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O Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) abre inscrições para o curso gratuito "Enfrentamento ao Racismo: Ações Afirmativas e Heteroidentificação". A formação visa instruir pessoas para composição de bancas de Heteroidentificação nos processos seletivos e concursos públicos da instituição. Os interessados devem realizar as inscrições por meio do site da iniciativa até 7 de janeiro de 2022.

Podem participar do curso servidores ativos e aposentados do IFPE, estudantes dos cursos de graduação e de pós-graduação do Instituto maiores de 18 anos e representantes da sociedade civil, desde que tenham ligação com o tema. Ao todo, a formação conta com 80 vagas.

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Todas as aulas serão oferecidas de forma virtual, via plataforma de webconferência, entre os dias 17 e 20 de janeiro. Os participantes que tiverem 75% de presença receberão certificado. O IFPE esclarece que é obrigatória a presença no 4º e 5º encontros. A programação, horários e formadores podem ser consultados na plataforma das inscrições.

A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) anunciou, nesta quinta-feira (27), que contará com uma política de ações afirmativas na pós-graduação stricto sensu. Após aprovação do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), a instituição de ensino reservará, no mínimo, 30% do total de vagas de mestrado e doutorado para pessoas negras (pretas e pardas), quilombolas, ciganas, indígenas, trans (transexuais, transgêneros e travestis) e pessoas com deficiência.

De acordo com a instituição de ensino, depois de uma consulta pública a proposta foi apresentada, em reunião virtual, aos integrantes do Cepe. “A pró-reitora de Pós-Graduação, professora Carol Leandro, pontua a satisfação de trabalhar com uma comissão assídua no debate de temas que considera fundamentais para a sociedade. Ressalta também que, apesar de existirem programas de pós-graduação na UFPE que já preveem ações afirmativas em seus processos seletivos, a resolução deve acelerar a implementação nos que ainda não possuem, de modo a diversificar o perfil do corpo discente das pós-graduações stricto sensu da Universidade”, detalhou a Universidade.

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A coordenadora do Núcleo de Políticas LGBT, Geovana Gonzaga Borges, celebrou a decisão, mas indica que ainda é necessário propagar mais ações afirmativas. “Expandir para a graduação, com a presença de disciplinas nos currículos sobre identidades, gêneros e sexualidades, tanto da educação superior quanto no ensino básico e médio, por exemplo”, sugere, conforme informações da assessoria da UFPE.

Por meio de documento, poderá ser feita a autodeclaração de “pessoas negras (pretas e pardas), quilombolas, ciganas, indígenas, trans (transexuais, transgêneros e travestis) e com deficiência aquelas que se autodeclararem como tal no documento anexo à resolução”. Ainda sobre os candidatos com deficiência, eles deverão apresentar um laudo emitido por um médico especialista para que o diagnóstico seja comprovado.

“Candidatos indígenas também deverão apresentar a cópia de uma declaração pessoal de pertencimento emitida pelo povo indígena assinada por liderança local, ou por líderes de grupo e/ou associações de indígenas quando se tratar de candidatos em contexto urbano. Candidatos ciganos e quilombolas deverão apresentar também declaração de pertencimento assinada por liderança local. As pessoas autodeclaradas negras, após o processo de seleção, passarão obrigatoriamente pela comissão de heteroidentificação da UFPE utilizando exclusivamente o critério fenotípico para a aferição da condição declarada pelo candidato”, complementou a Universidade.

A instituição de ensino ainda informou que candidatos das oportunidades afirmativas que consigam aprovação na ampla concorrência deverão ser matriculados nas vagas de ampla concorrência. Dessa forma, permitirão que outros estudantes inscritos nas ações afirmativas, caso sejam aprovados, consigam ingressar nessas vagas. “Na hipótese de não haver candidatos para as vagas de pessoas negras (pretas e pardas), quilombolas, ciganas, indígenas, trans (transexuais, transgêneros e travestis) e com deficiência aprovados e em número suficiente para ocupar as vagas de ações afirmativas, considerando inclusive a lista de espera, as vagas remanescentes poderão ser revertidas para a ampla concorrência”, comunicou a Federal.

