Foi em 2015 a primeira vez que conversamos. Na época, o objetivo era uma matéria para uma revista da faculdade. Sentado em um banco do Parque 13 de Maio, no centro do Recife, ele é interrompido por um telefonema enquanto conversava.
- Esse telefone é lá do presídio - ele alertou, mostrando o visor do celular identificando que a chamada era de "Lúcio Bombinha".
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- Digaí, meu filho, tudo bom?- ele atende - /.../ Tudo tranquilo. /.../ Falei ontem. Ontem à noite ele ligou pra mim. Tá na PAI, né? /.../ Mas vai sair de lá, se Deus quiser, Deus é pai, Deus é maior. /.../ Anham. Eu falei até com Marcelo. /.../ Falei. Olha, eu to conversando aqui com o pessoal da Universidade Federal de Pernambuco, viu? /.../ Tenho tempo pra você sim, seu cabra safado. Olha, eles estão fazendo uma matéria, estão fazendo uma revista, sobre o sistema prisional e eu estou dizendo aqui que o sistema prisional e merda é a mesma coisa, tá entendendo? Certo? Que vocês que são presos, como você, como Tarado, sofrem dentro da cadeia, entendeu? Viu? /.../ Beleza, vai timbora, /.../ tchau. Eles ligam e me pedem ajuda – explicou, assim que finalizou a ligação.
Paulo, agora advogado, recebe telefonemas como esse com certa frequência. São de presos pedindo ajuda. Eles pedem para não serem esquecidos, o que ocorre com muitos lá dentro. Paulo hoje se considera ressocializado, mas não pelo sistema, ao contrário: percebendo a falta de capacidade do Estado em cumprir seu papel de ressocializar, ele ficou motivado a buscar o feito por seus próprios meios.
No dia 15 de janeiro de 1998, Paulo Wanderlan Lino Teixeira, na época com 26 anos, estava bebendo com um amigo no Bar Três Corações, no bairro de Ouro Preto, município de Olinda, Região Metropolitana do Recife (RMR). O amigo iniciou confusão com uma pessoa no estabelecimento. Bate boca e troca de empurrões. “Me dá meu revólver, me dá meu revolver aí, porra!”, teria dito o sujeito do bar, conforme lembra Paulo, que na hora sacou o revólver que carregava. O tal rapaz fez menção de puxar uma arma da cintura. “Fui mais rápido. Atirei. Três tiros e ele veio a óbito”, recorda o advogado.
Paulo foi levado a júri popular no dia 3 de dezembro de 2003, sendo condenado por maioria de votos a uma pena de 12 anos e três meses. Ele teve o direito de apelar em liberdade, mas, mesmo com o recurso, a decisão foi mantida. O acusado se apresentou na Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Olinda no dia 13 de agosto de 2007 e no fim daquele mesmo dia já estava na Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Itamaracá.
Com poucos dias na Barreto Campelo, Paulo presenciou um principio de rebelião que resultou em seis mortes, por faca e fogo. Pouco tempo depois, no dia 7 de outubro, viveu o tumulto causado por Paulo Cristóvão Pereira, vulgo Paulo Doido, que matou a companheira no dia de visitas e por causa disso foi assassinado pelos outros presos. Ainda em dezembro daquele ano, outro motim culminou na morte de três presos. “Eu estive no inferno”, Paulo rememora.
O rapaz, desde que chegara à Barreto, conseguira trabalho fazendo as carteiras de encontro conjugal. O emprego teria sido conquistado graças ao diretor da unidade, o coronel Geraldo Severiano. O coronel, no início de 2008, seria transferido para o Presídio Aníbal Bruno, atual Complexo do Curado, na Zona Oeste do Recife. Para a comodidade da família, Paulo pediu que também fosse transferido. Conseguiu, mas não imaginava o que ali presenciaria.
“No Aníbal Bruno o que presenciei foram coisas horripilantes, que nunca tinha vivenciado aqui fora. Lá dentro, vi presos sendo decapitados, os outros jogarem bola com a cabeça dele, vi presos depois de assassinados terem seus olhos arrancados”, recorda. Até hoje ele diz ter pesadelo com aquelas cenas.
Assim que chegou à unidade, Paulo ganhou a função de registrar as mortes. De janeiro a dezembro de 2008, ele computou 48 homicídios – não sabe se todos esses chegaram até a imprensa.
Tão logo chegou ao semiaberto, em junho de 2009, o preso decidiu fazer algo que sempre teve vontade: prestar vestibular. “Precisava ocupar minha cabeça”. Passou em Direito na Faculdade Maurício de Nassau. Conseguiu um desconto de 30% na mensalidade durante todo o curso após contar a sua história para a diretoria.
Se fosse transferido para Penitenciária Agroindustrial São João, em Itamaracá, como deveria, já que estava em regime semiaberto, teria dificuldades de locomoção, visto que precisaria estar até as 23h na prisão. Paulo conseguiu convencer o juiz da Vara de Execuções Penais Adeildo Nunes e o promotor de Execuções Penais Marcellus Ugiette a, excepcionalmente, conceder-lhe o direito de continuar cumprindo a pena no Aníbal Bruno.
