Imaginem se um estudante negro e/ou oriundo de escola pública fosse obrigado a exibir tarja no braço e ocupar cadeira separada na sala de aula – indicando que se trata de cotista! Não, esta discriminação não foi imposta aos alunos. Mas, no terreno da literatura pernambucana, ser rotulado e isolado é considerado um privilégio, garantido por leis municipal e estadual.
Há duas semanas, fui à livraria para cumprir demanda das mais aborrecidas: comprar de novo alguns livros que emprestei e que nunca devolveram. Depois de muito procurar pelo Osman Lins da lista, funcionário me advertiu que, devido às legislações, os pernambucanos não estão ali, entre os demais escritores do País. Com três ou quatro gestos, ele me indicou rota para chegar ao puxadinho dos autores do Estado. Eram duas estantes atrás do balcão de canetas, chaveiros e outros brebotes.
Foi esquecimento, porque eu acompanhara essa maluquice normativa desde o começo, há quase uma década, quando ativistas em “defesa do livro pernambucano” pintaram com a ideia sem pé, cabeça ou salvação. Ideia que se tornou “privilégio” conquistado, que virou lei municipal e, não muito depois, estadual: as lojas devem exibir quantidades mínimas de títulos nordestinos e, mais especificamente, de pernambucanos. Mais que isso, é preciso também que eles estejam rotulados, com plaquinha e tudo – o que, naturalmente, implica existência de estantes específicas, separadas.
Na mesma livraria, Osman Lins, Hermilo Borba Filho, Gilvan Lemos e outros respeitados nomes estão não só afastados, mas também misturados a manuais técnicos e livros sobre Suape, por exemplo. Pois a estapafúrdia legislação não previu que, para chegar a 2,5% de obras produzidas por pernambucanos (além de outros 2,5% para os demais nordestinos), os estabelecimentos seriam obrigados a fazer mágica, a juntar todo tipo de impresso, de relatório a guia de magia com cartas.
Para se ter ideia, uma franquia de grande porte tem que disponibilizar entre dois e seis mil títulos de “literatura pernambucana” – o que, como todos minimamente familiarizados com cenário literário local sabem, é tarefa inviável. Assim, amontoa-se o que aparecer, de alhos a bugalhos, na esperança de que a realidade não seja tão ridicularmente distante da cota estabelecida.
Vários desses “defensores do livro pernambucano” são meus amigos, porque tenho sim amigos com todo tipo de convicção e com as mais variadas densidades ósseas cranianas. Eles são das cabeças mais duras, com certeza. Alguns tópicos, nem adiantava discutir. Era perda de tempo, entre outras coisas, fazê-los refletir sobre quão abstrato e inócuo é esse negócio de literatura pernambucana, ou baiana, ou mineira, ou carioca... As próprias divisões já consagradas vivem sendo postas em xeque, imagina esses quadradinhos mais restritos? Como tão bem sintetizou Octavio Paz,
“Nada distingue a literatura argentina da uruguaia, nem a mexicana da guatemalteca. A literatura é mais ampla do que as fronteiras. (...) Os grupos, os estilos e as tendências literárias não coincidem com as divisões políticas, étnicas ou geográficas. Não há escolas nem estilos nacionais; em compensação, há famílias, estirpes, tradições espirituais ou estéticas”.
Mas, quando da discussão da lei, cheguei a apelar para questões que pareciam menos sofisticadas e absurdamente óbvias, tais qual: se os livros ficarem separados, na maioria dos casos eles serão vistos somente por quem procurá-los especificamente, por quem adentrar no recinto em busca de um escritor determinado ou à procura dessa tal literatura pernambucana (seja lá o que ela for). Existe também a irônica hipótese de serem encontrados por quem estiver curioso para visitar estantes exóticas. Porque a rotulação e a segregação tornam essa chamada literatura pernambucana algo exótico, de fato – literal e tristemente.
Por qual razão a hipótese é irônica? Porque umas das justificativas para as leis foi a necessidade de inserir a literatura local no cenário nacional, fazê-la menos marginal. Para tanto, que pensaram eles? Tiveram a brilhante sacada de tirar os autores de Pernambuco da convivência física com os compatriotas, colocando-lhes uma plaquinha própria e segregando as estantes.
Um dos pareceres apresentados na Assembleia Legislativa (para a Lei 53/2011) é que “toda e qualquer proposta que dê visibilidade à cultura nordestina é sempre muito bem vinda, devendo ser louvada e estimulada”. Contudo, o que pode dar ainda mais visibilidade a Raimundo Carrero, por exemplo? Estar nesses puxadinhos reservados aos romancistas locais, ou ser um natural vizinho de estante de Adolfo Caminha, Euclides da Cunha, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony e até de um Paulo Coelho?
Os arautos dessas leis replicam que são poucos os escritores pernambucanos (ou mesmo do Nordeste) que chegam às prateleiras e vitrines desse mercado. Ainda que desconsideremos o fato de que isso não se deve somente a marketing, preconceito ou injustiças editoriais; ainda que ignoremos que muitos desses autores são mesmo horríveis e que jamais seriam comercializados sem essa benesse normativa, seria caso de perguntar: com as leis, foi garantido que eles passem a fazer parte do universo editorial da literatura brasileira, como tanto ambicionavam, ou agora é que foram institucionalmente exilados?
A quem realmente interessam essas leis? Qual romancista, contista ou poeta sonha em parar nas estantes segregadas e impostas legalmente? Quais escritores restam tão desesperados por mínima visibilidade que aceitam ser espremidos entre manuais técnicos e livros sobre Suape?
Será que os legisladores pernambucanos não deveriam ter se preocupado mais em fomentar os diversos setores da cadeia do livro, em ampliar e diversificar os eventos literários, em planejar e reforçar políticas editoriais, em criar mecanismos convencionais e mais eficientes de divulgação dos escritores da terra? Em resumo: será que não deveriam tornar a literatura feita por gente do Estado (e radicados) mais forte e universal, ao invés de vesti-la de exotismo e provincianismo.
A situação é tão absurda que, para tentar reduzir os danos causados pela legislação, alguns donos, gerentes ou sensatos funcionários de livrarias optam por manter como antes os autores pernambucanos renomados. Ou seja, decidem preservá-los na área de literatura brasileira, salvos do ostracismo e da humilhação de serem amontoados nesses puxadinhos. O que, na prática, torna ainda mais sensível à distância entre os escritores desconhecidos e os já consagrados, mesmo se considerarmos somente o tal quadradinho da “literatura pernambucana”.
Confesso que, hoje, meu receio não é lançar um livro e não ser lido. Esse risco faz parte, seja por motivos de mérito ou de desigualdades inerentes ao mercado editorial – algo que deve sim ser discutido, mas de maneira equilibrada e por quem entenda do assunto. Meu temor mesmo é me tornar um desses autores cotistas, rotulado e jogado no puxadinho dos escritores pernambucanos. Meu medo é que, diferente daquilo que a literatura poderia me proporcionar – transcendência – ela seja embarcação que me imponha tarja, discriminação, limitação.
Indo além, meu pavor é que minha literatura (que ainda resta paciente nas gavetas) seja vítima dos burocratas que pensam agir em prol da cultura local, embora estejam mais para gestores de uma cultura provincial. Vítima dessa gente que, sob as melhores intenções (ou não), pensa ser possível sair da marginalidade mergulhando em localismo e exotismo. Eles são como convidados atrasados para uma festa, e que, para economizar o tempo da caminhada, resolvem pegar um ônibus, mas sobem no veículo errado, que parte justamente na direção contrária.
Subir nesse coletivo, que terrível privilégio! O horror, o horror.