O minicurso gratuito “Afirmação”, organizado pelas universidades federais do Maranhão, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Sergipe, está com inscrições abertas até o próximo sábado (17) para pessoas com deficiência, negros, indígenas, LGBTI, migrantes humanitários/refugiados e outros grupos em vulnerabilidade social, contemplados com políticas de ações afirmativas que desejam se preparar melhor para seleções de pós-graduação na área de Comunicação. 

O objetivo da iniciativa é auxiliar os candidatos na elaboração de projetos de pesquisa e outras etapas de seleção. Entre os módulos do minicurso, há tópicos como objetos da Comunicação, construção da fundamentação teórica, hipóteses e objetivos, tipos de pesquisa em comunicação e métodos de pesquisa. 

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Há 60 vagas disponíveis e as aulas serão ministradas de segunda-feira (19) até o dia 23 de outubro. Para mais informações sobre os pré-requisitos de participação no curso, comprovação das informações, seleção, cronograma e certificados, acesse o edital do curso. 

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O defensor Jovino Bento Júnior, por meio da Defensoria Pública da União (DPU), entrou com ação pública na Justiça do Trabalho, na última segunda-feira (5), contra a empresa Magazine Luiza, que criou um processo seletivo de trainee destinado para pessoas negras. A ação cobra R$ 10 milhões da varejista por danos morais coletivos. O autor da petição diz que o processo seletivo é racista e considera a iniciativa como “marketing de lacração” para fins políticos. 

Para o autor da petição, a iniciativa da varejista “se insere no conceito de marketing de lacração e visa, com isso, ganho político, num primeiro momento, para, em seguida, ampliar seus lucros e sua faixa de mercado em magnitude sem precedentes históricos e representando risco à democracia a médio prazo”, diz ação.

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Dentre os argumentos, Jovino observa que tal conduta não caberia, pois a empesa “sempre contratou negros em seus programas de trainee, algo plenamente comum. Portanto, nada justifica que pretenda, agora, que seu programa seja exclusivo para determinada raça/cor, em desarrazoado detrimento de todos os demais trabalhadores do País”.

O documento ainda afirma que o programa “não é medida necessária – pois existem outras e estão disponíveis para se atingir o mesmo objetivo -, e nem possui proporcionalidade estrita – já que haveria imensa desproporção entre o bônus esperado e o ônus da medida, a ser arcado por milhões de trabalhadores”.

Com isso, a ação alega discriminação com trabalhadores brancos, indígenas e asiáticas, inviabilizando o acesso dos mesmos ao mercado de trabalho. O texto ainda utiliza falas do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, feitas nas redes sociais, para justificar “que considera discriminação racista a conduta da Magazine Luíza”, tal como mostra o print na petição. 

Ações indeferidas

Desde o lançamento do programa trainee da varejista Magazine Luiza, realizada no mês de setembro, que o assunto reverberou no âmbito jurídico. Nesse sentido, o Ministério Público do Trabalho (MPT) já indeferiu 11 denúncias de “prática de racismo” feitas contra a iniciativa da empresa. 

No entanto, para o MPT as condições colocadas pela varejista trata-se de ação afirmativa de reparação histórica”, inclusive prevista no Estatuto da Igualdade Racial, que permitem a realização de ações como essas, tal como tem sido realizado em outras empresa como a Ambev.

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---> O valor das seleções exclusivas para candidatos negros

A Universidade Federal do ABC, em São Paulo, divulgou em seu edital de adesão ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que no semestre 2020.1 irá reservar vagas para pessoas transgêneras. A instituição, que já tinha instituído a reserva de vagas para a população transgênero em 2019, ofertará 1988 vagas no Sisu 2020.1. 

Ao todo, serão 20 vagas reservadas para transgêneros e outras 20 para pessoas trans em situação de vulnerabilidade social. A reserva, no entanto, não interfere nas ações afirmativas da instituição, que já reserva vagas para pessoas com deficiência e refugiados. 

