A maior operação anticorrupção da história do Brasil, a Lava Jato, foi tema de artigo lançado ao caderno internacional do jornal francês Le Monde Politique neste domingo (11). Assinado por Nicolas Bourcier e Gaspard Estrada e publicado originalmente em francês na sexta-feira (9), o texto fala sobre os escândalos envolvendo a gigante do petróleo Petrobras e construtoras, e como os Estados Unidos se beneficiaram da “podridão que assola o Estado brasileiro”, nas palavras dos autores. No trecho de apresentação, Bourcier e Estrada falam que a “Lava Jato serviu a muitos interesses, mas não à democracia”.
Na proposta dos jornalistas, se entenderia a participação do vizinho norte-americano como uma “intervenção” que quis minar a autonomia geopolítica do Brasil e estabelecer relações privilegiadas aos agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ).
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As informações do Le Monde foram colhidas por cerca de sete meses de investigação, o jornal tendo conseguido, inclusive, contatar ex-associados ao governo de Barack Obama, que afirmaram o interesse estadunidense em participar da operação.
Esse histórico teria sido resgatado ainda no governo Bush, por volta de 2007, quando os EUA enfrentaram problemas diplomáticos com o Brasil na questão no combate ao terrorismo. À época, o Itamaraty não fez parte do plano do ex-presidente americano. Também no mesmo período, para amenizar as tensões, a embaixada dos EUA no Brasil apostou em um comitê de especialistas locais para estreitar o interesse no antigo vilão da terra do Uncle Sam.
Em 2007, Sérgio Moro, ex-juiz da Lava Jato, foi convidado a participar de um encontro, financiado pelo departamento de estado dos EUA, seu órgão de relações exteriores. O convite foi aceito. Na ocasião, fez contato com diversos representantes do FBI, do DOJ e do próprio Departamento de Estado dos EUA.
“É verdade que no mundo da cooperação judiciária internacional a luta contra a corrupção, o branqueamento de capitais e o terrorismo ocupa um lugar especial. Após os ataques de 11 de setembro, os Estados Unidos estão procurando por todos os meios neutralizar ataques futuros, principalmente visando as redes financeiras dessas organizações. No entanto, no Brasil, a inteligência dos EUA está preocupada com a presença de possíveis unidades do Hezbollah, a organização apoiada pelo Irã que há muito está na lista negra dos EUA, na tríplice fronteira entre Argentina, Paraguai e Brasil”, continuam, na seção que destaca o “medo do terrorismo”, como herança da lógica de George Bush.
O texto menciona ainda Karina Moreno-Taxman, procuradora especializada no combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo, escolhida para se alinhar ao judiciário brasileiro no cargo de “assessora jurídica residente”, cargo antes inexistente e criado pela embaixada dos EUA. Taxman, desde 2008, desenvolve um programa denominado “Projeto Pontes” que, a fim de apoiar as necessidades das autoridades judiciárias brasileiras, organiza sessões de formação que lhes permitem apropriar-se dos métodos de trabalho americanos (grupos de trabalho anticorrupção), sua doutrina jurídica (pechinchas, em particular), bem como sua disposição para compartilhar informações “informalmente” , ou seja, fora dos tratados bilaterais de cooperação judiciária.
Em 2009, dois anos depois, Moreno-Taxman foi convidada a falar na conferência anual dos agentes da Polícia Federal brasileira, em Fortaleza. Diante de mais de 500 profissionais, a norte-americana ensinou os brasileiros a fazer o que os EUA queriam: "Em casos de corrupção, é preciso ir atrás do 'rei' de maneira sistemática e constante, para derrubá-lo."
"Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é preciso que o povo odeie essa pessoa", afirmou depois, sendo mais explícita. "A sociedade deve sentir que ele realmente abusou de seu cargo e exigir sua condenação", completou, para não deixar dúvidas. Presidente à época, Lula não foi mencionado, mas era o centro dos interesses, bem no período em que estouraram os escândalos do mensalão. No entanto, o Partido dos Trabalhadores não havia reconhecido a presença de agentes americanos como uma ameaça. As autoridades estrangeiras, com destaque para um grupo anticorrupção da OCDE, amplamente influenciado pelos EUA, começaram a pressionar o país por leis mais duras de combate à corrupção.
Sergio Moro, porém, foi nomeado, no início de 2012, juiz adjunto de Rosa Weber, recém-nomeada ministra do Supremo Tribunal Federal. Esta última, especialista em direito do trabalho, queria ter um perito em direito penal para auxiliá-la no julgamento final do “Mensalão” .
“A marcha começou em 2013. Os parlamentares brasileiros, que debatiam o projeto de lei anticorrupção há três anos, decidem votar em meados de abril. Para parecerem bem perante o grupo de trabalho da OCDE, eles incluem a maioria dos mecanismos previstos em uma lei norte-americana, que está começando a ser falada no meio empresarial europeu: a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA)”, diz o artigo. A lei mencionada foi criada na operação Watergate, durante a Guerra Fria.
