'Saia do lugar que limita sua visão' é a frase que marca o discurso do empreendedor Gutemberg Alves de Santana / Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
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A dor de um pai sem alimento para próprio filho findou em lágrimas. Tomado pela tristeza e cabisbaixo em seu humilde lar, o homem, após um duro dia de trabalho pela sobrevivência, carregava naquele momento a incapacidade de suprir a necessidade de um familiar. Por mais lamentável que fosse, a cena era acompanhada com atenção e dose de espanto por uma criança de apenas oito anos, que não entendia o choro angustiante do pai. O garoto, então, questionou a mãe o motivo das lágrimas. “Ele não tinha dinheiro para comprar leite para seu irmão mais novo”, respondeu a mulher.
Apesar de amargo, o episódio instigou sonhos. Fez de um garoto um homem determinado a mudar vidas: a dele e a das pessoas que estavam ao seu redor. Marcante, a cena banhada a lágrimas foi o motor propulsor para Gutemberg Alves de Santana, hoje com 31 anos, compreender que poderia, a base de muita luta, despedaçar a realidade de pobreza da sua família. Nascido no bairro da Guabiraba, Zona Norte do Recife, Berg, chamado assim pelos amigos, dividiu a infância com a responsabilidade de superar a condição ruim em que vivia a sua família. Ainda na adolescência, ele começou a trabalhar, desenvolvendo um espírito empreendedor que mais na frente transformaria um vendedor de quentinhas em um empresário que hoje comemora um patrimônio avaliado em R$ 4 milhões.
Gutemberg, fundador da ‘Sabor da Casa’, empresa especializada na produção de bolos de rolo, hoje desfruta da doçura de deus produtos, saboreia uma vida confortável e, ainda assim, se mantém com os pés no chão. Ele sabe de onde veio. Assim como as lágrimas de seu pai - um cuidador de carros em uma boate situada na cidade de Paulista, Região Metropolitana do Recife -, Berg provou adversidades ao longo da vida, experimentou frustrações, chorou, mas hoje degusta do sucesso.
Berg orgulha-se ao mostrar a variedade de produtos do seu empreendimento / Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
“Lembro muito das coisas. Às vezes a gente não tinha o que comer e meu pai chegava de madrugada com galeto e farofa que a dona da boate dava a ele. Ele acordava todo mundo para comer. Lembro que meu pai estava chorando e fui perguntar a minha mãe por que ele estava daquela forma. Ela disse que ele não tinha dinheiro para comprar leite para o meu irmão mais novo. Hoje quando a gente pensa como adulto, percebemos que é uma cena muito forte. Sempre digo: saia do lugar que limita sua visão. De certa forma, aquilo me corroeu por dentro”, recorda Gutemberg, não com ar de tristeza, mas certo de que as dificuldades impulsionaram sua vontade de vencer.
O vendedor de quentinhas especializado em cobranças
Berg e três irmãos viviam com os pais de favor na casa de uma avó, no humilde bairro da Guabiraba. Sua mãe, analfabeta, trabalhava como empregada doméstica, mas o que recebia era insuficiente para atender aos anseios da família. Cuidando de carros e retirando areia de rios para construções, o pai de Gutemberg dedica-se exclusivamente aos trabalhos, pressionado pela necessidade de garantir o sustento dos seus dependentes. Depois de um tempo, a família ganhou um terreno no mesmo bairro, onde posteriormente seria construída uma residência simples.
Os pais de Gutemberg “viviam” pela sobrevivência. A pobreza os obrigava a trabalhar para botar comida na mesa. Contudo, eles faziam questão que os filhos frequentassem a escola, que para eles seria o caminho cujo trajeto resultaria em uma vida mais confortável para a família.
A mãe de Berg, Luzineide Maria Florenço, hoje com 50 anos, resolveu pedir demissão da função de empregada doméstica. Antes da decisão, juntou dinheiro que seria suficiente para a criação do primeiro empreendimento da família: sua casa transformou-se em um ponto de vendas de quentinhas, como são conhecidos pratos de comidas servidos geralmente no horário do almoço.
