José em uma das hortas do Instituto Federal de Vitória de Santo Antão. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
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– Bença, padrinho. Bença, tio – dizem as crianças que pausam o jogo de futebol para a despedida.
– Deus te abençõe. Bença, mainha. Bença, pai. Bença, Ciada.
– Vai com deus, meu filho, cuidado no caminho.
A partida do estudante José Marques dos Santos, 30, ainda não se tornou habitual, mesmo que todas as semanas ele retorne à sua casa e ao afago dos familiares, se despedir do único filho homem desperta nos pais um misto de sentimentos de orgulho, cuidado e saudade. José foi o primeiro da família a ter acesso ao ensino superior e por isso precisou se mudar. Em 2015, ele recebeu a notícia da aprovação em primeiro lugar, nas vagas reservadas a moradores de Zona Rural, no vestibular para cursar agronomia no Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), no campus de Vitória de Santo Antão, Zona da Mata do Estado.
José Santos é filho dos agricultores Maria das Dores dos Santos, 50, e José Marques de Lima, 52; o rapaz nasceu na cidade de Amaraji, Zona da Mata Sul de Pernambuco. Ainda novo, se mudou para a cidade vizinha porque os familiares possuíam terras na Zona Rural do município de Primavera, distante cerca de 100 quilômetros da capital pernambucana. Passou a infância e adolescência no Sítio Maracujá, comunidade que herdou esse nome pelas diversas plantações da fruta na localidade e de acordo com os moradores, por situações em que os cavalos soltos comiam o fruto e eram logo em seguida intoxicados.
Por morar em uma região rural e mais distante dos serviços básicos e públicos, a relação de José com o estudo precisou ser de muita força de vontade e paciência. Na infância, estudou no colégio público nas proximidades do vilarejo, mas ao terminar o ensino fundamental, não existiam escolas próximas para que ele desse continuidade aos estudos. A instituição mais perto ficava na cidade de Pombos, a cerca de 70 quilômetros de sua casa. “Minha família conseguiu uma vaga para mim em uma escola de Pombos e o trajeto só de ida durava cerca de uma hora e trinta minutos”, conta o estudante. Ele, assim como outros alunos que precisam se deslocar de regiões mais distantes, eram transportados em veículos do tipo “pau de arara”, superlotados, sem segurança e em péssimas condições até a escola. José ia e voltava todos os dias.
Além da dedicação com a escola, ele sempre ajudou os pais no campo. A relação de José com a terra vem de berço, não tem idade certa de início e revela muito sobre a escolha do curso acadêmico posteriormente. A família sempre sobreviveu do cultivo de plantações diversas, frutas, verduras, legumes, para consumo próprio e para a venda. Os agricultores familiares sempre contaram com a ajuda do filho para a plantação e colheita, mas reservavam o momento de estudo sagrado para que José pensasse em um futuro diferente e com mais oportunidades.
Família faz a colheita do chuchu no Sitio Maracujá. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Em 2009, aos 21 anos, ele conseguiu concluir o ensino médio na cidade de Pombos e na época, pensava que já tinha chegado ao topo do que poderia ser feito, para alguém que mora tão distante de tudo. Passou um ano focado em ajudar a família nas plantações para aumentar a renda de seus parentes, já que a região da Mata Sul de Pernambuco é conhecida pela boa colheita justamente por ser mais arborizada, com chuva constante e rodeada de rios. Em 2010, José decidiu que precisava dar um passo a mais e fez o concurso para vigilante da Prefeitura de Primavera. Foi aprovado e se tornou um funcionário público. Mais uma vez, precisou se dividir entre a responsabilidade fora de casa no seu novo emprego e os trabalhos no campo.
“Ajudou demais minha família essa renda do concurso porque na agricultura familiar existem muitas dificuldades de manter o equilíbrio. É tudo por época, sabe? Tem mês que vendemos mais um tipo de produto e no outro não. O bom é que boa parte da nossa alimentação tiramos das nossas plantações”, avalia José.