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Além disso, há ainda o sistema de cotas determinado pela Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, determinando que metade das vagas sejam para estudantes egressos de escolas públicas, com um percentual reservado também por renda, etnia e para pessoas com deficiência. 

Para obter a classificação na universidade, em qualquer modalidade de concorrência, os estudantes precisam obter no mínimo 450 pontos em cada um dos quatro eixos do conhecimento avaliados no Enem, além de pelo menos 500 pontos na redação. 

Vale ressaltar que, no ato de matrícula, candidatos e candidatas transgênero precisam de atenção extra no que diz respeito à documentação. Para mais detalhes, acesse o edital completo

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--> Sisu 2020.1 terá 237 mil vagas em todo o Brasil

 

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Luta por cotas é marca de vários movimentos. Foto: EBC

Antes da criação das cotas, um calabouço histórico assombrou e continua assombrando o país. Resquícios da escravidão, que disseminou racismo em diversas esferas da sociedade, e as desigualdades sociais relacionadas à cruel distribuição de renda no Brasil, são exemplos do quão castigado é o povo pobre brasileiro. Diante desse cenário, defensores do sistema cotista educacional argumentam que essas políticas são uma reparação – histórica e social – a quem, desde a formação país, sobrevive à margem da igualdade.

Nesta reportagem, traçamos um panorama histórico que explica a desigualdade social no Brasil a partir de diferentes visões de estudiosos. Também detalhamos as motivações que fomentaram a criação das cotas educacionais.

Contamos histórias de brasileiros, vítimas da disparidade social, que lutam por ascensão por meio do sistema de cotas universitárias. Eles apostam na educação superior como o principal caminho para conquistar os seus sonhos.

“O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia racial’, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais”. O texto é de autoria do antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, em seu livro intitulado 'O Povo Brasileiro', lançado em 1995, no qual é abordada, de forma histórica-antropológica, a formação étnica brasileira, bem como o detalhamento dos fatores que levaram às diferenças socioeconômicas tão profundas, até hoje existentes.  

O termo “democracia racial”, difundido de forma implícita pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, em sua obra “Casa Grande e Senzala”, de 1933, buscava explicar as questões raciais, de modo a romantizar todo um contexto do período escravocrata, bem como a chegada dos europeus no Brasil. A ideia de que havia uma boa relação entre brancos e negros, assim como portugueses e indígenas, foi popularizada, teoricamente, em outras obras de Freyre e, posteriormente, reproduzida por outros pensadores.

Apesar da importância literária dos escritos amplos de Gilberto Freyre, mais tarde, começa um debate sobre democracia racial, como sendo um dos maiores mitos da nação brasileira. Florestan Fernandes, também sociólogo e político brasileiro, analisou que, mesmo Gilberto Freyre não tendo sido o criador da expressão “democracia racial”, e ainda que ele tenha estudado a sociedade escravista e o Brasil moderno, “ele não contribuiu suficientemente para esclarecer objetivamente as desigualdades que são comuns”. A declaração de Florestan foi dada em uma entrevista para o programa 'Vox Populi', exibido na TV Cultura em 1984.

Florestan Fernandes enxergava na situação dos negros (pós-escravidão) um problema para além das suas teses acadêmicas. Ele via o racismo com um dilema crônico da sociedade e, que, portanto, deveria ser debatido. O estudioso escreveu o livro 'Integração do Negro na Sociedade de Classes', publicado em 1978, no qual ele, de forma lúcida, combate a suposta “harmonia racial” e explica o porquê de as desigualdades sociais e raciais serem tão próximas e em números tão expressivos.

Em um trecho do livro, ele diz: “A sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar- se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e capitalista”.

Em um Brasil não muito distante do agora, eis a escravidão – abolida em 1988 -, uma prática que deixaria marcas longevas não só na esfera racial, como também na social, onde, por vezes, as duas se encontram em vários momentos da história da sociedade brasileira. As desigualdades oriundas do processo da escravidão são refletidas nas áreas da educação, que interferem diretamente no mercado de trabalho, influenciando no rendimento do trabalhador, perpetuando assim outros tipos de desigualdades.   

