Valorização da base educacional é extremamente importante para um país que busca uma universidade forte e de qualidade. Foto: Pixabay
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O sistema de cotas no Brasil não foi implantado como uma solução definitiva para resolver discrepâncias educacionais. Quando criado, foi pensado apenas como intervenção temporária, estabelecida para durar somente por cinco anos. A medida foi imposta depois de uma longa mobilização dos movimentos sociais para ampliar o acesso da população negra ao ensino superior. Visava, sobretudo, corrigir desigualdades históricas.
Nesses cinco anos, o sistema de cotas buscava um maior número de negros, índios e demais minorias nas universidades, bem como uma boa inserção deles no mercado de trabalho. Somente assim, seria possível que as próximas gerações de variadas raças do Brasil pudessem ter igualdade de oportunidades, sem a necessidade da inclusão de quaisquer ações afirmativas.
No entanto, para a professora de pedagogia e representante da Comissão de Implementação do Combate ao Racismo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Auxiliadora Martins, a obtenção desses resultados esperados pela implantação das cotas não poderia ter dado certo em apenas cinco anos.
“O Brasil tem 519 anos e praticou escravismo criminoso por mais de 350 anos. Você estipular um prazo de cinco, dez anos, para fazer a correção de um sistema com desigualdade, perpetrado pelo Estado, é um pensamento ingênuo”, explica a docente.
Ela argumenta ainda que para um mundo sem cotas, no âmbito da educação, é necessária uma intervenção, primeiramente, na educação básica. “Pode até existir um mundo sem cotas, quando a Lei 10.639, que orienta escolas públicas e particulares de todos os níveis e modalidades de ensino for efetivamente implementada”, salienta Auxiliadora.
A lei introduz saberes africanos e afrodescendentes no currículo escolar, contudo não foi implantada como prevista em todas escolas, nem nas universidades. “Se a universidade e escolas não trabalham os conteúdos da educação étnico-racial e antirracista, como vai haver essa consciência de respeito e igualdade social?”, questiona Auxiliadora.
Para José Bento, a política de cotas é um 'mal necessário'/Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens
Para o professor e vice-coordenador do núcleo de estudos afro-brasileiros da UFPE, José Bento, a política de cotas é um “mal necessário”. Ele ressalta que pensar em um outro mundo é possível, inclusive, sem cotas. No entanto é imprescindível que haja mais ações de conscientização acerca de pontos relacionados à igualdade étnica, racial, social e de gênero.
“Você pode até dizer: ‘Olha, todos nós somos humanos’. Sim, mas a forma de tratamento que se dá aos diversos grupos humanos não é equitativa. Então é preciso, sim, criar políticas para atender esses grupos que foram historicamente marginalizados. Acredito que a cota é algo a ser vencido em determinado período (a longo prazo)”, afirma o docente.
Antes e depois das cotas
Os resultados do sistema de cotas são vistos por Emanuelly Araújo, de 19 anos, como um fator positivo. Acadêmica de jornalismo e ingressante no curso da UFPE como cotista, ela reconhece que graças às ações afirmativas ganha impulso para concluir sua graduação.
A discente enxerga as cotas como meios de oportunidades e ressalta que, antes dessa intervenção, as desigualdades enfrentadas por seus pais e seus avós eram muito mais acentuadas do que atualmente. “É possível pensar em um mundo sem cotas?”, questiona a estudante.
Emanuelly salienta que, mesmo com as oportunidades alcançadas com as cotas, ainda se depara com vários embates para se manter no mesmo nível de classes privilegiadas da sociedade. Sua rotina diária começa muito cedo, incluindo a dependência de transportes públicos lotados para chegar até o estágio. Ela ainda precisa de bolsas concedidas para se alimentar durante o almoço, de estudar durante a tarde e fazer o longo caminho de volta para casa.
Dificuldades semelhantes também são vivenciadas por Hellena Rachel, estudante de medicina da UFPE e também ingressante universitária, através do sistema de cotas, em 2014. Em uma turma de setenta alunos, ela é um dos poucos alunos beneficiados pelas ações afirmativas. “A diferença maior não é cognitiva. Na verdade, é o contrário, eu tive que estudar mais para chegar no mesmo nível dessas pessoas que possuem um determinado privilégio que não tenho”, explica a estudante.
“O estudante cotista precisa de auxílios para estar na universidade, porque ele precisa fazer diversas outras coisas, para estar no mesmo nível dos demais estudantes com privilégios”, endossa a acadêmica.
A assistente social da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Fabiana Costa, avalia que estudantes cotistas, muitas vezes, precisam trabalhar ou depender de assistência estudantil para conseguir dar seguimento ao curso. Isso se deve, principalmente, às inúmeras dificuldades existentes fora da vida acadêmica.
Responsável pela assistência estudantil na Universidade, ela explica que trabalha com o critério socioeconômico e - dentre outros aspectos - os da questão racial influenciam diretamente nesse contexto. “Em geral, estudantes bolsistas, que são considerados em situação de vulnerabilidade socioeconômica, são pardos ou pretos”, ressalta. “Fatores como transporte para chegar até a universidade dos que possuem residências distantes da universidade, alimentação, além de outras dificuldades, superam questões exclusivamente pedagógicas”, garante Fabiana.
