Como uma frágil muda fincada no solo do Brasil, a democracia cresce quando é estimulada e protegida de perto por seus cuidadores. Em seu caule, o nutriente da liberdade de imprensa garante a ramificação saudável da planta e permite que os direitos constitucionais possam ser colhidos pelos brasileiros. Embora uma raiz forte proporcione frutos íntegros, como um pulgão indesejado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tenta fragilizar o plantio com agressões a jornalistas e, ao mesmo tempo, paga emissoras e portais com dinheiro do contribuinte para falar bem do seu governo.
Não à toa que, pela primeira vez, o líder do Executivo no Brasil foi incorporado ao relatório "predadores da liberdade de imprensa", publicado nesta semana pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que reuniu 37 chefes de Estado classificados como ‘tiranos’.
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Ele estreou na lista de governos que impõem “uma repressão massiva à liberdade de imprensa em todo o mundo” por adotar “uma retórica belicosa e grosseira contra a imprensa”, que “cresceu consideravelmente desde o início da crise sanitária”, explica a RSF.
A relação com a imprensa se configura como um "projeto autoritário", comenta Queiroz/ foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Para a doutora em Comunicação e especialista em Ciência Política, Nathaly Queiroz, embora o tratamento desigual entre os veículos ‘pró-governistas’ e a imprensa crítica indique uma postura controversa, na verdade, trata-se de um projeto deliberado para abalar os pilares democráticos. “É a materialização de um cenário de enfraquecimento radical da democracia”, traduziu a jornalista, que adverte, “não existe democracia se as pessoas não podem se manifestar, reivindicar direitos".
Como integrante do coletivo Intervozes - que luta pelo Direito à Comunicação presente no art. 220 da Constituição Federal -, ela informa que relatórios da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mostram que o perfil do agressor mudou. Antes, profissionais da imprensa eram alvos de agentes de Segurança, principalmente em manifestações de rua. Porém, os dois últimos estudos apontam que políticos empossados, em especial na esfera federal, assumiram a dianteira das ofensas.
“Vocês são uma porcaria de imprensa”*
Para acessar as garantias constitucionais, o povo brasileiro precisa se apoiar no empoderamento, semeado através da circulação de informações sem amarras, como descreveu o pesquisador e cientista político Rodolfo Marques.
"A gente apregoa a ideia de democracia a uma participação mais ampla, a um acesso maior a informação, a um espaço maior de debate, à divergência para construção de conhecimento e das melhores alternativas. A democracia precisa desses alicerces", ressaltou.
Um dos pontos de conflito ao cenário tido como ideal se apresenta na formação – quase cartelizada - do sistema comercial de comunicação no Brasil, sustentado em uma oligarquia de poucos donos e muitos interesses.
Marques lembra do prejuízo causado pelo privilégio que a TV Globo deu ao então candidato Fernando Collor de Melo no último debate presidencial contra Lula para eleições de 1989. Ele foi eleito e, posteriormente, destituído do cargo. Já a emissora teve que assumir mea-culpa pelo dano causado por sua edição após quase 30 anos.
A doutora em Comunicação vai mais a fundo e, destaca que o atual ‘projeto autoritário’ resgata o ideário colonialista o qual a identidade nacional foi construída desde a invasão portuguesa. Desse modo, a relação de ‘profunda exploração’ é remontada em um novo contexto.
“Para explorar pessoas é preciso contar com a falta de esclarecimento”, afirmou Queiroz, que continuou, “as informações são bussolas que orientam as pessoas na sua tomada de decisão e, mesmo com o movimento de estimula a ‘descredibilização’ da imprensa, ainda vemos parte da população buscando para checagem”.
Para não falar sobre o menor índice do PIB em três anos, o presidente fez gesto obsceno para jornalistas/Reprodução
"Cale a boca, vocês são uns canalhas”*
Além de reiterar ameaças direcionadas a repórteres e aos veículos com a não renovação de concessões, o comportamento do presidente mostra certo esforço para acabar com a credibilidade de quem, por ofício, deve questioná-lo.
Com ou sem envolvimento, ele se beneficia da atividade do 'gabinete do ódio', apontado como o núcleo virtual de produção e disseminação de notícias falsas contra adversários desde a campanha de 2018.
“É um cenário muito grave que junta essa desinformação, o ataque deliberado à Liberdade de imprensa e junta o apoio a alguns veículos de comunicação que se colocam como pró-governistas ao mesmo tempo em que se faz ameaças aos veículos que se posicionam de forma crítica”, avaliou Queiroz.
As evidências da milícia digital se intensificaram com investidas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e impulsionaram a abertura da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das Fake News na Câmara, em 2019, quando a ex-líder do governo Joice Hasselmann (PSL-SP) denunciou que o suposto gabinete era gerenciado pelos próprios filhos do presidente.