Ou seja, o aparato permite que os EUA investiguem e punam fatos ocorridos em outros países. Para especialistas, é instrumento de exercício de poder econômico e político dos norte-americanos no mundo. Dilma Rousseff, ex-presidenta, acabou sancionando a lei e permitindo a chegada de agentes americanos para “instruir” o magistrado brasileiro quanto à aplicação da FCPA.
Em 29 de janeiro de 2014, a lei entrou em vigor. Em 17 de março, o procurador-geral da República da época, Rodrigo Janot, chancelou a criação da "força-tarefa" da "lava jato". A lei eventualmente mostrou-se parte de um interesse dos Estados Unidos quanto à proteção interna.
“No mesmo momento, a administração de Barack Obama nos EUA dava mostras de seu trabalho para ampliar a aplicação do FCPA e aumentar a jurisdição dos EUA no mundo. Leslie Caldwell, procuradora-adjunta do DOJ, afirmou em uma palestra em novembro de 2014: ‘A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que nós prestamos à comunidade internacional, mas sim uma medida de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses em questões de segurança nacional e o das nossas empresas, para que sejam competitivas globalmente’.", esclarece o Le Monde.
Segundo o artigo, o que mais preocupava os EUA era a autonomia da política externa brasileira e a ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América do Sul e na África, para onde as empreiteiras brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS começavam a expandir seus negócios.
Crise no governo Dilma em 2015
“Com sua maioria parlamentar derretendo como neve diante do crescente número de casos de corrupção”, Dilma convida Lula para ingressar no governo. Um movimento visto como uma última tentativa de salvar sua coalizão. Ao mesmo tempo, membros da Polícia Federal, por ordem dos promotores, grampearam - fora de qualquer marco legal - os telefones dos advogados de Lula (vinte e cinco defensores ao todo), assim como o celular do próprio ex-presidente. Sergio Moro obterá assim uma conversa entre este e Dilma Rousseff. Uma troca de palavras sibilinas sobre o futuro de Lula, que o magistrado prontamente encaminhou à Rede Globo e que selou o impeachment do presidente poucos meses depois.
Leslie Backshies, chefe da unidade internacional do FBI é encarregada, a partir de 2014, de ajudar a lava jato no país. Ela afirmou que "os agentes devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, de como casos de corrupção internacional podem ter efeitos importantes e influenciar as eleições e cenário econômico".
É, portanto, com pleno conhecimento dos fatos que estes últimos encerram sua denúncia contra a Odebrecht nos Estados Unidos. No entanto, os proprietários do grupo relutam em assinar o acordo de “colaboração” proposto pelas autoridades norte-americanas, que inclui o reconhecimento de atos de corrupção não só no Brasil, mas em todos os países onde esta gigante da construção está instalada.
"Quando Lula foi condenado por 'corrupção passiva e lavagem de dinheiro', em 12 de julho de 2017, poucos relatos jornalísticos explicaram que a condenação teve base em 'fatos indeterminados'", destacou o jornal. Após condenar Lula e torná-lo inelegível para 2018, Moro alia-se a Bolsonaro como um braço direito, ídolo anticorrupção e novo ministro da Justiça.
Enquanto isso, os norte-americanos puderam se gabar de pôr fim aos esquemas de corrupção da Petrobras e da Odebrecht, junto com a capacidade de influência e projeção político-econômica brasileiras na América Latina e na África. Os procuradores da "lava jato" ficaram com o prêmio de administrar parte da multa imposta pelos EUA à Petrobras e à Odebrecht, na forma de fundações de Direito privado dirigida por eles próprios em parceria com a Transparência Internacional.
A imprensa internacional não demorará a se distanciar da estrela curitibana. Passou a enfatizar sua inconsistência ética em formar aliança com um presidente de extrema direita, que durante décadas havia pertencido a um partido obscuro, conhecido sobretudo por ter se envolvido em inúmeros casos de corrupção. A popularidade de Moro vai se desfazendo e é em 2019 que uma reportagem do The Intercept revela 43,8 gigabytes de dados de conversas privadas, via Telegram, da equipe “Lava Jato”.
Nelas, Moro parece orientar os procuradores, e como estes últimos informaram os EUA e a Suíça sobre as investigações e combinaram a divisão do dinheiro. Depois de pedir demissão do Ministério, Moro seguiu o mesmo caminho de outros ex-agentes do DOJ e passou a trabalhar para o setor privado, valendo-se de seu conhecimento privilegiado sobre o sistema judiciário brasileiro em casos célebres para emitir consultorias, um posto normalmente bastante lucrativo. A Alvarez e Marsal, que o contratou, é administradora da recuperação judicial da Odebrecht.