A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado pode votar ainda em março deste ano o projeto de lei (PLS 352/2017) que autoriza policiais militares, agentes das Forças Armadas ou do Exército a atirar em pessoas que estiverem segurando uma arma de uso restrito, ainda que a ação ocorra sem confrontos. Pelo texto, agentes de segurança pública poderão “abater”, sob legítima defesa, qualquer pessoa portando armamento ilegal. A proposta, apresentada em setembro de 2017, é de autoria do senador José Medeiros (PODE- MT) e nas redes sociais foi apelidada pelo político de “Lei do abate”.
Caso seja aprovada em Brasília, a ementa irá alterar o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 e tratará o fato como legítima defesa. Na legislação atual, o Código Penal entende que o agente pode provar que agiu para se defender quando há reação. Mas, caso sejam comprovados excessos, deverá responder judicialmente pelo fato. Em uma enquete feita no site do Senado, a proposta do senador tem ampla maioria favorável. Até o dia 19 de março, foram mais de 33 mil votos computados. Desses, 32.175 votaram a favor do PL e apenas 1.055 contra.
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O senador foi policial rodoviário federal por 23 anos e para aprovar a mudança no Código Penal brasileiro defenda que a medida é um instrumento importante e legal para garantir que os agentes de segurança pública do país possam reagir “à altura da bandidagem”.
“Foi se criando um consenso que pode ter um verdadeiro exército de pessoas com fuzis e a polícia não pode fazer nada. Se o agente fizer, corre risco de ser punido e preso. Temos que dar instrumentos para que eles se sintam protegidos em proteger a sociedade. A segurança pública tem sido tema de discussão em tudo quanto é roda. O cidadão está percebendo que não tem mais aquela barreira que o protegia. (...) Precisamos deixar de ser ingênuos: bandidos não têm dó, não têm a menor cerimônia de acabar com a vida daqueles que tentam nos proteger. Senão daqui a uns dias, os policiais simplesmente vão cruzar os braços e nós vamos ficar totalmente à mercê da bandidagem”, disse o senador.
O relator, senador Wilder Morais (PP-GO), pediu urgência na aprovação do PL e defendeu que os agentes de segurança pública devem ter o controle das ruas e vencer as organizações criminosas. “É preciso que que haja liberdade para alvejar o oponente com ato ou mesmo intenção hostil, ainda que a distância. Com isto, rapidamente o sujeito ilicitamente armado é retirado das ruas, dando a liberdade necessária para que os militares possam trazer a paz à população afetada”, diz no relatório.
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Um dos pontos relembrados por pessoas que não aprovam a mudança na legislação é o caso de Hélio Barreira Ribeiro, que ganhou notoriedade nacional após ser morto por segurar uma furadeira. No dia 19 de maio de 2010, o cabo Leonardo Albarello, do Batalhão de Operações Especiais (Bope), confundiu o objeto de construção civil com uma arma e matou Hélio por engano no Morro do Andaraí, na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Em 2012, o policial foi absolvido das acusações de homicídio por ter atirado e matado Hélio durante uma operação policial no Rio. Segundo diz o juiz em sua sentença, "deve ser ressaltado que a distância, a influência dos raios solares e a presença de vasos do tipo xaxim pendurados no terraço não permitiam que o acusado tivesse certeza na identificação do objeto que Hélio segurava."
De acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, o Brasil registrou 61,6 mil mortes violentas em 2016. O número, que contabiliza latrocínios, homicídios e lesões seguidas de morte, representa um crescimento de 3,8% em comparação com 2015, sendo o maior patamar da história do país.
Nesse mesmo ano, a pesquisa constatou ter sido também o ano mais violento das polícias no país. As corporações foram responsáveis por 4.224 óbitos registrados durante operações, uma alta de 25,8% em relação a 2015 (quando houve 3,3 mil casos). Por outro lado, o assassinato de policiais também está em alta. A pesquisa do Fórum ainda mostrou que a quantidade de policiais assassinados cresceu. Ao todo, 437 foram vítimas de homicídio em 2016, aumento anual de 17,5%.
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Projeto de lei pode mudar a forma da polícia agir
No meio de uma onda de violência no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, o LeiaJá ouviu especialistas em segurança pública que analisaram o avanço da proposta de Medeiros traçando um paralelo com a situação social e democrática do país. Pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (InEAC/UFF) e professor do Departamento de Segurança Pública da instituição, Lenin Pires avalia certa incoerência na proposta do senador e ao contrário de deter a onda de violência que atemoriza o Brasil, pode incrementá-la. Para o estudioso, a medida parece instituir-se com base em alguns absurdos.
“Como numa espécie de 'minority report' dos trópicos, parece querer adivinhar que todos aqueles que se armam irão, inexoravelmente, matar qualquer pessoa na sociedade e, para evitá-lo, concedem uma 'licença para matar' sem prazo de validade. Isso, somado ao ideário da chamada 'guerra às drogas', tem o potencial de fazer com que as insensatas incursões em favelas ou outras regiões aonde grupos armados se estabelecem no domínio do território, se tornem uma carnificina sem precedentes”.
Lenin entende que o PL não só banaliza o uso letal da força, como também a vida. “O projeto tenta, a meu ver, dar celeridade aos processos interpretativos do que se conhece por 'legítima defesa putativa'. Ou seja, já existe um instituto jurídico que possibilita aos policiais fundamentarem uma eventual ocorrência com letalidade enquanto resultado de uma legítima defesa, em função das características de um lugar ou pela existência de armas de grande poder letal nas mão de indivíduos que resistam a aplicação da lei. O que ocorre, porém, é que essa medida busca mitigar a interpretação judicial e resumir na existência de um diacrítico - a arma - a necessária argumentação para o uso letal da força”.
