era entregue.
Para piorar sua situação, nesse intervalo de tempo, entre sua chegada ao clube e o início da pandemia, sua mãe foi diagnosticada com um câncer terminal no pâncreas e ficou entre a vida e a morte. "Falei ao clube que encontraram um câncer no pâncreas da minha mãe e os médicos disseram que era muito grave, que ela poderia partir a qualquer momento. Pedi para que me liberassem. Queria dar forças pra ela. Garanti que iria retornar, mas eles negaram", disse Vicente.
Infelizmente, a mãe de Vicente, Doraci De Paula, faleceu e ele não conseguiu chegar a tempo de se despedir. Isso, somado à falta de compromisso do clube em manter o que havia sido combinado, foi o estopim para que o jogador iniciasse uma fuga da Albânia. "Fiquei inconformado deles não compreenderem uma situação tão delicada. Se ela partisse eu não conseguiria vê-la nunca mais. O que aconteceu. Eu só conseguia chorar, não sabia como expressar meus sentimentos ao clube e, mesmo assim, eles se recusaram a me liberar", explicou.
"O Vicente pediu para retornar ao Brasil para ver o sepultamento de sua mãe. Ele poderia acompanhar o enterro dela tranquilamente, já que a disseminação da Covid-19 no país, ainda não influenciava nos sepultamentos. Enfim, não deixaram. Ele estava sem TV, sem internet e às custas do colega argentino, Marcelo Gonzáles. Foi então que ele entrou em contato comigo pedindo ajuda", disse Bruno.
O agente explica que a primeira coisa que fez foi entrar em contato com o consulado brasileiro, em Tirana, capital da Albânia. "Conversei com uma mulher, chamada Márcia, do consulado. Não expliquei a situação por completo, apenas perguntei se ela poderia ajudar no retorno", revelou Bruno e acrescentou: "Comprei uma passagem para ele de Frankfurt para Paris e de Paris para São Paulo, mas, a princípio, não deu certo".
Vicente teria que fazer um voo direto para São Paulo, já que a Albânia não faz parte dos países do espaço Schengen, uma convenção entre nações europeias, que permite a livre circulação de pessoas entre os signatários. Para a aquisição de outra passagem, o jogador teria que passar dias dentro do aeroporto, já que as fronteiras estavam sob restrições por conta da pandemia. Foi então que Bruno recorreu a embaixada brasileira na Alemanha e na França.
"Garantiram que o Vicente não conseguiria retornar, mas após inúmeras conversas com embaixadas e consulados deu certo", disse Bruno. Vicente, por sua vez, ficou aliviado. Ele conseguiu embarcar no dia 2 de junho. "Antes de voltar ao Brasil, pedi ao clube que pagasse minha passagem, como constava nos termos do meu contrato. Mais uma vez, eles negaram. Agradeci a Deus por ter conseguido retornar. Não sabia o que poderia acontecer mais pra frente. O clube não faria nada por mim", afirmou.
Bruno Ricardo alerta que esse tipo de situação acontece com frequência em clubes do leste europeu e do leste asiático. "Jean Pierre pegou a comissão e abandonou Vicente, o que é comum. Isso costuma acontecer muito. Geralmente, quando os agentes percebem que terão problemas, eles deixam o atleta sozinho", explicou o empresário e acrescentou: "Às vezes esses clubes prendem o passaporte do jogador".
Já no Brasil, Vicente continuará insistindo em um futuro promissor no futebol. Seu sonho é jogar em uma liga de alto nível. Ele lamenta a morte de sua mãe, mas agradece pelos cuidados que teve ao longo dos anos. "Minha mãe sempre me ajudou. Ela foi fundamental. Consegui chegar aqui por conta dela. Devo tudo a ela."