As ruas do centro antigo de San Juan perderam parte da cor. A metade inferior das paredes das casas de estilo colonial deixou de ser amarela, verde ou rosa. Passou a ter manchas brancas. São os borrões de tinta feitos pela prefeitura que escondem pichações que pediam a renúncia do governador, Ricardo Rosselló.
Com música, como o reggaeton, dança, e ioga; de carro, a cavalo ou a pé, milhares foram às ruas depois que vieram à tona mensagens trocadas pela cúpula do governo. Os textos tinham teor misógino e homofóbico e ridicularizaram a população, líderes políticos e, para choque de todos, os mortos pelo furacão Maria, que assolou a região em 2017.
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Na sexta-feira, Rosselló deixou o cargo em meio a uma festa da população na rua, com direito a contagem regressiva e espumante. O sucessor, Pedro Pierluisi, chegou ao cargo sem ratificação das duas casas do Legislativo local como exigido pela Constituição, o que abriu um novo debate sobre a legitimidade da manobra. Para os porto-riquenhos, só importava a mudança.
Os moradores de San Juan estão enraivecidos pelas denúncias de corrupção contra seis funcionários pelo desvio de US$ 15 milhões que deveriam ser usados na reconstrução do país após o furacão, pelo escracho com que foram tratados nas mensagens e pela falência dos serviços públicos. "As pessoas não se sentiam vivas assim desde o Maria", diz Lady Lee Andrews, de 46 anos, poeta e comerciante.
Manuel Ortiz sente o mesmo: "Estou mais otimista do que ano passado. Protestei toda a minha vida e nunca achei que veria o que vi nas últimas semanas. Seja o que for que aconteça agora, nós definimos o modelo a seguir". Graduado em história, Manuel virou bartender e completou 28 anos com a maior festa que poderia desejar: a renúncia de Rosselló, no dia de seu aniversário.
A ilha registrou taxa de desemprego de 8,4% em junho, bem acima da média dos EUA, na casa dos 3%. A ex-colônia espanhola tem pouca ou nenhuma semelhança com as grandes cidades dos EUA. Porto Rico tem 46% da população vivendo na pobreza. Nos EUA, a porcentagem gira em torno dos 13%. Para além do uso do dólar e dos turistas que chegam nos navios atracados, é difícil lembrar alguma ligação com os americanos em meio às conversas em espanhol nas ruas quentes e úmidas. "Eu ficarei muito decepcionada se tudo isso não estimular uma mudança maior com os EUA", diz Lady Lee.
"Se somos parte dos EUA, por que não temos as mesmas condições que eles?", questiona Jesús Barreto, que trabalha em um restaurante - em um dos vários empregos que acumula para pagar as contas. Energizados pelo que definem como um momento histórico, os porto-riquenhos dizem que a próxima mudança, natural, seria rediscutir a relação com os EUA. Embora haja ceticismo sobre um movimento de independência ou sobre a anexação pelos americanos de Porto Rico como um Estado - esta última, plataforma política de Rosselló -, a insatisfação com as disparidades é presente.
Há um sentimento de injustiça pelo fato de não poderem votar para presidente, especialmente pelo incômodo com Donald Trump e sua possível reeleição em 2020. O republicano eleito com plataforma anti-imigração dispara críticas contra latinos e, em outubro de 2017, em uma visita à ilha após o furacão Maria, lançou rolos de papel higiênico à população.
Mais recentemente, Trump disse que a ilha é "uma bagunça" e os políticos de Porto Rico não conseguem "fazer nada direito". A um grupo de democratas que inclui Alexandria Ocasio-Cortez, a popular deputada eleita por Nova York e com ascendência porto-riquenha, Trump sugeriu: "Por que não voltam e ajudam a consertar os lugares totalmente infestados de crime de onde vieram?".
O segundo debate dos pré-candidatos do Partido Democrata era o tema mais falado no Twitter na região de Porto Rico. A mesma atenção não foi dispensada pelos candidatos. Na primeira noite, porto-riquenhos se queixaram da ausência de perguntas sobre a situação da ilha que, uma semana antes, estampou as manchetes do New York Times.