Segundo uma das aliadas mais próximas de Bolsonaro na campanha, o vereador Carlos Bolsonaro (Patriota-RJ) monitora as produções de conteúdo, enquanto o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) escolhe novos alvos. Ainda conforme o depoimento de Joice, as páginas falsas favoráveis ao presidente dispõem de 1,87 milhões de robôs, custeados por até R$ 20 mil pelo disparo de apenas uma publicação.
"Dentro desse contexto, o governo Federal optou em manter constantemente o clima de conflito do próprio governo com parte dos veículos. Há um privilégio a determinadas empresas e um enfrentamento em relação a outros", reitera Marques.
Bolsonaro reunido com o ministro Fábio Faria e seu sogro, Silvio Santos/Reprodução/Facebook
Tal empenho se sobressai nas despesas da Secretaria de Comunicação (Secom) para que influenciadores digitais e apresentadores falem bem do governo, e defendam suas posições em rede nacional, como o falso tratamento precoce da Covid-19. Nomes como Sikêra Jr., Ratinho, Ernesto Lacombe, Alexandre Garcia, entre outros defendidos pela corrente conservadora, já receberam altos cachês com recursos federais destinados para verbas publicitárias.
Planilhas da Secom levantadas pela Folha de S. Paulo e utilizadas em denúncias da CPI da Covid mostram que foram gastos R$ 268 mil em recursos públicos para custear campanhas de divulgação da Reforma da Previdência, da nova cédula de R$ 200 e outras iniciativas. A publicação enfatiza que, dos 34 pagamentos, entre 2019 e 2020, 16 foram para defender as mudanças na aposentadoria.
A relação com o núcleo de emissoras interessadas em naturalizar os rompantes antidemocráticos da Presidência fica mais íntima na recriação do Ministério das Comunicações em 2020. Para assumir a pasta, Bolsonaro empossou o genro de Silvio Santos e deputado do Centrão Fábio Faria (PSD-RN). Também causou ‘estranheza’ o gasto de R$ 3,2 milhões para que a TV Brasil transmita a novela bíblica ‘Os Dez Mandamentos’, produzida pela Record TV do bispo Edir Macedo. Se por um lado rompe a estrutura laica do Estado, por outro, renova sua imagem junto ao eleitorado cristão.
“Minha vontade é encher tua cara de porrada”*
Enquanto democracias consolidadas como a Inglaterra e a Alemanha respeitam os sistemas públicos de comunicação e entendem que a BBC e a Deutsche Welle, respectivamente, são fundamentais para a democracia. No Brasil, meses após assumir o cargo, Jair Bolsonaro alterou a natureza da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – detentora da TV Brasil - e aglutinou a função estatal à atividade que devia ser apenas pública.
“Ela tinha a proposta de ser um sistema autônomo, com participação de membros da sociedade civil, das empresas, representantes do estado”, lembrou Queiroz.
Como um dos sintomas de que o caráter híbrido da EBC é 'inviável' e representa um choque de interesses, já que o sistema estatal - como a TVs Câmara e Senado - deve difundir as atividades do Governo e as movimentações nas casas legislativas, funcionários da própria empresa já denunciaram casos de autocensura em uma carta aberta, na qual expõem a falta de liberdade editorial fundamental para a atividade jornalística.
“No caso do Brasil, ao fazer essa fusão de sistemas, o Governo acaba promovendo um ataque ao Direto à Comunicação e parece reiterar que tem interesse em fragilizar tudo aquilo que diz respeito a uma comunicação mais autônoma e independente. Isso é algo gravíssimo”, adverte a comunicadora, que tem a gala acrescentada por Marques: "a comunicação monopolizada por qualquer governo sempre é algo complicador para qualquer democracia. É necessário pensar em uma pluralidade de vozes e perspectivas".
Tão danoso quanto o uso de agrotóxico em uma agricultura naturalmente orgânica, os reflexos do comportamento de Bolsonaro recaem na população, sobretudo, nas vítimas dos ataques de seus apoiadores, que replicam a atitude de disparar contra repórteres e jornalistas. Com as revelações de suspeita de negociações superfaturadas na negociação de milhões de doses imunizantes contra a Covid-19, a expectativa é que a inconveniência do presidente se intensifique para mascarar o medo de uma derrota no sistema eletrônico - ou impresso - nas urnas.
O LeiaJá solicitou uma posição ao gabinete digital do presidente Jair Bolsonaro sobre a motivação para a conduta radical com profissionais e veículos de imprensa. Até o momento da publicação, a assessoria não repassou informações. O espaço segue em aberto.
As mudanças nos produtos da EBC e as denúncias internas de cerceamento também foram questionadas, junto com os procedimentos utilizados para a escolha de empresas beneficiadas para propaganda do governo.
*Falas do presidente Jair Bolsonaro no trato com representantes de veículos de comunicação e imprensa em geral