Mãe de Gutemberg, Dona Luzineide faz questão de continuar com seu restaurante, onde comercializa quentinhas no bairro da Guabiraba, Zona Norte do Recife / Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
“Certo dia, quando cheguei da escola, presenciei a casa da minha mãe cheia de mesas e ela estava vendendo almoços. Tinha uns 12 anos na época. Fiquei meio que perdido, mas percebi que a hora era aquela. Foi assim que aprendi a cozinhar com minha mãe. Quando ela montou esse negócio, comecei a desenvolver meu lado comercial fazendo contas: calculei o que ela gastava e o que apurava. Como ela conseguiu criar o negócio sem ter experiência, percebi que eu também poderia fazer algo melhor. Inicialmente, ela vendia cerca de 50 almoços por dia. Então tive a ideia de vender quentinhas no Terminal Integrado da Macaxeira – ponto de circulação de ônibus localizado na Zona Norte do Recife –“, relembra Gutemberg.
Cinco horas da manhã Berg saia de casa rumo ao terminal. Não levava almoços de cara, mas ostentava a habilidade de oferecer os produtos aos trabalhadores do TI. “No primeiro dia só vendi um. Mas, a comida da minha mãe, quem come uma vez volta a comer. O primeiro cliente gostou tanto que espalhou para os outros funcionários. Eu anotava os pedidos, voltava para minha casa e passava para minha mãe, e depois levava para os clientes. No segundo dia vendi cinco, no terceiro dez. Uns seis meses depois tripliquei a venda de almoços da minha mãe. Passei um ano e meio vendendo quentinhas no terminal. Fiquei tão amigo dos motoristas e cobradores que já não pagava passagem para andar de ônibus”, brinca Berg. Cada quentinha era comercializada por R$ 3,50. Depois das vendas de Gutemberg, a mãe dele passou a entregar 150 quentinhas diariamente.
Do trabalho em parceria com a mãe, Berg recebia R$ 100 mensais. No período, passou a estudar à tarde, já que a manhã era dedicada ao comércio de almoços. O dinheiro lucrado por Berg era investido em cursos de capacitação, que mais tarde serviram como ótimos aliados na sua formação escolar.
Dona Luzicleide relembra com nostalgia da desenvoltura do filho. “Ele era um ótimo vendedor e principalmente cobrador. Ficava em cima dos clientes que deixavam para pagar depois. Ele não voltava para casa sem dinheiro”, recorda Luzicleide, aos risos. “Eu pegava o camarada pela palavra. Se ele falava ‘passe aqui de tarde que eu te pago’, à tarde eu estava lá no pé dele esperando”, conta Berg, de maneira descontraída.
“Olha a cocada”! Berg contrata seu primeiro funcionário
Próximo da comunidade onde Gutemberg vivia com sua família, o pai dele passou a trabalhar em uma borracharia. Inclusive, borracheiro foi outra função que o rapaz desempenhou ao lado do pai na juventude. Na mesma localidade, uma grande empresa de água mineral inaugurou uma produção, o que despertou em Berg a ideia de um novo empreendimento.
Com quase 14 anos, Gutemberg passou a vender cocadas para os clientes que almoçavam no comércio de quentinhas da sua mãe. No mesmo período, graças a um favor de uma funcionária e de um gerente da empresa de água, o garoto teve a ideia de instalar um fiteiro dentro da companhia. “O objetivo do ponto fixo era atender aos pedidos dos funcionários que não podiam sair da empresa. Vendia cocada, pipoca, confeito, refrigerante... Nessa época passei a estudar à noite”, relata.
Gutemberg comprava as cocadas a R$ 0,15 a um idoso que residia em uma comunidade da Zona Norte do Recife; posteriormente, o produto era comercializado para a clientela ao preço de R$ 0,30.
De acordo com o empreendedor, como muitos caminhões que transportavam os botijões de água mineral ficavam fora da empresa, era necessário fazer com que os produtos do fiteiro, em especial as cocadas, chegassem aos caminhoneiros. “Foi aí que contratei minha primeira funcionária. Essa amiga ficava no fiteiro, enquanto eu circulava na fábrica e fora dela para oferecer as cocadas. Comercializava umas cem cocadas por dia. Dava para a funcionária em torno de R$ 15”, revela Gutemberg.