Em 2014, em uma tarde após o trabalho no campo, José descansava da colheita e como de costume, ligou o rádio para ouvir as notícias. Daquele momento em diante, a tarde não seria a mesma. Pela primeira vez, ele descobriu que existia um Instituto Federal Pernambuco localizado na cidade de Vitória de Santo Antão e que as inscrições para o vestibular estavam abertas. A notícia transmitida pela Rádio Jornal causou um espanto imediato em José. Ele ficou surpreso ao saber da existência da instituição de ensino mais próxima de sua realidade. “Em outro momento eu também vi na cidade um menino com a farda do IFPE e aí me interessei de verdade por descobrir o que era e se eu poderia participar”, relembra.
Da esquerda para a direita. Mãe, pai, tia e José. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
O futuro agrônomo destaca que o acesso à informação nas zonas rurais é muito difícil. “Pode parecer bobagem para muitos, mas a gente mora perto das faculdades e muitas vezes nem sabe que isso existe e é possível ter acesso. Eu acho que as antenas parabólicas têm um lado muito negativo nisso. A informação que chega muitas vezes não é do seu redor. São mais notícias de São Paulo e do Rio de Janeiro do que de Pernambuco. Por isso, o rádio ainda é tão presente aqui como meio de comunicação”, aponta.
Após descobrir sobre a prova de vestibular, José Marques também se surpreendeu ao saber que os filhos de agricultores das zonas rurais poderiam ingressar no instituto por uma cota rural. Atualmente, o IFPE adota como ação afirmativa, no percentual de 50% das vagas destinadas à ampla concorrência, a inclusão da reserva de oportunidades de 25% para estudantes de escola pública oriundos do campo que optarem por cursos de vocação agrícola oferecidos nos campi do IFPE de Afogados da Ingazeira, Barreiros, Belo Jardim e Vitória de Santo Antão.
Entenda como funciona a cota para moradores da Zona Rural no IFPE
Arte: João de Lima/LeiaJáImagens
Um ano de estudo se passou e em 2015 o resultado foi divulgado. O nome José Marques dos Santos estava no listão dos aprovados e a notícia foi motivo de muita felicidade não só para o novo estudante do IFPE, mas para toda a sua família, justamente por ser o primeiro a ingressar em um curso superior. “Eu acho que a criação desse modelo de cota era muito urgente. Quem é do campo sabe das dificuldades e também valoriza muito a educação. Posso dar o exemplo da minha turma, entraram 40 pessoas, cinco dessas eram cotistas, e atualmente só restam 16 alunos no total, mas os cinco filhos de agricultores ainda continuam lá”, frisa.
Na visão de José, entrar no curso superior em uma instituição pública é difícil para quem não teve tempo de se dedicar por uma vida, mas se manter lá é ainda mais difícil. “Se não fossem os projetos sociais do IFPE de auxílio em todos os sentidos, eu não conseguiria estar aqui hoje”, afirma. Após ingressar no curso de agronomia, ele precisava conquistar uma moradia no centro de estudos para passar a semana no dormitório, porque seria impossível ir e voltar para o sítio todos os dias.
Da casa dos pais de José até o IFPE de Vitória são cerca de 70 quilômetros que parecem se multiplicar pela falta de estrutura de grande parte do trajeto. A estrada de barro até chegar ao sítio da família é desgastante, esburacada e pouco iluminada. Ao sair da BR e entrar nela são cerca de 40 minutos de carro até o Sítio Maracujá. “A gente sente saudade, mas seria muito ruim meu filho fazer esse trajeto todo dia. É escuro, perigoso e tem muito assalto. Levam moto, celular e tudo”, lamenta a agricultora Maria das Dores.
