A jornalista Schirlei Alves foi condenada pela juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, da 5ª Vara Criminal de Florianópolis, em duas ações por difamação contra um juiz e um promotor que atuaram no caso Mari Ferrer. A magistrada aplicou uma pena de 6 meses de detenção em regime aberto, em cada ação, e multas que somam R$ 400 mil contra a jornalista Schirlei Alves, que escreveu reportagens sobre o caso.
O advogado Rafael Fagundes, que defende a jornalista, afirmou em nota que "a defesa está inconformada com a sentença". Segundo Fagundes, a decisão da juíza "ignorou a realidade dos fatos e a prova dos autos, resultando em uma decisão flagrantemente arbitrária e ilegal".
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Os processos correram em sigilo na Justiça de Santa Catarina. As sentenças, publicadas em 27 de setembro, foram obtidas pelo Estadão. Segundo os documentos, o promotor de Justiça Thiago Carriço de Oliveira e o juiz Rudson Marcos acusaram a jornalista por difamação e injúria, após uma reportagem sobre o caso Mari Ferrer ter sido publicada no site The Intercept Brasil em 2020.
A matéria revelou imagens da audiência do processo que a influenciadora Mariana Ferrer moveu contra um empresário sob a acusação de estupro. A gravação mostrou que o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que defendia o acusado, insultou a jovem, exibiu fotos sensuais feitas por ela antes do suposto crime, sem qualquer relação com o episódio, e mencionou poses "ginecológicas". No texto da reportagem, o site usou a expressão "estupro culposo".
A juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer considerou que a reportagem teve a "nítida intenção" de atribuir o termo ao promotor de Justiça. A expressão não havia sido usada no processo e, segundo a magistrada, o texto deu a entender que Carriço de Oliveira teria pedido a absolvição do empresário com base nesta tese.
Rodrigues Studer ainda registrou que a reportagem sugeriu que o juiz "teria acatado o pedido de absolvição do acusado, concordando com a tese apresentada pelo promotor de justiça 'estupro sem intenção'". Na sentença, a juíza afirmou que a jornalista teve "o intuito de propagar, difundir a sua matéria, posto que com tal título e afirmação, totalmente fora do âmbito jurídico, conseguiria chamar mais atenção e gerar mais acessos ao texto".
Em 6 de outubro de 2020, data em que a reportagem foi publicada, o site The Intercept Brasil registrou no portal que nunca havia escrito que a expressão "estava nos autos". "Nós, os editores da reportagem, usamos no título da matéria a expressão "estupro culposo" entre aspas, justamente para mostrar ao leitor que estávamos diante de uma ideia nova, criada a partir da tese do promotor - e acatada pelo juiz", afirmou o site na ocasião.
"Usamos as aspas para sinalizar o espírito figurado, mas parte da audiência interpretou como uso literal da expressão, como se tivéssemos copiado e colado ela dos autos do processo. Erramos ao não deixar ainda mais claro no corpo do texto que a expressão "estupro culposo" não estava nos autos, mas era uma interpretação do que defendeu o promotor em suas alegações finais."
A magistrada Andrea Cristina Rodrigues Studer não aceitou os argumentos da defesa no processo e afirmou que o uso da expressão "ultrapassou a barreira da narrativa e da crítica jornalística". A juíza condenou Schirlei Alves por difamação contra funcionário público, em razão de suas funções, e por meio que facilitou a divulgação do caso. A juíza absolveu a jornalista do crime de injúria pelo uso da expressão "excresce^ncia juri´dica" no texto.
"Concedo a querelada (jornalista) o direito de recorrer em liberdade, haja vista a modalidade da reprimenda aplicada, bem como porque respondeu ao processo em liberdade", afirmou a magistrada.
Ao estipular a multa de R$ 400 mil (R$ 200 mil em cada processo), a juíza afirmou que o crime foi "cometido com o objetivo de se auferir lucro, com os acessos da reportagem". A magistrada anotou, na sentença, ter considerado ainda a "condição econômica da vítima, bem como a extensão do abalo sofrido e lucro auferido com as publicações das matérias".
Schirlei Alves afirmou ao Estadão que "o sentimento é de injustiça". "Estou sendo punida por ter feito o meu trabalho como jornalista, por ter revelado ao público um absurdo de poder cometido pelo judiciário", disse. "Essa decisão me parece uma tentativa de intimidação, de silenciamento não só da minha pessoa, mas de outros jornalistas que cobrem o judiciário e fazem um jornalismo investigativo, fiscalizador e de denúncia."
