Uma recente pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmou um sério problema do País. O Nordeste tem a maior taxa de analfabetismo do Brasil, com 14,8% do total. Outras regiões, como Sul e Sudeste, alcançam números cerca de quatro vezes menores, com 3,8% e 3,6%, respectivamente. Essa dificuldade no ato de alfabetizar crianças se faz presente no Recife, capital de Pernambuco.
O reflexo do déficit no aprendizado pode ser conferido em números. De acordo com o último Censo do IBGE, divulgado em 2010, 7,13% da população recifense com 15 anos ou mais não sabia ler, nem escrever. Na faixa etária dos idosos, acima de 60 anos, esse montante ultrapassa o dobro e aterriza em 16,33%. Mas, muito além dos números, a ideia de obstáculos para desenvolver o estudo na primeira escola está nos empecilhos do dia a dia.
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A professora Rebeca Simões fez o antigo magistério - capacitação em que o estudante adquiria para sair do ensino médio podendo dar aula -, graduou-se em licenciatura em letras e continua se especializando para estar sempre capacitada a ensinar seus alunos da educação infantil. As 20 crianças que ocupam a última sala, e a mais quente de todas, da Escola Municipal Professor Josué de Castro, localizada na Ilha de Joana Bezerra, área central da cidade, têm algo em comum: os desafios enfrentados para conseguir aprender a ler e escrever.
Os pequenos fazem parte do Grupo V, composto por alunos de cinco anos. “As pessoas confundem muito o papel da educação infantil, mas as crianças passam dois anos aqui para aprenderem uma base; saber que as letras são para ler, os números para contar, saber que existem sílabas”, explica Rebeca. Os dois anos citados pela docente são referentes, além do Grupo V, ao Grupo IV -onde estudam crianças de quatro anos -, ambos integrantes da pré-escola.
O único ventilador que funciona no espaço é o que refresca os pequenos do calor intenso característico da região Nordeste. No dia em que a reportagem do LeiaJá foi à sala de aula onde as crianças estudam, os termômetros alcançavam a marca de 26º C. O telhado, composto por telhas metálicas, causava a sensação de uma temperatura ainda maior. Quando o ventilador precisou ser desligado, o pequeno espaço materializou o motivo do apelido citado uma vez pela professora, o de “forninho”.
E essa também é uma realidade do dia a dia das crianças que têm aulas naquele ambiente. “Nós fazemos muitos trabalhos de colagem e de cortar papéis. Para isso, preciso desligar os ventiladores e fica um calor insuportável. Agora imagine umas crianças de cinco anos no calor, como elas ficam!”, narra a professora Rebeca Simões. Segundo a docente, a falta de estrutura é decisiva para o déficit no processo de aprendizagem, pois os alunos passam a apresentar dificuldade de concentração.
Além do calor, os alunos também têm que lidar com as adversidades sociais. “Tudo pode atrapalhar para o aprendizado. Até uma unha grande afeta isso. Um dia, peguei um aluno que disse pra mim: ‘tia, eu não tô conseguindo segurar o lápis por conta da minha unha que minha mãe não cortou”, conta a professora Rebeca.
Embora as adversidades sejam obstáculos, a docente não permite fragilizar a alfabetização das crianças. “Eu não posso enxergar isso [o contexto social das criança] como um problema, mas como uma forma de adaptar essa criança à aula. Chegam alunos aqui sem tomar café, e criança com fome não aprende, sem tomar um banho, com a farda suja da semana anterior. Essa é a realidade delas, e eu vou excluí-las do processo de aprendizado? Não, eu vou agregá-las de acordo com suas realidades”, opina.
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E, segundo Rebeca Simões, “matar um leão por dia” é um processo cuja responsabilidade vai além da alçada do professor. “Se o diretor ou gestor não sabe o que acontece na sala de aula, como se dá o trabalho, ele não vai saber a importância de quando falta uma cola, um papel, de quando acaba o toner”, explica.
Embora a estrutura física seja um problema sério, o que mais falta aos alunos, de acordo com a professora, é o capital humano. “Não é fácil organizar tudo. Aqui, nos falta uma coordenação pedagógica que possa ajudar. Se eu tenho a ideia de fazer uma atividade lá fora, eu tenho que ir lá e preparar tudo e deixá-los na sala. Quando eu volto, já estou pingando de suor. Se tivéssemos um apoio, a coordenação pedagógica iria lá, preparar e só viria buscar a professora e os alunos”, explica.