Disparidade social motiva cotas 

A pobreza no Brasil tem cara, cor e lugar. As favelas são retrato potente das desigualdades que transformam as vidas dos que lá vivem, em muitos casos, em situação de escassez. Cercadas de vulnerabilidade, insalubridade, violência e miséria, durante muito tempo, as favelas eram lugares onde as políticas públicas não chegavam. E se não chegavam, era porque grande parte da sociedade estava de olhos fechados para esse grupo. Realidade de muitos brasileiros, que por falta de oportunidades, recursos financeiros, além da ausência de uma educação pública de qualidade, não puderam investir na própria educação.

O estudo publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, realizado pela Síntese de Indicadores Sociais (SIS) entre 2016 e 2017, analisou a pobreza que atinge, hoje, cerca de 54,8 milhões de pessoas em todo o país. Esse número, segundo o levantamento, é maior que em 2016 e revela que a população negra é a mais afetada pelas privações. Para André Simões, especialista do IBGE, a diminuição das desigualdades só pode ocorrer por meio de políticas sociais com foco nos grupos que mais sofrem. “A população preta ou parda vem ampliando o acesso à educação e saúde, mas há uma herança histórica muito grande, e isso indica que as políticas públicas devem continuar a focar, principalmente, nesse grupo”, diz o pesquisador. “Um país como o Brasil necessita de medidas específicas para corrigir essa desigualdade, esse é um ponto que deve ser frisado”, declarou Simões em entrevista à Agência Brasil.

Liana Lews, professora de sociologia com foco em temas como racismo, gênero, identidade e migração, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que as desigualdades raciais e sociais são estruturais no Brasil e violentas, uma vez que os negros, até 131 anos atrás, não eram considerados nem humanos. A violência a qual a socióloga se refere também diz respeito aos números alarmantes de assassinato do povo negro no país. Por exemplo, o Atlas da Violência, levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança, revelou que só em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio no país eram pessoas negras. Ainda segundo o estudo, de 2007 a 2017, esse número cresceu mais de 30%.

Das cotas à transformação do próprio destino

Eliedson Machado, hoje com 32 anos de idade, teve uma infância clássica de um jovem negro morador de periferia. Com poucas oportunidades, Léo, como é chamado, foi criado pela mãe, que era empregada doméstica, com mais três irmãos mais novos, na comunidade Vila Chico Mendes, no bairro de Areias, Zona Oeste do Recife. A realidade de Léo poderia ter sido igual ou semelhante a de muitos dos seus amigos da infância: “Parte dos meus amigos está presa e a outra já foi assassinada”, conta.

Atualmente, vivendo em uma conjuntura completamente diferente do passado, Eliedson desfruta da vida com mais tranquilidade, estabilidade e conhecimentos que adquiriu através do acesso à educação, conquistada diante de muitas dificuldades. No entorno do local onde Léo morava, existia um forte contexto de tráfico de drogas e violência que massacrava crianças e jovens.

Assombrado pela pobreza e risco de violência, Léo viu nos movimentos sociais do Recife uma maneira de não seguir à margem social. Aluno de escola pública que precisou intercalar a vida estudantil com o mercado de trabalho, Léo ouviu de muita gente que não seria ninguém ou que ele não seria capaz de estudar, de conseguir um emprego formal e de poder ser um homem livre para desenhar os próprios rumos.

 “Na formação da identidade e da autoestima das pessoas negras, você já ouve na escola que não vai ser ninguém. Eu me recordo bem. Eu tinha uma professora primeira série que rasgava os meus cadernos. Então, a sua perspectiva de território e da escola não lhe oferece um estímulo para que você possa acreditar que você pode ter acesso ao ensino superior”, relata Léo.

Léo é aluno cotista pela Universidade de Pernambuco (UPE), matriculado no curso de ciências sociais. Inicialmente, o estudante havia sido beneficiado pela cota de pessoas autodeclaradas negras e independente da renda para a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), no mesmo curso, em bacharelado. Pouco depois, conseguiu transferência para UPE, onde faz licenciatura.

