O pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, nascido em 4 de junho de 1900 no vilarejo de Vila Bela (atual município de Serra Talhada), é um famoso personagem da história brasileira, em especial da região Nordeste. Mas provavelmente você o conhece pelo nome de Lampião, o famoso “Rei do Cangaço”, comumente descrito como um movimento de banditismo social brasileiro que teve início no século XVIII e durou até meados do século XX.
Para a professora de história Thaís Almeida, no entanto, essa é uma visão reducionista. “O Nordeste era muito marcado pela violenta desigualdade social, principalmente nos interiores. O poder arbitrário dos coronéis criava uma situação de opressão muito grande, e a fome e sede eram comuns entre a população pobre. Essa realidade social criou figuras como a dos cangaceiros, bandidos que praticavam crimes violentos, e ao mesmo tempo tinham um senso de justiça social que justificava a perseguição a representantes da lei - figuras associadas pela população à violência e descaso para com ela mesma - e até mesmo a distribuição de parte dos roubos para os pobres. Ao mesmo tempo, Lampião, junto com os cangaceiros, cometia vários crimes. Dessa dualidade que marca a figura de Lampião vêm os diferentes posicionamentos em relação a ele: para alguns, ele foi um herói que desafiou as estruturas do poder dominante e opressivo. Para outros, foi um bandido cujos atos são abomináveis”, contou a professora.
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O Cangaço se inseriu em um contexto de pobreza e miséria na região nordeste, causadas pela ausência do Estado durante o Império e também depois da Proclamação da República, tudo isso agravado pela seca. Segundo o professor de história José Carlos Mardock, “as famílias nordestinas precisavam fazer a própria justiça e acabariam levando o terror para os vilarejos e adjacências. Porém [o Cangaço] é um movimento complexo que não pode ser respondido de forma direta, sem levar em consideração que a entrada de Virgulino Ferreira representaria um marco nessa história”.
A fama do Rei do Cangaço crescia junto com a eficiência de seu bando e dele próprio, que recebeu o apelido de Lampião porque se comentava ser capaz de atirar tão rápido que a ponta de sua arma ficava vermelha como um lampião aceso. As andanças do grupo de Lampião por uma extensa área do Sertão nordestino também colaboraram para a construção de sua fama. Segundo o professor de geografia Carlos Lima, o bando de Lampião “se concentrou no sertão e passou por vários estados, da Bahia ao Ceará, passando por Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe, era uma área bem extensa”.
Essas grandes andanças, associadas à violência com que seu bando agia e também aos ideais de justiça social defendidos pelos cangaceiros, fez com que Lampião e seus homens ganhassem cada vez mais fama, de forma controversa, como explica o professor Mardock. “Pela organização, disciplina e violência com que impunha aos ‘cabras’, o respeito e as vitórias foram se avolumando. É certo também que muitas mortes foram atribuídas ao bando, o que ajudou na construção da fama. Por onde passava, torturava e matava deixando um rastro de crueldade. Por um lado, camadas mais pobres viam no bando atos de heroísmo. Por outro, os homens sobreviviam de saques às grandes fazendas. Alguns estudiosos teriam transcrito como um instrumento de ‘justiça social’, explicando o amor e o ódio que Lampião e seu bando geravam”, disse ele.
O conhecimento geográfico que os cangaceiros tinham da região da Caatinga, bioma do semi-árido nordestino que é de difícil acesso para quem não conhece a área, especialmente em tempos mais secos, garantiram vantagens militares aos cangaceiros, ainda segundo o professor de geografia Carlos Lima.
“Como habitantes da região, eles sabiam usar a favor deles as dificuldades do terreno. Quem os combatia, eles chamavam de ‘macacos’, sofriam com o terreno, pois eram habitantes de zonas urbanizadas, não estavam acostumados. O conhecimento geográfico empírico era fundamental para os cangaceiros, que sem nenhum conhecimento técnico, somente da vivência no lugar, souberam usar isso como vantagem. Por exemplo, ocupando uma região mais alta do terreno que daria a eles uma visão melhor de possíveis ataques. Ocupando uma área mais erma, de difícil acesso, onde somente eles conheciam”, explicou Carlos.
