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Luta por cotas é marca de vários movimentos. Foto: EBC
Antes da criação das cotas, um calabouço histórico assombrou e continua assombrando o país. Resquícios da escravidão, que disseminou racismo em diversas esferas da sociedade, e as desigualdades sociais relacionadas à cruel distribuição de renda no Brasil, são exemplos do quão castigado é o povo pobre brasileiro. Diante desse cenário, defensores do sistema cotista educacional argumentam que essas políticas são uma reparação – histórica e social – a quem, desde a formação país, sobrevive à margem da igualdade.
Nesta reportagem, traçamos um panorama histórico que explica a desigualdade social no Brasil a partir de diferentes visões de estudiosos. Também detalhamos as motivações que fomentaram a criação das cotas educacionais.
Contamos histórias de brasileiros, vítimas da disparidade social, que lutam por ascensão por meio do sistema de cotas universitárias. Eles apostam na educação superior como o principal caminho para conquistar os seus sonhos.
“O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia racial’, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais”. O texto é de autoria do antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, em seu livro intitulado 'O Povo Brasileiro', lançado em 1995, no qual é abordada, de forma histórica-antropológica, a formação étnica brasileira, bem como o detalhamento dos fatores que levaram às diferenças socioeconômicas tão profundas, até hoje existentes.
O termo “democracia racial”, difundido de forma implícita pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, em sua obra “Casa Grande e Senzala”, de 1933, buscava explicar as questões raciais, de modo a romantizar todo um contexto do período escravocrata, bem como a chegada dos europeus no Brasil. A ideia de que havia uma boa relação entre brancos e negros, assim como portugueses e indígenas, foi popularizada, teoricamente, em outras obras de Freyre e, posteriormente, reproduzida por outros pensadores.
Apesar da importância literária dos escritos amplos de Gilberto Freyre, mais tarde, começa um debate sobre democracia racial, como sendo um dos maiores mitos da nação brasileira. Florestan Fernandes, também sociólogo e político brasileiro, analisou que, mesmo Gilberto Freyre não tendo sido o criador da expressão “democracia racial”, e ainda que ele tenha estudado a sociedade escravista e o Brasil moderno, “ele não contribuiu suficientemente para esclarecer objetivamente as desigualdades que são comuns”. A declaração de Florestan foi dada em uma entrevista para o programa 'Vox Populi', exibido na TV Cultura em 1984.
Florestan Fernandes enxergava na situação dos negros (pós-escravidão) um problema para além das suas teses acadêmicas. Ele via o racismo com um dilema crônico da sociedade e, que, portanto, deveria ser debatido. O estudioso escreveu o livro 'Integração do Negro na Sociedade de Classes', publicado em 1978, no qual ele, de forma lúcida, combate a suposta “harmonia racial” e explica o porquê de as desigualdades sociais e raciais serem tão próximas e em números tão expressivos.
Em um trecho do livro, ele diz: “A sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar- se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e capitalista”.
Em um Brasil não muito distante do agora, eis a escravidão – abolida em 1988 -, uma prática que deixaria marcas longevas não só na esfera racial, como também na social, onde, por vezes, as duas se encontram em vários momentos da história da sociedade brasileira. As desigualdades oriundas do processo da escravidão são refletidas nas áreas da educação, que interferem diretamente no mercado de trabalho, influenciando no rendimento do trabalhador, perpetuando assim outros tipos de desigualdades.
Disparidade social motiva cotas
A pobreza no Brasil tem cara, cor e lugar. As favelas são retrato potente das desigualdades que transformam as vidas dos que lá vivem, em muitos casos, em situação de escassez. Cercadas de vulnerabilidade, insalubridade, violência e miséria, durante muito tempo, as favelas eram lugares onde as políticas públicas não chegavam. E se não chegavam, era porque grande parte da sociedade estava de olhos fechados para esse grupo. Realidade de muitos brasileiros, que por falta de oportunidades, recursos financeiros, além da ausência de uma educação pública de qualidade, não puderam investir na própria educação.
O estudo publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, realizado pela Síntese de Indicadores Sociais (SIS) entre 2016 e 2017, analisou a pobreza que atinge, hoje, cerca de 54,8 milhões de pessoas em todo o país. Esse número, segundo o levantamento, é maior que em 2016 e revela que a população negra é a mais afetada pelas privações. Para André Simões, especialista do IBGE, a diminuição das desigualdades só pode ocorrer por meio de políticas sociais com foco nos grupos que mais sofrem. “A população preta ou parda vem ampliando o acesso à educação e saúde, mas há uma herança histórica muito grande, e isso indica que as políticas públicas devem continuar a focar, principalmente, nesse grupo”, diz o pesquisador. “Um país como o Brasil necessita de medidas específicas para corrigir essa desigualdade, esse é um ponto que deve ser frisado”, declarou Simões em entrevista à Agência Brasil.
Liana Lews, professora de sociologia com foco em temas como racismo, gênero, identidade e migração, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que as desigualdades raciais e sociais são estruturais no Brasil e violentas, uma vez que os negros, até 131 anos atrás, não eram considerados nem humanos. A violência a qual a socióloga se refere também diz respeito aos números alarmantes de assassinato do povo negro no país. Por exemplo, o Atlas da Violência, levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança, revelou que só em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio no país eram pessoas negras. Ainda segundo o estudo, de 2007 a 2017, esse número cresceu mais de 30%.