O pesquisador da UFF entende que decretar antecipadamente as mortes de indivíduos não seja a medida adequada. “Sem contar que há uma possibilidade de que as chamadas 'balas perdidas' se multipliquem aos borbotões. Há também a implicação de enfraquecimento do poder limitador da Justiça sobre os servidores públicos a quem são confiados o uso legítima da força e que, como sabemos, potencialmente podem particularizá-la para obter dividendos pessoais ou corporativos. É o que o sociólogo carioca Michel Misse chama de 'mercadoria política', pois o uso ou não dessa força letal particularizada é negociada de diferentes formas. Seja para que a morte não sobrevenha sobre um indivíduo criminoso, seja para que ela se direcione a um adversário com que se disputa os nichos de mercado de armas e drogas ilícitas, por exemplo”.
(Atualmente, o Código Penal livra quem provar que agiu em legítima defesa. Foto: Agência Brasil)
"O abatimento de suspeitos só se manifestará em áreas sociais muito específicas, geralmente lugares nos quais o Estado Brasileiro não chega com políticas públicas garantidoras de direitos, mas apenas com a sua força coercitiva" - Isaac Luna
Na visão do professor de criminologia no curso de Direito do Centro Universitário da FG, Isaac Luna, a proposta parece estar dentro do campo de “emergência penal” e, nesse caso mais especificamente, muito próximo de uma “legislação penal excepcional de guerra”. “O pano de fundo que embasa essas concepções é a de que o desejo legítimo de toda a população de controle da violência somente se concretizará se o Estado agir com mais violência ainda em face do suspeito ou do criminoso (real ou potencial), para intimidá-lo ou mesmo retirá-lo definitivamente de circulação”.
A atual Carta Magna, dita Constituição Cidadã, estabelece no seu artigo 5º a proibição de julgamentos ou tribunais de exceção (XXXVII), a vedação da pena de morte (XLVII, a), o direito à presunção de inocência (LVII), ao contraditória e ampla defesa (LV), bem como a garantia de que ninguém será julgado ou sentenciado senão pela autoridade competente (LIII). “Em uma primeira análise da questão, parece-nos que uma eventual autorização para um agente do Estado 'abater' um indivíduo brasileiro amparado por um juízo de presunção, viola contundentemente todos os dispositivos constitucionais acima citados, pelo menos”.
O especialista em criminologia não acredita em garantias positivas caso a proposta seja aprovada. “É muito difícil acreditar que a diminuição de direitos e garantias do indivíduo e aumento do poder punitivo do Estado, inclusive com entrega de uma carta-branca a agentes estatais para abater cidadãos presumidos perigosos, possa resultar em algo estruturalmente melhor para a sociedade - isso se estamos considerando que tal debate se dá no campo do republicanismo, do constitucionalismo e da democracia”.
Para ele, a ideia de inimigo, que em grande medida orienta parte do discurso dos que sustentam a tese de aprovação do PL, não tem amparo constitucional. “Não é possível, portanto, sob uma perspectiva constitucional, legal ou democrática, separar a população brasileira entre cidadão e inimigos e, com base nisso, propor o extermínio desses últimos como solução para a crise da segurança pública. Esse tipo de mudança proposta pelo PL somente pode ocorrer se for admitida a existência de um estado de exceção permanente em nosso país, uma suspensão de direitos é uma anormalidade democrática. Não dá para fazer isso e dizer que vai tudo bem com a democracia, as instituições e que a Constituição continua sendo o documento jurídico-político que fundamenta e formata a existência do Estado Brasileiro”.
Isaac avalia também que os caminhos deveriam ser outros. “Há mais de três décadas, a propósito, estamos insistindo na criação de leis penais mais severas como estratégia para combater a criminalidade, reduzindo o debate da segurança pública a questões de política criminal e repressão policial. Qual tem sido o resultado disso até agora? Devemos aumentar a dose do 'remédio amargo' até agora utilizado, ou será que o momento é de rever a prescrição e considerar outras formas de tratar o problema”?
“Quem será abatido? São de fato esses indivíduos 'abatíveis' que dão sustentação a violência e a criminalidade em nossa sociedade? O abatimento de suspeitos só se manifestará em áreas sociais muito específicas, geralmente lugares nos quais o Estado Brasileiro não chega com políticas públicas garantidoras de direitos, mas apenas com a sua força coercitiva. Principalmente em tais lugares e condições crianças e jovens são facilmente cooptadas pelo crime e certamente serão usados como transportadores ou portadores de armas. Quantas delas poderão serão abatidas em nome da construção de uma sociedade melhor? Quantos indivíduos inocentes confundidos presumidamente com bandidos deverão ser exterminados para garantir a “paz social”?
De acordo com o professor, o projeto de lei que autoriza o abate do cidadão suspeito inclusive a distância, viola até mesmo a norma de guerra. “Não estamos em estado de guerra com ou outros países, nos defendendo de uma ameaça externa, mas mesmo se estivéssemos, estaríamos submetidos a Convenção de Genebra (Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993), também conhecida como 'lei da guerra', através da qual as partes em conflito estão comprometidas a atuarem dentro de alguns limites. O artigo 41 da Convenção estabelece, por exemplo, a proibição de atirar no inimigo fora de combate”.
“Penso que não se faz uma sociedade melhor apostando na diminuição de direitos, na normalização de leis de exceção e na naturalização do extermínio de nacionais pelo próprio Estado. Acreditar que essas coisas são boas ou desejáveis parece, pelo menos em um juízo minimamente republicano, democrático, racional e humanista, sinal de que precisamos, com as devidas cautela, responsabilidade e urgência que a questão exige, refletir sobre o nosso atual estágio civilizatório”.