Se por um lado os múltiplos papéis que a professora Rebeca Simões desempenha na sala de aula geram cansaço, por outro não são suficientes para que ela não dê seu melhor. Sendo a única pessoa a cuidar de 20 crianças durante toda uma manhã, ao final do dia ela está exausta. “Mas mesmo assim preparo todas as atividades a desempenhar com os alunos em sala de aula”, explica.
A docente ainda aponta para a diferença de comportamento que alguns dos seus estudantes apresentaram desde que se tornaram seus alunos. “Tinha um menino aqui que me mordia, cuspia em mim, mas quando a mãe vinha buscar, se agarrava em mim e dizia que amanhã estaria aqui de novo comigo”, relembra Rebeca.
Enquanto o método de alfabetização aplicado em diversas escolas é composta apenas por alunos copiando letras do quadro, Rebeca desenvolveu um processo muito mais lúdico. “Nós lemos livros, ouvimos músicas. Eles sabem ler as figuras, identificam as letras e escrevem o nome deles”, diz.
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Reflexos para a vida
Uma das preocupações da docente é até quando existirá vontade da criança em estar na escola. “Eu tenho um aluno que está comigo há dois anos e ainda não sabe escrever o nome dele. E ele tem acesso ao que todos têm. O que acontece com uma criança assim? Ela vai avançando, avançando, porque ela tem até três anos para aprender, mas após isso, caso não aprenda, há duas possibilidades: ou ele será reprovado ou ele desiste da escola”, conta Rebeca.
Os três anos pontuados pela docente são referentes às primeiras séries do ensino fundamental. A pré-escola é uma base de aprendizado, segundo a rede municipal de ensino, onde o estudante irá ter noções de sílabas, letras, números. A alfabetização efetiva acontece nos primeiro, segundo e terceiro anos do fundamental.
Gestão
O Centro de Formação de Educadores Professor Paulo Freire, localizado no bairro da Madalena, Zona Oeste do Recife, é o local onde os docentes da rede municipal de ensino têm acesso a capacitações e aprendizados. O espaço comporta salas de aula, auditórios e ambiente de convivência que fazem parte do processo de acolhimento do docente ao local. Lá, eles têm acesso a diversas capacitações que reciclam e resgatam o conhecimento.
Diretor executivo de gestão pedagógica do centro, Rogério Morais indica que as dificuldades passadas pelo aluno até alcançar a boa alfabetização estão dadas em dois processos. O primeira tem a ver com os obstáculos naturais por ser o início do processo da educação. Já o segundo se refere aos métodos de ensino, já que a pedagogia construtivista adotada pelo município perdeu força com o passar dos anos, segundo Rogério. “A forma de ensinar influencia diretamente a possibilidade e eficácia do aprendizado por parte do estudante”, afirma.
“Os resultados não são bons”
O diretor do Centro de Formação de Educadores Professor Paulo Freire ainda aponta que os resultados das pesquisas que avaliam o desenvolvimento da educação recifense não apresentam pontos favoráveis. “A gente vem evoluindo, mas os resultados não são bons”, confessa Rogério Morais.
Segundo ele, o processo de enfraquecimento educacional se dá por conta do atraso que a capital pernambucana passava. “Se pensarmos há cinco anos, o resultado era bem pior. A gente está satisfeito com a velocidade de avanço, mas hoje, como a gente estava muito atrás, os resultados continuam muito baixos”, explica Morais.
De acordo com o diretor, os resultados do Sistema de Avaliação Educacional de Pernambuco (Saepe) apontam que metade dos alunos do quinto ano do ensino fundamental aprendeu o quantidade adequada de língua portuguesa. Quando a relação é feita com nono ano, essa quantidade cai para apenas um terço. “É claro que esse resultado nos incomoda, é importante que nos incomode”.
Professor afetado
“O professor não consegue fazer um planejamento porque enquanto ele deveria fazer, ele trabalha em três ou quatro turnos”, aponta a professora de linguagens do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ana Cláudia Rodrigues. A docente afirma que o processo de dificuldade de aprendizado se dá por conta da sobrecarga aferida ao professor, além dos problemas estruturais. “As salas não têm estrutura física e ainda há a excessiva burocratização”, explica.
Segundo ela, as decisões tomadas deveriam ser em favor dos estudantes. “O que temos observado ao longo do tempo é que precisamos ampliar a alfabetização plena, aquela que a criança domina o sistema de escrita e faça uso da leitura e da própria escrita. É um direito da criança a alfabetização e ele tem que ser garantido”, ressalta Rodrigues.
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