O homem negro, nascido e criado na periferia e que se banhava no Rio Tijipió é o primeiro membro da família a ingressar em um curso superior. Inclusive, o único dentre seus irmãos. As ciências sociais partem do desejo de Léo em aprofundar os pensamentos e as formas sobre como as sociedades se organizam, além dos fatos do cotidiano, inclusive os que englobam a sua própria vivência. “Por que a política de cotas existe? Por que tem tanto jovem negro encarcerado ou assassinado? Por que as comunidades da periferia não têm um plano urbanístico executado? Eu acho que as ciências sociais dão margem para entender e aplicar metodologias de pesquisas e de pensamento sobre a própria sociedade e sobre como ela se forma”, acredita o universitário.

Para André Lázaro, pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - uma das pioneiras na aplicação do sistema de cotas sociais - e ex-secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC), órgão vinculado ao antigo Ministério da Cultura na gestão de Fernando Haddad, a inserção da política de cotas na universidade foi necessária e tornou a instituição mais direcionada para a população do Rio de Janeiro. Ouça no áudio a seguir:  

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A política afirmativa foi um divisor de águas na vida de uma jovem estudante que morava em um bairro pobre da cidade do Rio de Janeiro. Há 19 anos, quando esteve entre os 3.055 cotistas da instituição, Luciene Maria Baptista Ventura estava começando ali uma jornada que iria mudar o rumo da sua história. E para melhor.

Integrante da primeira turma de cotistas sociais da Uerj, Luciene percebeu que seria um começo desafiador. Diante do preconceito por parte de alguns estudantes não cotistas, opiniões contrárias e julgamentos, Luciene se tornou um exemplo de que as cotas era um caminho possível para a construção da igualdade. Ensinada pelos pais desde a infância que a única maneira para conseguir mudar de vida seria através dos estudos, Luciene, que estudou durante toda a vida em escola pública, conseguiu passar no vestibular, juntamente com a irmã, Luciana, dentro do sistema de cotas sociais.  “Quando eu e minha irmã éramos pequenas, minha mãe levava a gente de bicicleta todo dia. Era sempre uma luta. Depois que crescemos pudemos ir de ônibus e fazer cursinhos gratuitos”, lembra.

Há 15 anos, as duas irmãs tiveram a notícia que mudaria suas vidas: a aprovação no vestibular da UERJ. Luciene para o curso de matemática e Luciana em engenharia química. As duas foram cotistas. “Conseguimos representar bem as pessoas humildes que não vêm de um poder aquisitivo alto, mas que vêm de um objetivo de família de dar instrução aos filhos e de incentivá-los a buscarem algo a mais dentro do estudo que era isso que minha família passava”. Atualmente, Luciene dá aulas para alunos do ensino médio, no Rio de Janeiro. Luciana é engenheira química, tendo mestrado na área, doutorado e pós-doutorado. Recentemente lançou um livro.

Após pouco mais de uma década, observa-se uma mudança significativa no ingresso de grupos considerados minorias nas universidades. A 5ª Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos das IFES divulgou este ano que mais da metade dos graduandos de universidades tem renda per capita de até um salário mínimo.

O avanço das cotas no Brasil é amplamente defendido por entidades como a ONU (Organizações das Nações Unidas), que já se manifestou a favor da ação afirmativa que impactou, de forma positiva, as parcelas da população que sempre estiveram em um lugar abaixo na pirâmide social.

Na visão de alguns especialistas, a instauração das cotas não resolve de imediato todas as diferenças socioeconômicas, e, nem tampouco as étnicas. Contudo, esse é considerado um caminho para um futuro de oportunidades iguais para todos.

Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:

1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior

3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior

4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas

5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas

6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo

7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios

8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico

9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular

10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?

11 - Como seria um mundo sem cotas? 

Valorização da base educacional é extremamente importante para um país que busca uma universidade forte e de qualidade. Foto: Pixabay

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O sistema de cotas no Brasil não foi implantado como uma solução definitiva para resolver discrepâncias educacionais. Quando criado, foi pensado apenas como intervenção temporária, estabelecida para durar somente por cinco anos. A medida foi imposta depois de uma longa mobilização dos movimentos sociais para ampliar o acesso da população negra ao ensino superior. Visava, sobretudo, corrigir desigualdades históricas.