Lampião foi morto junto com sua companheira, Maria Bonita, e os outros cangaceiros de seu grupo no dia 28 de julho de 1938, aos 40 anos de idade, com um tiro na barriga, na Grota do Angico, em Sergipe. Seus corpos foram deixados para serem devorados pelas aves de rapina, enquanto suas cabeças seriam expostas em praça pública. Segundo a professora de história Thais Almeida, a atitude da volante (grupos formados no governo de Getúlio Vargas para perseguir os grupos de cangaceiros) tinha por objetivo passar um recado de poder. “Tipo ‘isso que acontece com quem desafia os poderes do Estado’”, afirmou ela.
Legado
O movimento do Cangaço deixou marcas profundas na sociedade nordestina, especialmente, e também diversos legados que ainda persistem. De acordo com o professor de sociologia Marlyo Alex, mais conhecido como Manolo, Lampião deixou marcas estéticas e culturais a respeito da maneira como é visto o nordestino.
“Cria-se muito a imagem de um símbolo que acaba permeando a cultura do Nordeste e também a imagem do nordestino ser o personagem arredio que não aceita as coisas como são, luta, é sempre bravio de forma que vai estar sempre se impondo, tentando manter a cabeça erguida ou sua própria honra, o que está de certa forma ligado à questão do Cangaço, do Lampião”, contou o professor.
Questionado sobre as discussões acerca da dicotomia sobre a imagem de Lampião e do próprio Cangaço de forma geral, o professor afirma que classificar esse personagem histórico simplesmente como bandido é uma atitude simplista. “A ausência do estado, a conjuntura social e até o clima favoreceram uma cultura de violência do nordeste, que é anterior até ao fenômeno do cangaço e dentro disso nasce esse fenômeno que nos traz o Virgulino Ferreira. Ele se eterniza por imortalizar a estética visual do cangaceiro e por construir em torno de si uma aura de herói social, até pq o estado era tão opressor quanto qualquer outro em certas localidades, dessa forma um grupo de homens, jovens, bem vestidos e que vivam de forma farta e aventuras na caatinga adentro criam uma certa aura nos jovens que almejavam se tornarem também cangaceiros e até das moças que se sentiam seduzidas por esses bandoleiros”, afirmou Manolo.
Para o professor, um exemplo que ilustra bem a complexidade dessa questão é o fato de que a imagem de Lampião muda em diferentes lugares do país, a depender do que se passou com ele e seu bando no local. “A região de Serra Talhada preserva muito da memória criada em torno dessa mística idealizada do cangaceiro como herói. Já em Mossoró, no Rio Grande do Norte, existe até hoje comemorações do episódio em que Lampião e seu bando foram repelidos”, contou Manolo.
Lampião e o Enem
Questionado sobre como Lampião e o Cangaço podem aparecer na prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o professor Manolo conta que isso já aconteceu uma vez, com uma questão que associava figuras de Maria Bonita e Zuzu Angel.
“Algo que pode ser temática de questão é a relação do cangaço com o fenômeno político da época que era o Coronelismo, a Era Vargas, até porque foi nesse período que foram produzidas as únicas filmagens que temos conhecimento do Bando feitas por Benjamin Abrahão, que é imortalizado na retomada do cinema pernambucano em Baile Perfumado, e dentro da Era Vargas o fim do cangaço com o estabelecimento da volante que atuou para desmantelar esse grupos. Outro possível tema é a discussão acerca do cangaço feita pelo historiador britânico Eric Hobsbawm no livro Bandidos no tema de banditismo social, que me lembra muito a primeira faixa do disco Da lama ao Caos, de Nação Zumbi, onde ele relaciona Lampião a Zapata, Sandino e como ainda essas questões sociais estão relacionadas a violência”, disse Manolo.
O professor de geografia Carlos Lima conta que apesar de serem mais comuns em provas de outros vestibulares, como o Sistema Seriado de Avaliação (SSA) da Universidade de Pernambuco (UPE), questões relacionando a história de Lampião e seu bando com a vegetação e o relevo nordestinos podem aparecer no Enem.
Para a professora de história Thaís Almeida, é a dicotomia entre as imagens de herói e bandido atribuídas a Lampião que têm maiores chances de aparecer na prova, enquanto o professor Mardock aposta mais em análises didáticas de características como religião e cultura, ou abordagens que conectem o Cangaço à República Velha e ao fenômeno do Coronelismo, sem que haja, no entanto, “análise sociológica ou antropológica sobre o movimento. Logo, as mesmas abordagens que são realizadas sobre Canudos”.