O Ministério Público de São Paulo investiga a suspeita de crimes contra a vida por suposta adoção indevida do tratamento paliativo em pacientes de Covid-19 nos hospitais da Prevent Senior. Promotores afirmam que identificaram pelo menos duas situações em que pessoas com chance de sobreviver foram encaminhadas à modalidade de tratamento paliativo, que é destinado somente a pacientes em estado terminal, e envolve o encerramento da administração de medicamentos que podem reverter a enfermidade.
A Promotoria também apura as circunstâncias das mortes de nove pessoas submetidas a um estudo realizado pela operadora com o uso de hidroxicloroquina - medicamento sem eficácia comprovada defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Entre amanhã e o fim da próxima semana, o MP vai ouvir 12 paciente e familiares. Quebras de sigilo telefônico da cúpula da operadora serão analisadas.
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Um dos casos suspeitos de uso indevido do tratamento paliativo é o do advogado Tadeu Francisco de Andrade, de 65 anos, que foi internado por 120 dias em um hospital da rede, em São Paulo. Ele foi inicialmente tratado com o "kit covid", recomendado pelo governo federal, que inclui a hidroxicloroquina, a ivermectina e a azitromicina.
Andrade entregou ao Ministério Público um prontuário assinado por uma médica que chegou a orientar a suspensão de medicamentos à época em que estava internado, com o objetivo de encaminhá-lo ao paliativo. A família do advogado não assentiu. Andrade se recuperou e sobreviveu. Familiares denunciaram que a orientação da médica serviria para que a operadora cortasse gastos com o tratamento de pacientes, segundo reportagem da TV Globo.
O caso do advogado também foi debatido na CPI da Covid no Senado no dia 28 do mês passado, data do depoimento da advogada Bruna Morato, que representa médicos que apresentaram um dossiê no qual acusam a operadora de usar pacientes como "cobaias" do "tratamento precoce". Na sessão, foi exibido um áudio de uma conversa entre a filha de Andrade e uma médica da rede. Na gravação, a filha recusa a sugestão de interromper medicamentos.
O episódio é tratado como uma possível tentativa de homicídio, segundo o Ministério Público. O outro caso sob investigação da força-tarefa do Ministério Público paulista é sobre um paciente que morreu em meio ao tratamento paliativo. Promotores vão apurar se ele teria chance de sobreviver. O episódio pode levar os responsáveis a júri popular pela acusação de homicídio.
"Se mandou para o paliativo uma pessoa com chance de cura, eu diria que é no mínimo um dolo eventual. Assumir o risco de a pessoa morrer. Porque não tem condição, a pessoa ter chance de cura e mandar para o paliativo, é criminoso?", afirmou ao Estadão o promotor de Justiça criminal Everton Zanella.
Pesquisa
São vistos ainda como possíveis crimes contra a vida pelos promotores os nove óbitos de pacientes que foram submetidos a uma pesquisa com o uso de medicamentos com hidroxicloroquina. Esta é a pesquisa que foi defendida por Bolsonaro, em abril de 2020, em post nas redes sociais. O estudo também foi apoiado pelos filhos do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), na mesma época.
No dossiê entregue pelos ex-médicos da operadora à CPI da Covid do Senado, consta que, apesar de o estudo mencionar que apenas duas pessoas morreram em razão do tratamento, teriam sido, na verdade, nove óbitos. Os senadores ainda apuram se a relação entre o presidente e seus apoiadores com a Prevent Senior teria influenciado no tratamento com remédios sem eficácia comprovada.
Na última segunda-feira (4), o procurador-geral de Justiça, Mário Sarrubbo, requereu ao Senado o compartilhamento das apurações da CPI da Covid com a Promotoria. Entre as informações requeridas estão os prontuários dos pacientes que foram submetidos ao estudo. Os investigadores querem comparar os números de notificação oficial de casos de covid e os atestados de óbito nas dependências de unidades da Prevent Senior.
Até o fim da semana que vem, mais de dez vítimas e familiares de mortos vão prestar depoimento aos promotores. O Estadão apurou que a Polícia Civil aguarda a chegada de dados da quebra de sigilo telefônico de 13 integrantes da cúpula da Prevent Senior. Eles querem entender, por exemplo, se eles tinham contato direto com os médicos que denunciaram a operadora no dossiê. A investigação corre no Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil de São Paulo.
Omissão
Em entrevista ao Estadão, publicada anteontem, Sarrubbo afirmou que a cúpula da Prevent Senior ainda pode ser responsabilizada pelos crimes de falsidade ideológica e omissão de notificação de doença obrigatória.
Dois casos conhecidos de incongruências entre as informações da operadora e os atestados de óbito foram revelados pela CPI. Um deles é o de Regina Hang, mãe do empresário bolsonarista Luciano Hang. Ela morreu no início de fevereiro, um mês após a internação, e recebeu o tratamento com o "kit Covid". No atestado de óbito, a covid-19 não é mencionada como causa da morte. O próprio filho divulgou que a doença levou Regina ao falecimento.
Em depoimento à CPI na semana passada, o empresário atribuiu a omissão a um "erro" do médico plantonista. O outro caso é o do médico Anthony Wong, defensor do "tratamento precoce", que morreu em janeiro. Em seu atestado de óbito, não há menções à Covid-19. Ele recebeu o "kit Covid". Ambos os casos são investigados em inquérito do 77.º Distrito Policial da Polícia Civil de SP.
Em nota, a Prevent Senior afirmou que vai prestar "todos os esclarecimentos ao Ministério Público" e disse que "confia" nas investigações. A operadora alega, ainda, que é alvo de "denúncias infundadas no âmbito da CPI da Covid."