Ela também salienta que, apesar dessas dificuldades, uma pesquisa realizada na UFRPE revelou que, em relação à taxa de sucesso (alunos formados, comparado aos que entram naquele ano), os estudantes bolsistas têm apresentado uma melhor avaliação que os demais.
Discrepâncias na educação também foram avaliadas por um estudo, realizado em 2017, pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e IBGE, incluindo aspectos de renda, trabalho e educação. O levantamento mostra que há forte desigualdade na renda média do trabalho: R$ 1.570 para negros, R$ 1.606 para pardos e R$ 2.814 para brancos. Na educação, a taxa de analfabetismo é mais que o dobro entre pretos e pardos (9,9%), do que entre brancos (4,2%), de acordo com a PNAD Contínua de 2016.
No acesso ao ensino superior, de acordo com a PNAD Contínua de 2017, a porcentagem de brancos com 25 anos ou mais que têm ensino superior completo é de 22,9%.Também supera a porcentagem de pretos e pardos com diploma: 9,3%.
Na época do anúncio do levantamento, em 2017, o coordenador de trabalho e rendimento do IBGE, Cimar Azeredo, explicou que problemas estruturais e baixa escolaridade são algumas justificativas para a dificuldade enfrentada por negros e pardos, dentro desse contexto de desigualdade.
Como as cotas podem ser aprimoradas?
Na concepção de alguns especialistas, para que o sistema de cotas obtenha sua devida finalidade de equidade social, é preciso pensar, desde medidas estruturais a mudanças em alguns critérios. De acordo com o pesquisador e doutor em economia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Álvaro Mendes Júnior, é necessária a exclusão do critério racial das cotas para que ela finalmente seja eficaz. Ele, que é autor de artigos científicos sobre cotas por várias instituições de ensino, entende que o sistema de cotas reduz a eficiência do ensino universitário, ao admitir um conjunto significativo de alunos, com uma base intelectual menor do que seria admitido em um sistema concorrencial.
Segundo seu estudo, realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a inclusão de pretos e pardos já aconteceria somente com a utilização de um recorte de renda. Na prática, para cada 100 vagas, seriam cinco negros que ingressariam na universidade, no lugar de cinco brancos. Ele explica que isso aconteceria, pois é maior o número de negros em classes socioeconômicas baixas.
“Enquanto os governos brasileiros investem os seus esforços no sistema de cotas, não temos discutido as grandes reformas educacionais necessárias para um aumento efetivo da qualidade geral da educação brasileira. Por exemplo: convênios e subsídios às escolas e universidades confessionais, homeschooling, fim da BNCC, sistema de vouchers, inversão da pirâmide de gastos em educação (hoje investe-se proporcionalmente pouco no ensino básico, em comparação com o ensino superior) e a elaboração de projetos especiais em áreas como o Latim e a Filosofia Perene”, salienta Álvaro.
Álvaro endossa que há todo um conjunto de indivíduos que está sendo prejudicado, por ter o seu acesso à universidade negado, em detrimento da reserva de vagas para os grupos cotistas. Além disso, o professor está entre os que postulam a existência de danos para os próprios estudantes cotistas:
“São casos em que os estudantes acabam por falhar na progressão ao serem admitidos em universidades ou cursos com um nível de dificuldade maior do que conseguiriam acompanhar. É a chamada ‘Mismatch Hypothesis’. Em estudos que realizei a partir dos dados da UERJ, o baixo rendimento de alunos cotistas em carreiras de Exatas é um indício claro de que este fenômeno também acontece no Brasil”, garante Álvaro.
Já para Helio Santos, um dos militantes históricos do movimento negro e uma das primeiras vozes de luta pela implementação de cotas no país, a lei de cotas raciais deve ser mantida, mas avanços precisam ser aprimorados, como medidas, fiscalizações e punições mais rigorosas devem ser melhores aplicadas, no intuito de combater possíveis fraudes.
Em uma publicação da ‘Rede Brasil Atual’, ele afirma que, embora cotas sejam vistas como um “remédio amargo”, essas políticas específicas não serão eternas. “No Brasil, devem durar no máximo 25 anos, quando se tiver reduzido essas distâncias – que aqui não são sociais, são raciais – quando isso acontecer, podemos esgotar essas políticas e pensar em outras, generalistas”, avalia Helio.
O que já disseram outros especialistas sobre as cotas
“A política de cotas foi a grande revolução silenciosa implementada no Brasil e que beneficia toda a sociedade. Em 17 anos, quadruplicou o ingresso de negros na universidade, país nenhum no mundo fez isso com o povo negro. Esse processo sinaliza que há mudanças reais para a comunidade negra”.
Frei David Santos, diretor da Educafro - organização que promove a inclusão de negros e pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo (Agência Brasil, 2018)
“Considero uma medida complementar às cotas nas universidades.O raciocínio imediato mostra ser necessário criar condições para que os jovens saiam das universidades e possam exercer suas profissões. Neste caso, é bom lembrar que o Brasil é um importante empregador. Os concursos públicos são visados por todas as camadas sociais por proporcionar a estabilidade”.
Vantuil Pereira- professor do Núcleo de Políticas em Direitos Humanos (NEPP-DH), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - (Folha Dirigida, 2012)
“São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”
Ayres Britto- Ministro do STF, na votação sobre a constitucionalidade das cotas, em 2012
Como funciona o sistema de cotas em outros países:
Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:
1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior
2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas
3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior
4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas
5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas
6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo
7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios
8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico
9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular
10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?