[@#video#@]
Em seu livro ‘Eu Não Sou Cachorro Não’, o escritor Paulo César Araújo aponta que, desde o início, o movimento brega e seus integrantes sofrem uma certa 'perseguição sociocultural', o que, para o autor, é uma clara tentativa de cristalizar a música popular, privilegiando obras de artistas preferidos pelas classes dominantes. Um exemplo que, para alguns, pode fazer parte dessa dita ‘perseguição’ é o Projeto de Lei 494/2019, cujo texto tramita na Assembléia Legislativa de Pernambuco (Alepe) e quer proibir, entre outros, o Passinho - que é uma das vertentes do Brega - nas escolas do Estado.
##RECOMENDA##
Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Thiago Soares, propor leis para impedir que as pessoas dancem nas escolas tem a ver com a idéia de vigilância do corpo, algo que, de acordo com o estudioso, está atrelada à crescente onda conservadora do país. “Essa agenda conservadora dos costumes é muito perigosa para a gente como sociedade e diversidade. É preciso perceber que a escola também é um lugar de alegria, já que isso também é um componente para o aprendizado”, aponta Thiago.
Diante da polêmica, alguns dos consumidores e produtores do movimento - que é originário das periferias do Grande Recife - se mobilizam na tentativa de fortalecer o ritmo e, assim, não datar o ‘fim do Passinho’, seja nas escolas ou em qualquer outro espaço.
Uma das precursoras do movimento, a jovem Maria Clara, considerada a ‘Rainha do Passinho’, sempre tenta marcar ‘encontros do Passinho’ com os seus seguidores (quase 260 mil no Instagram). No último domingo (29), a garota conseguiu fazer com que dezenas de crianças, adolescentes e adultos se reunissem no Marco Zero do Recife para dançar contra o preconceito.
A ‘Rainha do Passinho’, moradora do bairro de Santo Amaro, é uma das jovens que encontraram visibilidade num local tão marginalizado. “Tudo o que eu conquistei e sou hoje é graças ao Passinho. Eu devo muito a esse movimento”, diz Clarinha, como é carinhosamente chamada pelos seus admiradores. Além de conseguir visibilidade num meio tão relegado ao esquecimento social, Maria Clara reforça que já viu muitos colegas e jovens que saíram da “vida errada” e agora estão ocupando a mente dançando o ritmo.
Percebendo o Passinho como algo importante para além da expressão corporal, a jovem Thiali Larissa da Silva, 20 anos, moradora da cidade de Escada, na Mata Sul de Pernambuco, tem o movimento - que conheceu através da internet -, como algo primordial para a sua vida.
Na época que conheceu o Passinho, a garota lutava contra o Linfoma de Hodgkin, câncer que se origina no sistema linfático. Larissa afirma que o conhecimento do ritmo foi o que ajudou para que ela conseguisse forças para enfrentar as dificuldades da doença. "A minha reabilitação foi através do Passinho. Nos momentos que eu me sentia muito triste colocava as músicas para tocar e assim começava a me sentir melhor. Agora eu estou zerada", acentua a jovem.
Enquanto pesquisador da 'Folkcomunicação', o jornalista Luiz Beltrão apontava para as classes "produtoras e consumidoras do brega", por exemplo, como responsáveis, também, pela produção de bens simbólicos que acabam indo além do que se é 'patrocinado' pelas classes dominantes. Esses bens simbólicos, como apontado por Luiz, muito tem a ver com as realidades das pessoas que estavam relegadas ao silêncio e agora, através do Passinho, acabam conseguindo uma certa visibilidade - mesmo que por seu pares.
“A ideia do Brega se confunde com a própria ideia do pobre. Essa configuração situa o Brega num lugar que sempre está sendo rejeitado porque a pobreza é a grande divisão do Brasil. Quando o pobre começa a ter uma ascensão, aí vem questionamentos e (tentativa de) cerceamento que estamos vendo”, corrobora Thiago Soares.
Projeto de Lei 494/2019
A autoria do Projeto de Lei é da deputada evangélica Clarissa Tércio (PSC). O texto dispõe "sobre a proibição de exposição de crianças e adolescentes no âmbito escolar, a danças que aludam a sexualização precoce e inclusão de medidas de conscientização, prevenção e combate à erotização infantil nas escolas do estado de Pernambuco". Além do Passinho, outros manifestações culturais também estariam sujeitas à proibição na rede estadual de ensino.
Sobre essa “sexualização” dada como justificativa para proibir o Passinho nas escolas, o professor Thiago reforça que o que há é uma leitura questionável sempre atrelada à idéia de sexualidade e moralidade. “Se a gente for pensar numa abordagem mais sociológica, Gilberto Freyre quando falava das danças nas senzalas era sempre sexualizando. Então a senzala era sempre o lugar da sexualização e a ‘casa grande’ era o lugar do cometimento burguês”, afirma Soares.
“Historicamente estamos sempre reproduzindo esses valores de que o pobre e o preto é sempre sexualizado e os brancos e a classe média seriam os civilizados - o que é algo muito problemático e reducionista. A gente está ainda na ‘casa grande senzala’ e nunca saímos dela”, pontua o jornalista.
Em entrevista ao LeiaJá, a deputada Clarissa Tércio disse que o que a motivou a criar o projeto foi ter recebido denúncias e vídeos de jovens dançando de maneira "obscena" em ambiente escolar. "Eu tenho um canal de denúncia chamado Fiscaliza PE, quando eu vi que a demanda não era pequena; pessoas me cobrando, me marcando nas redes sociais em vídeos desse tipo - o povo pernambucano sabe que eu represento um segmento conservador e que defendo a família, então as pessoas vão me marcando -, foi aí que eu vi que tinha que fazer alguma coisa".
A deputada disse ainda que não teme ter o projeto de lei julgado como perseguição à liberdade de jovens e professores e revelou estar otimista quanto à sua aprovação na Alepe. "A gente sabe que a oposição sempre vai existir, mas o que me deixa tranquila é saber que a rejeição é muito pequena. Eu não estou querendo regulamentar nada dentro da casa de ninguém, a gente está tratando de um ambiente específico, o escolar, é um ambiente que não é para essa finalidade. Estou recebendo um apoio grande dos deputados da casa, eu acredito que esse projeto vai entrar".