Nesses cinco anos, o sistema de cotas buscava um maior número de negros, índios e demais minorias nas universidades, bem como uma boa inserção deles no mercado de trabalho. Somente assim, seria possível que as próximas gerações de variadas raças do Brasil pudessem ter igualdade de oportunidades, sem a necessidade da inclusão de quaisquer ações afirmativas.

No entanto, para a professora de pedagogia e representante da Comissão de Implementação do Combate ao Racismo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Auxiliadora Martins, a obtenção desses resultados esperados pela implantação das cotas não poderia ter dado certo em apenas cinco anos.

“O Brasil tem 519 anos e praticou escravismo criminoso por mais de 350 anos. Você estipular um prazo de cinco, dez anos, para fazer a correção de um sistema com desigualdade, perpetrado pelo Estado, é um pensamento ingênuo”, explica a docente.

Ela argumenta ainda que para um mundo sem cotas, no âmbito da educação, é necessária uma intervenção, primeiramente, na educação básica. “Pode até existir um mundo sem cotas, quando a Lei 10.639, que orienta escolas públicas e particulares de todos os níveis e modalidades de ensino for efetivamente implementada”, salienta Auxiliadora.

A lei introduz saberes africanos e afrodescendentes no currículo escolar, contudo não foi implantada como prevista em todas escolas, nem nas universidades. “Se a universidade e escolas não trabalham os conteúdos da educação étnico-racial e antirracista, como vai haver essa consciência de respeito e igualdade social?”, questiona Auxiliadora.

Para José Bento, a política de cotas é um 'mal necessário'/Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Para o professor e vice-coordenador do núcleo de estudos afro-brasileiros da UFPE, José Bento, a política de cotas é um “mal necessário”. Ele ressalta que pensar em um outro mundo é possível, inclusive, sem cotas. No entanto é imprescindível que haja mais ações de conscientização acerca de pontos relacionados à igualdade étnica, racial, social e de gênero.

“Você pode até dizer: ‘Olha, todos nós somos humanos’. Sim, mas a forma de tratamento que se dá aos diversos grupos humanos não é equitativa. Então é preciso, sim, criar políticas para atender esses grupos que foram historicamente marginalizados. Acredito que a cota é algo a ser vencido em determinado período (a longo prazo)”, afirma o docente.

Antes e depois das cotas

Os resultados do sistema de cotas são vistos por Emanuelly Araújo, de 19 anos, como um fator positivo. Acadêmica de jornalismo e ingressante no curso da UFPE como cotista, ela reconhece que graças às ações afirmativas ganha impulso para concluir sua graduação.

A discente enxerga as cotas como meios de oportunidades e ressalta que, antes dessa intervenção, as desigualdades enfrentadas por seus pais e seus avós eram muito mais acentuadas do que atualmente. “É possível pensar em um mundo sem cotas?”, questiona a estudante. 

Emanuelly salienta que, mesmo com as oportunidades alcançadas com as cotas, ainda se depara com vários embates para se manter no mesmo nível de classes privilegiadas da sociedade. Sua rotina diária começa muito cedo, incluindo a dependência de transportes públicos lotados para chegar até o estágio. Ela ainda precisa de bolsas concedidas para se alimentar durante o almoço, de estudar durante a tarde e fazer o longo caminho de volta para casa.  

Dificuldades semelhantes também são vivenciadas por Hellena Rachel, estudante de medicina da UFPE e também ingressante universitária, através do sistema de cotas, em 2014. Em uma turma de setenta alunos, ela é um dos poucos alunos beneficiados pelas ações afirmativas. “A diferença maior não é cognitiva. Na verdade, é o contrário, eu tive que estudar mais para chegar no mesmo nível dessas pessoas que possuem um determinado privilégio que não tenho”, explica a estudante.  

 “O estudante cotista precisa de auxílios para estar na universidade, porque ele precisa fazer diversas outras coisas, para estar no mesmo nível dos demais estudantes com privilégios”, endossa a acadêmica.