“Eu tive que resolver muitas coisas. Primeiro, conseguir a moradia era muito importante e me foi garantido esse benefício. Também fui selecionado para ganhar o auxílio de assistência estudantil e recebo R$ 100 mensalmente”, complementa. José precisou conversar com a Prefeitura de Primavera porque não podia pedir demissão do concurso público já que a renda ajudava a família. Após um acordo, ele conseguiu uma oportunidade de se dividir entre os afazeres de vigilante e estudante de agronomia. Durante a semana, ele estuda e mora na instituição de ensino. Para conseguir trabalhar as 30 horas semanais, ele volta para Primavera nas sextas-feiras e fica até o domingo.
“No meu horário do trabalho, pego das oito da noite até às seis da manhã. Sexta, sábado e domingo atuo como vigilante. Assim, consigo trabalhar dez horas por dia e pagar o tempo necessário do trabalho. Como no fim de semana durmo na casa dos meus pais, também aproveito e os ajudo com a agricultura”, esclarece.
O agricultor foi o primeiro da família a ter acesso ao ensino superior. Ele passou em primeiro lugar, nas vagas reservadas a moradores de Zona Rural, no vestibular para cursar agronomia no IFPE de Vitória. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
É terça-feira, início de semana e dia tradicional de colheita das frutas, legumes, verduras e outros produtos orgânicos no Sítio Maracujá. A reportagem do LeiaJá foi convidada para almoçar e conhecer um pouco da rotina dos agricultores no dia de colheita da família de José. Na parte inicial do terreno, não há um portão. A entrada é livre das formalidades e a o cercado se restringe aos limites laterais da habitação. Alguns metros separam uma casa da outra, madrinha e tios também moram no sítio.
O local não é plano e fica localizado em uma serra, justamente no fim da estrada. O verde vivo, reflexo das plantações de chuchu, banana, goiaba e milho, aponta que choveu pela região.
Ainda na terça à noite, os veículos alugados pela comunidade chegam para transportar toda a colheita devidamente encaixotada com destino ao Centro de Abastecimento de Vitória Santo Antão (Ceavi). De madrugada, o pai de José começa a se organizar para vender os produtos em grandes quantidades na feira da cidade. “Em Vitória eu prefiro vender em grandes quantidades e ao preço barato. Mas, tudo depende da época. No São João, plantamos milho porque sai muito, em outros meses não vende quase nada”, menciona o agricultor. Na quarta-feira pela manhã é dia de feira e de movimentação em Vitória. À noite, o pai de José retorna à Zona Rural de Primavera.
Pai e filho separam as bananas que serão transportadas até o Centro de Abastecimento de Vitória Santo Antão (Ceavi). Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Cursando o quarto ano da graduação, o vigilante e futuro agrônomo se dedica com afinco aos estudos e tudo que aprende no ambiente acadêmico do IFPE também é revertido na plantação dos pais. Ele conta que optou por agronomia porque gostaria de seguir no ramo da agricultura só que com mais conhecimento especializado, apesar de respeitar a sabedoria popular sobre a terra e seus alimentos.
“A agricultura familiar não tem a assistência que deveria ter no brasil e a gente sente que ainda há muito para ser feito pelos agricultores. É preciso implementar técnicas para os trabalhadores do campo aprenderem a tratar o alimento da família e a fonte de renda. Muitas vezes, eles acabam utilizando agrotóxicos por indicação de pessoas aleatórias que não entendem o manejo dos produtos. Devido a essa falta de conhecimento, eles acabam cometendo erros de cálculo sem saber que isso pode prejudicar seu plantio e se for feito sem o equipamento de proteção adequado, pode trazer danos também ao agricultor, além do consumidor”, expõe José.
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"O ‘zé’ foi um presente que a gente do IFPE de Vitória recebeu"
O Campus Vitória possui área de 140 hectares e está localizado a cerca de dois quilômetros do centro comercial da cidade. Ao todo, são cerca de 1.200 estudantes, sendo 125 desses em regime de moradia. Os alunos são oriundos não só de Vitória de Santo Antão, como também de aproximadamente quarenta cidades da região e de outros estados brasileiros.
