Alguns hemocentros estão recusando doações de sangue de pessoas do segmento LGBT (sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros). Durante a pré-avaliação, os doadores preenchem um questionário impresso e respondem a perguntas feitas pela equipe de triagem. É nesse momento que muitas pessoas se queixam de preconceito e de constrangimento, porque às vezes as perguntas sobre a vida sexual são feitas na presença de outras pessoas.
“Depois da minha resposta sobre a sexualidade, pediram para ver os meus braços e eu havia feito depilação com cera. A enfermeira disse que eu não poderia doar por conta da irritação na pele que a depilação causou. Nem quiseram tirar o meu sangue”, conta o estudante Kelvyn Oliveira, de 25 anos, que é bissexual.
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A portaria 158 do Ministério da Saúde, de fevereiro de 2016, define as regras e os procedimentos técnicos para doação e coleta de sangue no Brasil. Em um dos seus artigos, ela considera temporariamente inaptos à doação “homens que tiveram relações sexuais com outros homens”. A Defensoria Pública da União recomendou ao Ministério da Saúde que alterasse o artigo por ser discriminatório mas, até agora, o texto não foi alterado.
O advogado Thales Coimbra afirma que o regulamento viola o direito da comunidade LGBT de receber igual tratamento por parte do governo. “A portaria pratica tratamento diferenciado a homossexuais com vida sexual ativa, impedindo que possam doar sangue. Ao mesmo tempo, prejudica eventuais beneficiários da doação, que ficam privados de maior oferta do material”, explica.
Coimbra explica ainda que quem já teve a doação recusada só por ser LGBT pode fazer uma denúncia à ouvidoria da instituição e pode também entrar na justiça com uma ação de indenização por danos morais. Nesse caso, é importante que a vítima do preconceito tenha provas como gravação de áudio ou vídeo. Em São Paulo, a lei estadual 10.948 de 2001, que penaliza a homofobia, prevê punições que podem alcançar os R$ 75 mil, além da cassação da permissão de funcionamento do local.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que só se deve recusar doação de sangue de pessoas que se enquadrem em uma classificação de risco, que inclui pessoas com muitos parceiros sexuais, como é o caso dos profissionais do sexto, pessoas que nos últimos trinta dias tiveram relações sexuais sem o uso de preservativo, usuários de drogas injetáveis e quem já teve hepatite ou doenças sexualmente transmissíveis. O enfermeiro Thiago Augusto Castro explica que, antes da doação, uma amostra do sangue deve ser examinada. Se esse exame não detectar problemas e se o doador estiver preparado, não há motivo técnico para recusar a doação.
“Eu creio que isso vai da missão, visão e valores de cada hospital ou hemocentro. Se a pessoa é saudável, não existe razão para que o sangue não seja coletado e todo o procedimento padrão seja feito. Eu sou homossexual e doador assíduo, nunca fui barrado. Não é porque a pessoa é LGBT que ela é doente, acho um absurdo quando escuto que o local se recusou a fazer a coleta. Sangue é vida! É questão de vida ou morte para algumas pessoas”, diz Thiago.
A portaria que coloca a população LGBT no grupo de risco afasta possíveis doadores e torna ainda mais precária a situação dos estoques de sangue nos próprios hemocentros, prejudicando os pacientes que necessitam das doações. Foi o caso da cabeleireira Stephany Mellicy, de 34 anos. Por ser transexual, ela foi impedida de doar sangue para a própria mãe.
“Faço exames regulares e desde a maioridade sou doadora de sangue. Entendo que é necessário que haja uma triagem para os doadores. Até começar a minha transição de cisgênero para mulher transexual, eu podia doar. Quando comecei a transição, a minha mãe teve leucemia e mesmo eu sendo doadora há muito tempo, não pude doar sangue para a minha própria mãe! Nem sequer fizeram a coleta do meu sangue”, conta.
Uma pesquisa feita nas redes sociais com 100 pessoas revelou que apenas 31 são doadoras de sangue. Entre elas, apenas 11 pertencem à comunidade LGBT. Dessas 11, cinco já tiveram suas doações recusadas. A estratégia dessas pessoas é procurar os locais que tradicionalmente não rejeitam doadores LGBT. Em São Paulo, a Santa Casa de Misericórdia e o Posto Dante Pazzanese são citados pela comunidade como receptivos. Em Guarulhos, foram mencionados o Hemocentro São Lucas, o Hospital Geral e o Hospital Bom Clima.
Para quem já necessitou de sangue, doar é um direito e também uma satisfação.
“Eu precisei de doação de sangue quando fui ganhar bebê. Fiquei aguardando para ter um parto natural e com isso, aconteceram muitas complicações. Eu fiquei muito ruim mesmo. Tive que fazer uma cesárea de emergência, tive hemorragia e uma parada cardiorrespiratória. Foi horrível ter que continuar no hospital enquanto via o meu filho ir para casa. Ao todo, foram oitos dias internada, cinco na UTI, recebendo três bolsas de sangue por dia. Depois de sair do hospital e me recuperar, me comprometi em doar sangue, pois eu senti na pele o quanto é necessário. Sempre que dá o intervalo mínimo, eu vou ao Hemocentro São Lucas fazer a doação. Lá, o fato de eu ser bissexual nunca me impediu de doar”, conta a gestora comercial Ariane Barbará, de 24 anos.
Por Caroline Nunes e Cleber Soares