Em maio de 2015, já formado em Direito, Paulo conseguiu o livramento de condicional, que é a liberdade antecipada com uma série de restrições. A partir daí ele passou a se sentir mais livre para fazer aquilo que o motivou a cursar e concluir o curso. “Eu quero atuar na área criminal, para brigar contra as injustiças do Judiciário. É o cara ser preso porque furtou uma caixa de chocolates nas Lojas Americanas e ir para um lugar daquele. Vai sair pior. Presos que não têm família, condições de pagar advogado, vai lavar cueca dos outros presos, fazer faxina, apanhar e cair no esquecimento do Judiciário. Vai pagar pena e continuar preso. Se ele não entende de lei, é uma pessoa leiga, mofa, entra sadio e sai com enfermidade incurável”, ressalta, dizendo que tinha este objetivo em mente desde que estava preso.
“O sistema prisional em nada ressocializa. Pelo contrário, é uma faculdade do crime”, resume o advogado. “Quando cheguei ao presídio, passei oito dias dormindo sentado e só melhorou porque paguei R$ 300 para dar ao chaveiro de espera, para conseguir um lugarzinho para dormir. Era uma cela com espaço de 4 metros quadrados, que na minha concepção só cabiam dez pessoas, mas tinham mais de cem. Outros dormiam em pé, com lençol amarrado por debaixo das axilas. Lá não existe higiene. Tinha comida, mas não era completa, mas aprendi com minha mãe e com meu pai que o tempero da comida é a fome. É um local onde impera a maldade, a inveja, onde somos tratados feito bichos. Não temos acesso à direção do estabelecimento. Ao falar com o agente, temos que por as mãos para trás e abaixar a cabeça. Se levantar e olhar para a cara dele é pau, negão, é pau”.
Naquele dia de 2015, Paulo carregava um documento, um processo no qual estava trabalhando. Um detento que havia terminado a pena há vários meses, mas continuava atrás das grades. “Não ganhei nada por isso”, ele fala, orgulhoso. “Fiz amigos. Algumas pessoas merecem amizade. Têm pessoas boas lá. Elas pedem para andar com o processo delas”. Lúcio Bombinha estava preso por porte ilegal de arma de fogo, havia pegado pena de 3 anos e 6 meses. “Já era para estar na PAI, mas continua em regime fechado”, denuncia.
O advogado sabe a dificuldade que é alguém se manter em pleno juízo vivendo dentro de um presídio daqueles que ele viveu. Ainda assim, acredita que a ressocialização pode ser feita independente do Estado tentar o oposto. “A ressocialização existe dentro de cada um de nós. Eu quero, eu posso, eu vou me ressocializar. Querer é poder. Eu tive propostas de sair de lá podre de rico, mas eu não quero, eu quero é minha paz, acordar no meu travesseiro com a consciência limpa. Cumpri minha pena, paguei o que devia à sociedade”, afirma.
Em 2017, volto a falar com Paulo Wanderlan, desta vez por telefone. Pouco parece ter mudado. Ele dizia estar segurando o processo de uma pessoa que já devia ter sido liberta.
Ele trabalha de carteira assinada no departamento jurídico da Empresa de Turismo de Pernambuco (Empetur). Ainda continua correndo com processos de presos, mas está lutando para tirar a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e assim exercer a vontade de defender os detentos pouco favorecidos.
"É uma área muito dura, muito dura, e por ser muito dura é muito carente. Me sensibilizei com o que vivenciei lá dentro". No próximo dia 16 de fevereiro extingue sua pena. Como de praxe, é possível que isso não se oficialize por morosidade da Justiça, mas o advogado já sente o gosto. "Meu amigo, eu vou tirar um pedaço do fardo que carrego nas costas", conta, com um suspiro longo, de quem consegue sentir por alguns segundos a sensação que está por vir.
Família
Paulo não aprovava que sua família fosse visitá-lo na prisão. Nunca permitiu que seus dois filhos fossem. A mãe e a esposa o visitava aos domingos, das 8h às 13h. “Quem cometeu o crime foi eu, quem devia estar preso ali dentro era eu, não elas. Eu tinha duas alegrias nos dias de visita: quando elas chegavam e mais ainda quando elas iam embora”, aponta ele. Apesar da pena se direcionar apenas ao condenado, a família do mesmo também acaba sendo punida.
Para a diretora do Serviço Ecumênico de Militâncias nas Prisões (SEMPRI) Wilma Melo, essa vontade de lutar contra as injustiças que ocorrem nos presídios vai além dos próprios presos, atingindo também seus parentes. “As negações são tantas que se tornam impulsionadoras do desejo de conhecer e exercer seu direito de cidadania. O tratamento é cruel, desumano e indigno, e a família passa por isso e fica se questionando”, explica Wilma.
A diretora ressalta que os parentes ficam curiosos e começam a ir aos fóruns, a procurar os promotores e tentar descobrir o que é e o que não é permitido. O número de familiares engajados poderia ser bem maior se não fosse a falta de informação e baixa escolaridade da grande maioriadas famílias dos detentos, ela acrescenta.
Ainda assim, Wilma lembra casos de pessoas que entraram em cursos de formação universitária em Direito para combater as injustiças sofridas contra seus entes presos. “Conheço um caso de esposa que foi fazer Direito logo depois do marido ser preso. Este preso sofreu muita tortura dentro da prisão, ele havia cometido delitos graves, mas o Estado também cometeu delitos graves contra ele. A outra pessoa, esposa também, já terminou o curso. É um caso de um homem que respondia processo pela Justiça Militar e a esposa foi fazer o curso de Direito pela dificuldade de acesso a tudo”, lembra.
De acordo com Wilma, há muitas outros casos semelhantes e muitos de pessoas que desejam cursar Direito. A militante, inclusive, acredita que deveria haver um incentivo do Estado para que familiares de presos fizessem cursos universitários ou pelo menos cursos de orientação.