A assistente social da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Fabiana Costa, avalia que estudantes cotistas, muitas vezes, precisam trabalhar ou depender de assistência estudantil para conseguir dar seguimento ao curso. Isso se deve, principalmente, às inúmeras dificuldades existentes fora da vida acadêmica.

Responsável pela assistência estudantil na Universidade, ela explica que trabalha com o critério socioeconômico e - dentre outros aspectos - os da questão racial influenciam diretamente nesse contexto. “Em geral, estudantes bolsistas, que são considerados em situação de vulnerabilidade socioeconômica, são pardos ou pretos”, ressalta. “Fatores como transporte para chegar até a universidade dos que possuem residências distantes da universidade, alimentação, além de outras dificuldades, superam questões exclusivamente pedagógicas”, garante Fabiana.

Ela também salienta que, apesar dessas dificuldades, uma pesquisa realizada na UFRPE revelou que, em relação à taxa de sucesso (alunos formados, comparado aos que entram naquele ano), os estudantes bolsistas têm apresentado uma melhor avaliação que os demais.

Discrepâncias na educação também foram avaliadas por um estudo, realizado em 2017, pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e IBGE, incluindo aspectos de renda, trabalho e educação. O levantamento  mostra que há forte desigualdade na renda média do trabalho: R$ 1.570 para negros, R$ 1.606 para pardos e R$ 2.814 para brancos. Na educação, a taxa de analfabetismo é mais que o dobro entre pretos e pardos (9,9%), do que entre brancos (4,2%), de acordo com a PNAD Contínua de 2016.

No acesso ao ensino superior, de acordo com a PNAD Contínua de 2017, a porcentagem de brancos com 25 anos ou mais que têm ensino superior completo é de 22,9%.Também supera a porcentagem de pretos e pardos com diploma: 9,3%.

Na época do anúncio do levantamento, em 2017, o coordenador de trabalho e rendimento do IBGE, Cimar Azeredo, explicou que problemas estruturais e baixa escolaridade são algumas justificativas para a dificuldade enfrentada por negros e pardos, dentro desse contexto de desigualdade.

Como as cotas podem ser aprimoradas?

Na concepção de alguns especialistas, para que o sistema de cotas obtenha sua devida finalidade de equidade social, é preciso pensar, desde medidas estruturais a mudanças em alguns critérios. De acordo com o pesquisador e doutor em economia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Álvaro Mendes Júnior, é necessária a exclusão do critério racial das cotas para que ela finalmente seja eficaz. Ele, que é autor de artigos científicos sobre cotas por várias instituições de ensino, entende que o sistema de cotas reduz a eficiência do ensino universitário, ao admitir um conjunto significativo de alunos, com uma base intelectual menor do que seria admitido em um sistema concorrencial.

Segundo seu estudo, realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a inclusão de pretos e pardos já aconteceria somente com a utilização de um recorte de renda. Na prática, para cada 100 vagas, seriam cinco negros que ingressariam na universidade, no lugar de cinco brancos. Ele explica que isso aconteceria, pois é maior o número de negros em classes socioeconômicas baixas.

“Enquanto os governos brasileiros investem os seus esforços no sistema de cotas, não temos discutido as grandes reformas educacionais necessárias para um aumento efetivo da qualidade geral da educação brasileira. Por exemplo: convênios e subsídios às escolas e universidades confessionais, homeschooling, fim da BNCC, sistema de vouchers, inversão da pirâmide de gastos em educação (hoje investe-se proporcionalmente pouco no ensino básico, em comparação com o ensino superior) e a elaboração de projetos especiais em áreas como o Latim e a Filosofia Perene”, salienta Álvaro.

Álvaro endossa que há todo um conjunto de indivíduos que está sendo prejudicado, por ter o seu acesso à universidade negado, em detrimento da reserva de vagas para os grupos cotistas. Além disso, o professor está entre os que postulam a existência de danos para os próprios estudantes cotistas:

“São casos em que os estudantes acabam por falhar na progressão ao serem admitidos em universidades ou cursos com um nível de dificuldade maior do que conseguiriam acompanhar. É a chamada ‘Mismatch Hypothesis’. Em estudos que realizei a partir dos dados da UERJ, o baixo rendimento de alunos cotistas em carreiras de Exatas é um indício claro de que este fenômeno também acontece no Brasil”, garante Álvaro.