A defesa da jornalista declarou que "a sentença cometeu uma série de erros jurídicos primários, agravando artificialmente a condenação e contrariando toda a jurisprudência brasileira sobre o tema". "Incapaz de esconder preocupações corporativistas, essa sentença pode servir como uma ameaça contra aqueles que ousam denunciar os abusos eventualmente cometidos pelo Poder Judiciário", afirmou o advogado Rafael Fagundes.
Ao Estadão, o juiz Rudson Marcos afirmou que não comenta "sentença de outros colegas, e a causa em questão está sob segredo de justiça". O magistrado registrou, contudo, que "o tema merece bastante reflexão" e disse ser "compreensível que o público considere uma decisão judicial contrária a uma jornalista como fruto de censura e de corporativismo".
"No caso, contudo, por óbvio a difamação não está na divulgação dos fatos, mas nas mentiras e distorções que pautaram a aludida reportagem", afirmou. "A matéria contém falsidades atestadas por perícia e outras provas. Diz que o réu da ação penal foi absolvido por "tese inédita" de estupro culposo, sugere uma intenção de ajudar a defesa e é apoiada em um vídeo maldosamente editado. O que se identificou na reportagem foi o objetivo de degradar a atuação técnica do promotor e juiz, lançando mão de fake news."
Questionado sobre o valor da multa aplicada à jornalista, Rudson Marcos declarou que o "prejuízo" que sofreu "com as mentiras divulgadas na reportagem não é mensurável financeiramente". "Prejuízo que vou continuar sofrendo ao longo dos anos, pois meu nome estará para sempre associado a uma 'absolvição por estupro culposo' que nunca ocorreu. Basta olhar a internet", assinalou.
Procurados, a juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer e o promotor Thiago Carriço de Oliveira não se manifestaram.
Juiz no caso Mari Ferrer foi advertido pelo CNJ
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu na terça-feira, 14, aplicar ao juiz Rudson Marcos, ex-titular da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, uma pena de advertência - a punição mais leve prevista na Lei Orgânica da Magistratura. O magistrado foi o condutor de audiências na qual o advogado Cláudio Fastão da Rosa Filho, que representa o empresário André Camargo Aranha, ofendeu a influenciadora Mari Ferrer.
Antes de o CNJ decidir apurar o caso, a Corregedoria local apenas 'alertou em forma privada' o magistrado sobre a necessidade 'de proceder de forma mais enérgica nas audiências', coibindo o abuso de direito de defesa ou acusação.
Para o Conselho, o juiz assistiu passivamente ao advogado, sem a adoção de qualquer cautela ou censura às 'declarações jocosas' e perguntas grosseiras do mesmo. Rubson Marcos chegou a alegar que fez 37 intervenções nas audiências, mas a relatora apontou que foram 23 intervenções - 11 à vítima, oito ao advogado e quatro a ambos - sendo que a maioria delas não dizia respeito ao tratamento da vítima.
Entenda o caso Mari Ferrer
A influencer Mariana Ferrer acusou o empresário André de Camargo Aranha de tê-la estuprado em dezembro de 2018, quando ela tinha 21 anos. Em uma das audiências do processo, na Justiça de Santa Catarina, o advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, mostrou o que chamou de fotos "ginecológicas" da jovem e afirmou que "jamais teria uma filha" do "nível" dela.
Com o constrangimento, Mariana Ferrer foi às lágrimas, e o advogado seguiu atacando. "Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo", afirmou. "Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada. Pelo amor de Deus, gente, o que é isso?", apelou a jovem.
O juiz do caso, Rudson Marcos, pediu para o advogado manter "bom nível". O teor da audiência foi revelado pelo site The Intercept Brasil. O empresário André de Camargo Aranha foi absolvido.
Caso levou à edição da Lei Mari Ferrer
O caso, ocorrido em 2020, levou à edição da Lei Mari Ferrer, em novembro de 2021. A norma reprime o constrangimento de vítimas e testemunhas em julgamentos de crimes sexuais. O juiz do caso será responsável pelo cumprimento da medida.
Relatório registra detenções de jornalistas no Brasil
Um relatório anual da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), publicado em janeiro deste ano, registrou três detenções de jornalistas no ano passado. Dois repórteres foram detidos por policiais armados com fuzis, enquanto aguardavam resposta a um pedido de entrevista na sede de uma mineradora inglesa na Bahia.
Segundo o documento da Fenaj, outro jornalista foi detido pela Polícia Militar quando tentava apurar uma denúncia sobre falta de médicos e suprimentos em um hospital no Piauí. No terceiro caso, um fotojornalista foi detido enquanto trabalhava na região da Cracolândia, em São Paulo, sob alegação de perturbação da ordem pública.