Direito de voto
Os 3,2 milhões de cidadãos americanos que vivem na ilha não votam para presidente, mas participam das primárias. Há ainda porto-riquenhos que moram no continente e, portanto, votam na presidencial. Há 5 milhões de americanos com origem porto-riquenha vivendo em um dos 50 Estados dos EUA ou no Distrito de Columbia. A estimativa é a de que a população de porto-riquenhos na Flórida (Estado considerado crucial para a disputa de 2020) tenha subido de menos de 500 mil no início dos anos 2000 para 1,2 milhão após o furacão.
A população caiu 4% em 2018 e cerca de 15% desde 2008, segundo dados do Pew Research Center. No ano passado, Porto Rico tinha 3,2 milhões de moradores. Os mais jovens têm deixado a ilha rumo ao continente. A média de idade em Porto Rico cresceu de 36 para 43 anos de 2008 a 2018. No mesmo período, a média nos 50 Estados americanos e no Distrito de Columbia foi de 27 para 30 anos. Os nascimentos caíram 47% no período.
É certo que os porto-riquenhos estão fartos. Por ora, a unidade gira em torno da troca imediata de governador. "Essa é a primeira vez que nos protestos não se veem cores, não se veem partidos", diz Jesús Barreto. Na rua, nos supermercados ou restaurantes, a mudança é o assunto constante.
País sobrevive sob escombros após Furacão Maria
Cinco minutos de carro após sair do aeroporto, Zuny Torres, taxista, aponta para o lado esquerdo e mostra um telhado destruído. "Isso ainda está assim desde o Maria." Ela então aponta para o lado direito: a bandeira de Porto Rico hasteada com as cores preto e branco, no lugar no azul, vermelho e branco, é a imagem dos protestos. O furacão Maria, que atingiu a ilha em 2017, não foi o que fez o governador Ricardo Rosselló renunciar, mas influenciou.
O país ainda vive sob escombros quase dois anos depois da passagem do Maria. Basta olhar com atenção para achar as lonas azuis do FEMA (a agência americana de ajuda em desastres) servindo de telhado. A comunidade de Estância del Sol, na cidade de Río Grande, parece ter mais cachorros do que gente. A cada duas casas, uma parece ou está abandonada. Normalmente as deixadas para trás são as sem teto ou com lona azul no lugar das telhas. Depois do furacão, o bairro ficou oito meses sem luz e, hoje, é uma região fantasma. Arline Alfaro ficou e faz as contas nos dedos de quanto tempo esteve sem eletricidade: 8 meses, conclui. "Eu nem posso reclamar, estamos vivos."
O abandono piorou com o Maria, mas já existia. A dívida que levou o território americano a decretar falência, antes do furacão, esvazia os serviços públicos. Sem perspectiva, muitos migraram e a população na ilha caiu 15% desde 2008, com um envelhecimento maior do que o verificado nos EUA e queda drástica nos registros de nascimentos.
A população jovem decrescente fez centenas de escolas primárias fecharem as portas. Em um mesmo bairro, em Trujillo Alto, é possível achar duas escolas abandonadas a poucas ruas de distância. Depois do furacão, o governo anunciou que fecharia 283 escolas, em razão da operação abaixo da capacidade.
Angélica Camacho vende doces na beira do porto onde navios de turistas atracam. Nos últimos dois anos, teve de mudar seus filhos de escola três vezes. Professores da rede pública, como a mulher de Jesús Barreto, compram materiais escolares básicos como papel, giz e produtos de limpeza com seus salários.
Mais longe dali, Carmen Nereida Santiago Diaz usa guarda-chuva para ir ao banheiro quando chove muito. Mesmo com casa de cimento, as infiltrações no teto depois do furacão não foram totalmente reparadas. Ao lado de Carmen, Beylie Santiago Diaz, que vive perto, diz que uma das caixas que chegaram com roupas para doação veio misturada a lixo. "Não sei se foi engano, mas era puro lixo", afirma.
A viagem a Corozal é cheia de sinais da passagem do Maria: estradas remendadas pela metade, postes de iluminação caídos e muitos telhados azuis. No campo, como elas chamam a região, a perspectiva de mudança com a troca de governo é quase inexistente. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.