Pesquisador, agricultor, vigilante e agrônomo em formação. José é considerado pelos professores um aluno exemplar, não só pelas boas notas ou pela bela história de perseverança para conseguir entrar no ensino superior e melhorar a vida dele e dos pais. Mas também pelo que faz por tantos outros filhos de agricultores que nunca sonharam em conhecer uma instituição que oferece graduações de forma gratuita.
Além dos compromissos com as aulas práticas e teóricas, no turno da tarde no campus, José se dedica a participar de projetos de extensão. Um deles é o Programa Internacional Despertando Vocações para Ciências Agrárias (PDVAgro), que tem por objetivo desenvolver ações para auxiliar o despertar do interesse para os cursos das áreas de ciências agrárias, com foco principalmente nos moradores de zona rural, construindo uma relação na troca de saberes e fazeres entre a academia e a sociedade.
José se forma em 2019 e sua pretensão é passar em um concurso público ou montar um negócio para continuar ajudando os pais no sítio. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Em entrevista ao LeiaJá, Francisca Miranda, técnica em assuntos educacionais e coordenadora do projeto 'Aproximação dos jovens do campo com as Ciências Agrárias protagonizadas por estudantes do campus de Vitória de Santo Antão', explicou que o PDVAgro foi efetivado no campus em 2016 e uma das principais justificativas se deu por uma série de mudanças no perfil dos alunos, desde a unificação dos institutos federais.
“Antes, nós tínhamos escolas agrotécnicas porque os cursos eram de base agrária e o nosso perfil de estudantes eram alunos da região, principalmente envolvidos com a agricultura. Com as mudanças e a criação do IFPE, a instituição ganhou mais visibilidade e passou a receber mais alunos de outras localidades, com ênfase nos grandes centros urbanos. Isso nos preocupou ao longo dos anos porque existia uma parcela da população que precisaria estar aqui dentro já que os cursos oferecidos, em sua maioria, possuem uma base agrária. Percebeu-se um distanciamento dos alunos do campo, em resumo”, destaca a pesquisadora Francisca Miranda.
Para suprir essa presença na educação técnica ou superior, um dos pilares do projeto é a visita guiada, atividade realizada por estudantes que participam do projeto de extensão. “A gente procura divulgar os cursos da instituição na Zona Rural para o jovem do campo, com o objetivo de que ele passe um dia visitando o IFPE, conhecendo a estrutura do local, as bolsas, as possibilidades de moradia e para que um dia ele seja o nosso alunos”, descreve Francisca.
Ela acrescenta que a visita é um ponto importante do projeto já que ela é realizada por estudantes que também são do campo, justamente para criar uma afinidade entre os lados. “Criamos líderes de cada município e o José, por exemplo, é o líder de Primavera e ele que faz o contato com os jovens da sua cidade, para que nessa relação, os que nunca sonharam em pisar em uma instituição federal, possam sonhar e ir além, tendo acesso ao ensino técnico e superior”, esclarece.
Um dos alunos que participa do projeto, José aponta a importância desse contato com os jovens do campo ser feito através de estudantes que também são da Zona Rural. “A gente tem uma fala mais parecida, diferente de algo mais metodológico. Criamos grupos de WhatsApp, falamos dos benefícios de estudar e damos os nossos depoimentos de como isso tem transformado a nossa perspectiva de futuro. É um diálogo mais leve e mais semelhante, de alguém do campo que venceu para alguém que também pode”, enaltece.
Reportagem integra a série “Além da técnica: a função social dos Institutos Federais”, que conta história dos dez anos dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, traçando um paralelo entre a contribuição dos projetos de extensão das instituições e o respaldo na sociedade, seja na forma de inclusão de classes mais baixas na educação, como também no benefício direto da população pelas pesquisas realizadas nos institutos. A seguir, confira as demais matérias da série:
Além da técnica: a função social dos Institutos Federais
Sons da inclusão: grupo cria óculos 3D para cegos
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