Apesar de lucrativa, a rotina intensa de trabalho, de certa forma, passou a atrapalhar o interesse de Berg pela vida escolar. Ele parou na sétima série, aos 15 anos. Contudo, ele tinha o sonho de ingressar no Exército Brasileiro; então, resolveu entrar em um supletivo, onde após três anos, conseguiu finalizar o ensino médio. Aos 19 anos, Berg ingressou na carreira militar, mesma época em que entregou o ponto do fiteiro.
Da carreia militar à criação da fábrica de bolos de rolo
Segundo o empreendedor, o Exército foi fundamental na sua formação como pessoa. Berg se destacou nas atividades militares pela sua dedicação às funções, bem como pelo porte físico e pelas provas físicas. “Corria bem, já era atleta na escola. Comecei a vencer corridas, ganhei o prêmio de melhor militar do batalhão”, conta.
Depois de um tempo, Gutemberg engajou na carreira militar. Em 2011, aos 23 anos, paralelamente ao Exército, ingressou em uma universidade, onde cursou gestão e tecnologia de logística.
Além da faculdade, o rapaz apostava nos estudos em prol da aprovação em concursos militares. Na época, além do salário de R$ 890 oriundos do Exército, Gutemberg comercializada rodas para carros, complementando a renda que servia para bancar as mensalidades da faculdade.
Em 2014, ele formou-se na universidade e conseguiu aprovação para a Polícia Militar da Paraíba e para o Curso de Formação de Oficiais no Ceará. Porém, Berg rejeitou as aprovações depois de desenvolver um trabalho de conclusão de curso voltado à abertura de uma empresa. “Não desmerecendo quem é funcionário, mas coloquei na minha cabeça que não trabalharia para ninguém”, diz Gutemberg.
De acordo com o empresário, em abril de 2014, ele e seu pai tinham um bom equilíbrio financeiro. Na época, animado com o trabalho da faculdade, Berg resolveu criar uma fábrica de bolos de rolo, porque entendia que o produto seria rentável por ter se tornado patrimônio do Estado. Outro aspecto que pesou foi o fato de sua avó ter revelado que queria aprender a fazer bolo de rolo. Quando ela faleceu, Gutemberg recordou esse desejo e decidiu investir na abertura do empreendimento.
Berg, já estabilizado em termos financeiros, adquiriu um terreno localizado no bairro de Passarinho, Zona Norte do Recife. Próximo ao local, existia um galpão que poderia ser agregado ao espaço, ao preço de R$ 120 mil. “Tinha uns R$ 50 mil juntos. Fechei por R$ 100 mil a compra do galpão, passei um cheque de R$ 50 mil e o restante parcelei em dez vezes. Consegui quitar com a fábrica funcionando”, relembra.
Berg particiou da reforma do espaço que abrigou a primeira fábrica dua sua empresa / Foto: Arquivo pessoal
Na época, Gutemberg convidou um amigo de infância, que carregava experiência de uma empresa alimentícia, para ser seu sócio na criação da ‘Sabor da Casa’. A primeira fábrica tinha 300 metros quadrados.
“No dia 1º de julho de 2014 formalizei a empresa ‘Sabor da Casa’. Fui sem medo de errar. Dia 31 de julho de 2014 fui exonerado, deixei de ser militar. O que pesou para essa escolha foi o desafio: na carreira militar eu sabia onde meu salário ia terminar, na fábrica não. Iniciamos com quatro pessoas: eu, meu sócio na época, minha esposa e a dele. Nos dois primeiros meses, nós cuidávamos de tudo; aprendi a fazer bolo de rolo assistindo vídeos e meu sócio, por já ter experiência, tocava a produção. Ele sabia fazer tudo”, conta.
Dois meses depois, a empresa contratou três funcionários. O sócio ficou responsável pela produção, enquanto Gutemberg ia às ruas para vender o produto, principalmente em padarias da Zona Sul do Recife. Ele oferecia os bolos, os clientes gostavam e compravam. No período, a empresa vendia em torno de 200 quilos de bolo de rolo por dia.
Com oito meses de empresa, foi instalada a primeira loja da marca, no aeroporto de Fortaleza. A mensalidade custava R$ 7 mil mensais, valor que já representava 10% do faturamento da empresa como um todo. “O primeiro mês de funcionamento do quiosque foi excepcional: R$ 60 mil de faturamento. Então, a fábrica passou a vender mais, chegaram novos funcionários e desenvolvemos novos produtos”, conta o empresário.
