“...corpo que não está e permanece na poesia que a todo canto fortalece o Poeta que na morte se renova”. Toquinho falou e disse.
Aos 67 anos, no esplendor da envelhescência, Vinicius nos deixou e foi aprontar no território da paz celestial. No ritmo alucinante em que viveu, o milênio seria a escala certa para medir sua idade real. O centenário de nascimento, 19 de outubro, apenas, um número redondo.
Poetinha na linguagem afetiva de Antonio Maria e na retórica invejosa dos críticos, Vinicius foi um poetaço. Drummond confessou: “Foi o único de nós que teve vida de poeta”. Ele vive em estado permanente de poesia”. O grande amigo Neruda não fez por menos: “Não tive a coragem de Vinicius. Era o que mais gostaria de ter feito: letras de música. Mas tive medo de que me desprezassem”.
Em outras palavras, Vinicius fez da poesia vida e da vida uma poesia em tudo que a poética tem de compulsão em direção ao belo, de impulso ao redemoinho das emoções, de mergulho nas profundezas abissais da paixão. Sua arte de viver era contraditória, imperfeita, movida pelo risco, animada pelo gosto à transgressão o que lhe apontava inexoravelmente o rumo do acaso e do transitório.
Com poemas declamados e músicas cantadas de cor e salteado, ouso enxergar Vinicius por meio de frases recheadas de verdades interiores e irreverência libertadora.
Vamos a elas:
- “Fui salvo pela mulher”. Revela uma atração irresistível pela mulher. Um tropismo em direção às fêmeas, um ginotropismo, perdoem-me pelo neologismo. Nenhuma surpresa. O mimos femininos acompanharam Vinicius. Mãe, tias, irmãs, filhas, nove casamentos oficiais e amores contingentes, são um eloquente atestado do significado da mulher na vida do poeta. Foi salvo, inclusive, da paixão homossexual que o culto e enrustido Otavio de Faria nutria pelo jovem Vinicius.
- “Sou um labirinto em busca de uma saída”. As renovadas e incontáveis paixões foram saída e prisão de um ser em permanente ebulição.
- “Marília, todas as mulheres do mundo são lindas!”. De porre, em Buenos-Aires, com dor de corno e consolado pela amiga Marília Medalha, faz a exclamação diante de uma mulher muito feia. Paga uma dívida por conta da exaltação poética da beleza feminina.
- “O uísque é o cachorro engarrafado”. Conclusão inevitável cuja premissa maior é que “cachorro é o melhor amigo do homem”.
- “Ser poeta é viver três doses acima”. Não é original, mas na boca de Vinicius é uma conclamação para que as pessoas tirem os pés do chão.
- “Liberdade é poder cagar de portas abertas”. Autoexplicativa, portanto, sem comentários.
- “Você notou que quando ela passa o ar fica mais volátil”. “Ela” viria a ser a Garota de Ipanema.
- “Estou pensando nas suas pernas. Elas ainda são muito bonitas”. Os amigos forçaram a base. Vinicius, puto da vida, foi a uma sessão de psicanálise e a psicanalista intrigada com o silêncio provocou a escuta. Nunca mais Vinicius voltou ao consultório.
- “Eu sou Vinicius de todos os vícios”. Autodefinição incontestável.
- “A tradicional família mineira que vá a puta que pariu”. No coração de Belo Horizonte, teatro lotado, Vinicius atrasado hora e meia, o público protestando, vaiando, quando, Toquinho e os músicos inquietos, Vinicius chega, trôpego, embriagado, dirige-se a banqueta, dá um acorde no violão: silêncio. Ele corta o silêncio com uma frase afrontosa. O público aplaude delirantemente. O ídolo venceu.
- “Sou o branco mais preto do Brasil”; “Pixinguinha é o melhor homem do mundo”. São manifestações do autêntico sincretismo da alma e do ser amorável que era Vinicius. Afirmava que não temia a morte, mas tinha saudade da vida. E a vida morrendo de saudade de Vinicius de Moraes.