Das cotas à transformação do próprio destino
Eliedson Machado, hoje com 32 anos de idade, teve uma infância clássica de um jovem negro morador de periferia. Com poucas oportunidades, Léo, como é chamado, foi criado pela mãe, que era empregada doméstica, com mais três irmãos mais novos, na comunidade Vila Chico Mendes, no bairro de Areias, Zona Oeste do Recife. A realidade de Léo poderia ter sido igual ou semelhante a de muitos dos seus amigos da infância: “Parte dos meus amigos está presa e a outra já foi assassinada”, conta.
Atualmente, vivendo em uma conjuntura completamente diferente do passado, Eliedson desfruta da vida com mais tranquilidade, estabilidade e conhecimentos que adquiriu através do acesso à educação, conquistada diante de muitas dificuldades. No entorno do local onde Léo morava, existia um forte contexto de tráfico de drogas e violência que massacrava crianças e jovens.
Assombrado pela pobreza e risco de violência, Léo viu nos movimentos sociais do Recife uma maneira de não seguir à margem social. Aluno de escola pública que precisou intercalar a vida estudantil com o mercado de trabalho, Léo ouviu de muita gente que não seria ninguém ou que ele não seria capaz de estudar, de conseguir um emprego formal e de poder ser um homem livre para desenhar os próprios rumos.
“Na formação da identidade e da autoestima das pessoas negras, você já ouve na escola que não vai ser ninguém. Eu me recordo bem. Eu tinha uma professora primeira série que rasgava os meus cadernos. Então, a sua perspectiva de território e da escola não lhe oferece um estímulo para que você possa acreditar que você pode ter acesso ao ensino superior”, relata Léo.
Léo é aluno cotista pela Universidade de Pernambuco (UPE), matriculado no curso de ciências sociais. Inicialmente, o estudante havia sido beneficiado pela cota de pessoas autodeclaradas negras e independente da renda para a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), no mesmo curso, em bacharelado. Pouco depois, conseguiu transferência para UPE, onde faz licenciatura.
O homem negro, nascido e criado na periferia e que se banhava no Rio Tijipió é o primeiro membro da família a ingressar em um curso superior. Inclusive, o único dentre seus irmãos. As ciências sociais partem do desejo de Léo em aprofundar os pensamentos e as formas sobre como as sociedades se organizam, além dos fatos do cotidiano, inclusive os que englobam a sua própria vivência. “Por que a política de cotas existe? Por que tem tanto jovem negro encarcerado ou assassinado? Por que as comunidades da periferia não têm um plano urbanístico executado? Eu acho que as ciências sociais dão margem para entender e aplicar metodologias de pesquisas e de pensamento sobre a própria sociedade e sobre como ela se forma”, acredita o universitário.
Para André Lázaro, pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) - uma das pioneiras na aplicação do sistema de cotas sociais - e ex-secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC), órgão vinculado ao antigo Ministério da Cultura na gestão de Fernando Haddad, a inserção da política de cotas na universidade foi necessária e tornou a instituição mais direcionada para a população do Rio de Janeiro. Ouça no áudio a seguir:
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A política afirmativa foi um divisor de águas na vida de uma jovem estudante que morava em um bairro pobre da cidade do Rio de Janeiro. Há 19 anos, quando esteve entre os 3.055 cotistas da instituição, Luciene Maria Baptista Ventura estava começando ali uma jornada que iria mudar o rumo da sua história. E para melhor.
Integrante da primeira turma de cotistas sociais da Uerj, Luciene percebeu que seria um começo desafiador. Diante do preconceito por parte de alguns estudantes não cotistas, opiniões contrárias e julgamentos, Luciene se tornou um exemplo de que as cotas era um caminho possível para a construção da igualdade. Ensinada pelos pais desde a infância que a única maneira para conseguir mudar de vida seria através dos estudos, Luciene, que estudou durante toda a vida em escola pública, conseguiu passar no vestibular, juntamente com a irmã, Luciana, dentro do sistema de cotas sociais. “Quando eu e minha irmã éramos pequenas, minha mãe levava a gente de bicicleta todo dia. Era sempre uma luta. Depois que crescemos pudemos ir de ônibus e fazer cursinhos gratuitos”, lembra.
Há 15 anos, as duas irmãs tiveram a notícia que mudaria suas vidas: a aprovação no vestibular da UERJ. Luciene para o curso de matemática e Luciana em engenharia química. As duas foram cotistas. “Conseguimos representar bem as pessoas humildes que não vêm de um poder aquisitivo alto, mas que vêm de um objetivo de família de dar instrução aos filhos e de incentivá-los a buscarem algo a mais dentro do estudo que era isso que minha família passava”. Atualmente, Luciene dá aulas para alunos do ensino médio, no Rio de Janeiro. Luciana é engenheira química, tendo mestrado na área, doutorado e pós-doutorado. Recentemente lançou um livro.
Após pouco mais de uma década, observa-se uma mudança significativa no ingresso de grupos considerados minorias nas universidades. A 5ª Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos das IFES divulgou este ano que mais da metade dos graduandos de universidades tem renda per capita de até um salário mínimo.
O avanço das cotas no Brasil é amplamente defendido por entidades como a ONU (Organizações das Nações Unidas), que já se manifestou a favor da ação afirmativa que impactou, de forma positiva, as parcelas da população que sempre estiveram em um lugar abaixo na pirâmide social.
Na visão de alguns especialistas, a instauração das cotas não resolve de imediato todas as diferenças socioeconômicas, e, nem tampouco as étnicas. Contudo, esse é considerado um caminho para um futuro de oportunidades iguais para todos.
Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:
1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior
3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior
4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas
5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas
6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo
7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios
8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico
9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular
10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?
11 - Como seria um mundo sem cotas?