Em setembro de 2015, a sociedade foi desfeita e Gutemberg precisou seguir sozinho na gestão da companhia. Na época, a ‘Sabor da Casa’ já possuía, além do quiosque em Fortaleza, dois pontos de vendas em João Pessoa-PB e um em Fernando de Noronha-PE. No entanto, o ponto cearense estava próximo de encerrar o contrato; Gutemberg não conseguiu licitação e deixou de comercializar os produtos na região.
O fracasso bateu à porta. A vontade permitiu uma reviravolta
Com o fim da sociedade, vários problemas surgiram diante da empresa. Gutemberg perdeu uma funcionária especializada na venda direta aos clientes, fato que prejudicou profundamente o andamento da produção. “Passei a enfrentar a crise da loja fechada com os funcionários dentro parados, já que a produção diminuiu bastante. Perdi pontos de vendas aqui da região. Nessa época, as vendas caíram 80%. Achei que a empresa ia fechar. Nem carro eu tinha mais, voltei a andar de ônibus”, revela o empresário.
A companhia chegou a dever quase R$ 330 mil. “Foi a maior dívida da minha vida”, confessa Gutemberg. Ele cogitou, inclusive, vender tudo que tinha, já que no mesmo período recebeu uma proposta para trabalhar como chefe de segurança de um centro de compras. “Eu confesso que, nessa época, entrei em um período pré-depressivo. Me isolei, devia bastante”, conta.
Depois de passar pela entrevista no centro de compras, Gutemberg voltou para a fábrica. Exausto, deitou no chão e dormiu. Ouça o relato:
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O “sonho acordado” fez com que Gutemberg erguesse a cabeça e se jogasse de volta ao mercado. Ele selecionou todos os contatos de clientes e fornecedores, conversou com cada um, e os convenceu que o bolo de rolo é um produto rentável. As vendas voltaram. “Seis meses depois zerei todas as dívidas explicando a situação da empresa, ao mesmo tempo em que pedia uma nova chance com fornecedores”, relembra o empreendedor.
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‘Sabor da Casa’, uma doce conquista
O ex-vendedor de quentinhas conquistou sonhos. Resistiu aos desafios do empreendedorismo, superou crises e estabilizou a fábrica de bolos de rolo. Hoje, a 'Sabor da Casa' ostenta, além da iguaria nordestina, mais de 70 produtos entre doces e salgados.
A fábrica continua no bairro de Guabiraba, mas agora em um terreno de 1.900 metros. São, ao todo, 34 funcionários, responsáveis pela produção de uma tonelada de bolo de rolo por dia. O preço do produto pode variar de R$ 8 a R$ 47, dependendo do tamanho e modo de preparo.
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De acordo com Gutemberg, o faturamento mensal da empresa gira em torno de R$ 400 mil. A marca conta com 14 lojas próprias distribuídas em Recife-PE, João Pessoa-PB, Natal-RN, Belém-PA, Aracaju-SE, Goiânia-GO, Porto de Galinhas-PE, Maceió-AL e Fortaleza-CE.
A trajetória empreendedora de Gutemberg inspira os mais jovens. Seu irmão, Yurimberg Florenço de Santama, 26 anos, orgulha-se ao recordar dos episódios de dificuldade que foram deixados para trás graças à perseverança do empreendedor. “A batalha da gente é muito grande, a história também é muito linda. Estamos conquistando sonhos com muito sacrifício e assim nós vamos lutando. Meu irmão é um exemplo muito grande, me espelho muito nele”, diz Yurimberg, responsável pelo setor de produção.
João Vitor Florenço, batedor de massa, é funcionário do empreendimento desde a inauguração. Ele presenciou as fases boas e ruins do negócio. “Agradeço a Deus por tudo que conquistamos até hoje. Berg foi um sofredor, lutou muito para chegar aonde chegou. Ele é uma inspiração para mim, daqui eu penso em fazer muitas coisas, como uma faculdade”, finaliza o funcionário.
Gutemberg quer mais. Sonha em instalar ao menos uma loja da marca em cada capital brasileira. Além disso, almeja levar o bolo de rolo para fora do Brasil. O empreendedor também compartilha sua história de sucesso em palestras, bem como idealiza a criação de uma entidade especializada em orientar futuros empresários ou gestores que estão passando por momentos difíceis em suas empresas.