Depois de ser palco de episódios de assédio sexual e discriminação que se tornaram públicos, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) organizou uma cartilha comportamental que define a conduta adequada no ambiente de trabalho. Uma dessas recomendações é que beijos e abraços sejam evitados.
"Um abraço e um beijo no rosto não são vistos como um problema para uma parte das pessoas. Já para outras, podem soar como extremamente invasivos e ofensivos. Na dúvida, não abrace e não beije. Estenda a mão em um cumprimento cordial, que é um gesto simples, inofensivo e demonstra educação", diz o documento. A cartilha vai ser lançada nesta quinta-feira, 21.
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É a primeira vez que a Alesp tem uma iniciativa do gênero. Além dos casos de assédio sexual e discriminação racial, o documento explica o que são comportamentos gordofóbicos, etaristas, capacitistas, o que é cyberbullying e outros tipos de assédio, como o moral.
O texto destaca que "o respeito por todas as pessoas em todas as situações é fundamental" e cita que "a boa convivência tem limites, exigindo cautela com as brincadeiras".
A cartilha estabelece um protocolo para atendimento de vítimas e elenca quais são os canais de denúncia possíveis. Para os pontos citados no documento, a Assembleia diz ainda que criou um espaço exclusivo para queixas, com sigilo garantido.
Porém, alerta que a denúncia deve apresentar o "autor da irregularidade, a descrição verídica dos fatos e a indicação de provas ou testemunhas", e declarações "infundadas ou não comprovadas poderão caracterizar denunciação caluniosa e estarão sujeitas às sanções previstas em lei".
'Compliance' da Assembleia
Um dos casos que acelerou o processo de construção dessa cartilha é o da deputada Thainara Faria (PT). No dia 31 de março, ela subiu aos prantos na tribuna da Alesp para relatar um episódio de racismo que sofreu. Naquele dia, uma servidora da Casa impediu a parlamentar de assinar o livro de presença porque era "só para deputados".
Thainara Faria estava usando um broche exclusivo para parlamentares e mostrou que todos os servidores receberam as fotos dos novos deputados. Ela também disse que, no dia da cerimônia de posse, uma servidora e uma policial a barraram na entrada da Assembleia por não acreditarem que ela é deputada.
Se a cartilha já existisse naquela época, Faria crê que os episódios de racismo de que foi vítima "não teriam acontecido, porque os funcionários estariam mais orientados". "Se a Casa fosse mais progressista, teríamos uma cartilha mais robusta. Mas dadas as condições objetivas, foi o melhor que pudemos fazer. É um excelente início", disse a deputada, em referência ao novo documento.
Dias depois do episódio, o presidente da Alesp, André do Prado (PL), disse ao Estadão que a ideia era organizar um "compliance da mulher" na Casa. A palavra, de origem inglesa, é uma prática empresarial de fiscalização e cumprimento de boas condutas no ambiente de trabalho - o que vai desde prevenir corrupção até casos de assédio e racismo. A reportagem procurou o deputado nesta quarta-feira, 20, mas ele disse que comentará sobre a cartilha depois do lançamento.
A cientista política Mayra Goulart, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que há "diferentes episódios que demonstram que não há o que possamos chamar de 'consenso pleno' sobre o que é discriminação, racismo, machismo". Para ela, medidas como a cartilha servem para "conscientizar e reforçar a objetividade dos limites".
Ao colocar no papel, em detalhes, o que são comportamentos não aceitos, eles deixam de ser subjetivos, saindo do crivo dos "achismos". Mesmo diante do fato de muitos desses comportamentos já serem crimes, Goulart diz que não existe uma concorrência. "A cartilha e a penalização se reforçam mutuamente. A regulamentação de práticas de convívio no ambiente de trabalho reforça o que já deveria ser um consenso."
Caso Isa Penna
O caso de assédio com maior repercussão envolvendo a Alesp é o da ex-deputada Isa Penna (PCdoB). No dia 16 de dezembro, durante uma sessão da Casa, transmitida ao vivo pelo YouTube, o ex-deputado Fernando Cury a abordou pelas costas e apalpou seus seios, enquanto Penna conversava com o ex-presidente da Assembleia.
Cury foi expulso do Cidadania, sigla à qual era filiado na época, e a Alesp o suspendeu por seis meses das atividades da Casa, período durante o qual ficou sem receber salário. O episódio também rendeu um processo criminal contra o ex-deputado.
Procurada pelo Estadão, Penna diz que a cartilha é "um avanço da luta contra as opressões". "Eu acredito que não seja tanto pela cartilha em si, mas pela luta social, que teve como consequência o reconhecimento, pela instituição legislativa, de que o assédio é um problema e de que ele existe enquanto um problema", disse a ex-deputada.
A advogada Aline Santiago da Cruz, coordenadora Comissão da Igualdade Racial da OAB São Paulo, diz que falta a conscientização e interpretação da lei quando se fala em casos de discriminação racial e assédio. "Existe tolerância e banalização dessas práticas, apesar de serem ilícitas. A cartilha tem maior alcance, objetividade e facilita a compreensão do leitor (não jurista). Consequentemente, encoraja a denúncia, além de fomentar a prevenção", afirmou a coordenadora.
Cassado por unanimidade
Outro episódio de grande repercussão ocorreu há cerca de um ano e meio, envolvendo o ex-parlamentar Arthur do Val (União Brasil), conhecido nas redes sociais como "Mamãe Falei".
Em maio de 2022, a Alesp cassou o mandato dele por ter dito que as mulheres ucranianas vítimas da guerra "são fáceis porque são pobres". A declaração foi feita por meio de um áudio enviado a um grupo de WhatsApp enquanto Do Val representava o Movimento Brasil Livre (MBL) na Ucrânia. A cassação foi aprovada por unanimidade.