Já para Helio Santos, um dos militantes históricos do movimento negro e uma das primeiras vozes de luta pela implementação de cotas no país, a lei de cotas raciais deve ser mantida, mas avanços precisam ser aprimorados, como medidas, fiscalizações e punições mais rigorosas devem ser melhores aplicadas, no intuito de combater possíveis fraudes.

Em uma publicação da ‘Rede Brasil Atual’, ele afirma que, embora cotas sejam vistas como um “remédio amargo”, essas políticas específicas não serão eternas. “No Brasil, devem durar no máximo 25 anos, quando se tiver reduzido essas distâncias – que aqui não são sociais, são raciais – quando isso acontecer, podemos esgotar essas políticas e pensar em outras, generalistas”, avalia Helio.

O que já disseram outros especialistas sobre as cotas 

“A política de cotas foi a grande revolução silenciosa implementada no Brasil e que beneficia toda a sociedade. Em 17 anos, quadruplicou o ingresso de negros na universidade, país nenhum no mundo fez isso com o povo negro. Esse processo sinaliza que há mudanças reais para a comunidade negra”.

Frei David Santos, diretor da Educafro - organização que promove a inclusão de negros e pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo (Agência Brasil, 2018)

“Considero uma medida complementar às cotas nas universidades.O raciocínio imediato mostra ser necessário criar condições para que os jovens saiam das universidades e possam exercer suas profissões. Neste caso, é bom lembrar que o Brasil é um importante empregador. Os concursos públicos são visados por todas as camadas sociais por proporcionar a estabilidade”.

Vantuil Pereira- professor do Núcleo de Políticas em Direitos Humanos (NEPP-DH), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - (Folha Dirigida, 2012)

“São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”

Ayres Britto- Ministro do STF, na votação sobre a constitucionalidade das cotas, em 2012

Como funciona o sistema de cotas em outros países:

Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:

1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior

2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas

3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior

4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas

5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas

6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo

7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios

8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico

9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular

10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?

Estudantes pobres têm menos chances de se dar bem no Enem. É isso que mostra um estudo encomendado pelo jornal Estado de São Paulo. De acordo com a pesquisa, 1 a cada 600 conseguem boas notas na prova, enquanto entre os estudantes de classe média esse número passa para 1 a cada 4.

O estudo, realizado pelo cientista de dados Leonardo Sales, considerou somente as notas de um grupo de 1,3 milhão, que estavam disponíveis publicamente, identificados como de ensino médio regular. Destes, apenas 293 estudantes em situações socioeconomicamente vulneráveis obtiveram notas semelhantes às dos estudantes de escolas particulares.

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Os dados publicados no Estadão ajudam a entender a desigualdade entre os estudantes com melhores condições financeiras e aqueles que estudam em escola pública, por exemplo. Condições como renda familiar, tipo de escola na qual o aluno fez o ensino médio, escolaridade da mãe e o fato do estudante ter ou não internet em casa são fundamentais para o desempenho no Enem. Na edição de 2017, quase 6 mil alunos tiraram notas entre 460 e 465, abaixo da média que foi 509.

Entre os estudantes com menos condições sociais, 293 conseguiram "triunfar" e passar em universidades públicas com notas superiores a 737,5, contrariando as estatísticas. Dentro desse número de desafiadores da realidade, 63% são pardos, percentual de pardos similar ao grupo geral de alunos analisados (65%). Ainda dentro desse número, 13% dos alunos são pretos. Já quando se observa a autodeclaração dos alunos de classes maiores a situação se inverte: 19% pardos e 72% são brancos.

Entre os estudantes com maiores notas oriundos de escolas públicas estão alunos do Ceará. 154 deles cursaram o ensino médio em instituições estaduais. O estado mantém programas de incentivo à educação, que tornaram o Ceará referência nacional.

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