O projeto de Transposição do rio São Francisco tem dois eixos, o Norte, em fase de conclusão, com 260 quilômetros, e o Leste, com 217 quilômetros, que foi inaugurado na sexta-feira (10). O projeto basicamente prevê a captação e o transporte da água do rio com o uso de canais de concreto, galerias subterrâneas, bombeamento hidráulico e a criação de reservatórios, de forma a garantir o abastecimento de rios e açudes nas áreas mais secas do Nordeste.
A obra foi iniciada em 2007, no governo de Luís Inácio Lula da Silva, sob forte oposição, especialmente de ambientalistas. A previsão inicial é que seria concluída em três anos, em 2010, ao custo de R$ 6,6 bilhões.
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Consórcios com grandes construtoras, como OAS, Mendes Júnior e Galvão Engenharia eram responsáveis pela obra. Em 2013, porém, foram substituídas sem que tivessem concluído os trabalhos. Até agora, o projeto já consumiu quase R$ 10 bilhões. A previsão é que o trecho Norte seja entregue até o fim deste ano.
A água chegando
No semiárido dos Estados de Pernambuco e Paraíba, região consumida pela seca há seis anos, a grande atração tem sido a água. Mais especificamente, a água que, desde a virada do ano, foi preenchendo os 217 quilômetros do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco. Ela sai da represa da Usina de Itaparica, formada pelo Rio São Francisco, na divisa da Bahia, atravessa quatro municípios de Pernambuco - Floresta, Betânia, Custódia e Sertânia - até desembocar na cidade de Monteiro, na Paraíba.
À medida que a água avançou, primeiro na beira de povoados, depois nas cidades maiores, foi recebida com deslumbramento. Famílias inteiras vestem roupas de banho e mergulham nas represas da Transposição. Os mais audaciosos se jogam no canal, mesmo sem ter noção da profundidade. O gesto mais trivial por lá é tirar selfie com a água.
"A gente faz a foto para registrar e acreditar que não estamos imaginando: olha aí, a água do Chico chegou. Depois de séculos, mas chegou", diz Rafael Barbosa dos Santos, 26 anos, desempregado, que junto de uma amiga, a técnica de enfermagem Raquel Simplício dos Santos, 31 anos, se autofotografava, quinta-feira passada, no final da Transposição, em Monteiro.
Lazer
No último mês, não faltaram episódios para ilustrar o surto de euforia. No município de Floresta, dois nadadores morreram afogados. Em Sertânia, os banhistas ocupam as represas, sem a menor cerimônia, desde o carnaval. "É impressionante, no domingo, vira o piscinão, a prainha de uma quantidade absurda de pessoas", diz a comerciante Iranuedja Moreira de Aquino, 42 anos, que se espantou quando foi ver com os próprios olhos a aglomeração. Seu marido, Paulo Cesar Santana, 50 anos, tem uma justificativa para o descontrole coletivo. "Quando a gente, que vive na estiagem, vê uma represa cheia, se sente como ganhador da Mega-Sena, não qualquer Mega-Sena, a da virada."
Há uma semana, a água ensaiou uma tragédia. O reservatório Barreiro, em Sertânia, se rompeu. A força da água foi tão violenta que abriu uma cratera na pista da rodovia quilômetros à frente. As causas estão sendo apuradas, mas quem mora no entorno conta que o reservatório encheu rápido demais. Na véspera do acidente, dava a impressão de que iria transbordar.
O auge do encantamento ocorreu na sexta-feira passada, em Monteiro, na cerimônia de inauguração do Eixo Leste. A cidade já estava mobilizada pela manhã. O casal Aldo Lídio e Luciana Ferreira levou os filhos Abraão, de 10 anos, e Sara, 4, para a borda da Transposição. "Queremos participar desse momento histórico", disse Aldo. E foi de tirar o fôlego. Um jorro de água eclodiu da Transposição e promoveu o milagre da engenharia hidráulica: o leito estorricado do rio Paraíba, vazio há seis anos, foi inundado em minutos. Tornou-se tão caudaloso que ninguém na multidão, assombrada com o feito, teve coragem de mergulhar. O rio Paraíba é estratégico. Alimenta os principais açudes do Estado e cheio vai tirar centenas de municípios do racionamento.
Deserto
O entorno do Eixo Leste da Transposição é desolador. São centenas de quilômetros de desertos, preenchidos por arbustos retorcidos, terra ocre, rios secos e rebanhos de cabras magras. As poucas manchas verdes são plantações de palma, tipo de cacto que alimenta o gado. A região sempre foi pouco desenvolvida, já que agricultura, indústria e urbanização só prosperam com garantia de água. E a prolongada estiagem fez dessa carestia uma rotina insustentável para os padrões de vida no século 21.
Luiza Aurélia da Silva, 68 anos, moradora do assentamento Serra Negra, em Floresta, passou a infância buscando água em lata, na cabeça e em lombo de burro. Saía ao amanhecer e voltava na hora do almoço. Hoje, as 64 famílias do assentamento são abastecidas por um poço, de água salobra, e por carros pipas da prefeitura. Parte da comida vinha do cultivo de feijão e milho. "Como não chove, todo ano a gente planta e todo ano perde quase tudo", diz Luiza.
Mas quis Deus, diz ela, que a Transposição passasse do lado do assentamento. A sua casa está a poucos metros do canal. A expectativa por lá é que haverá irrigação para o plantio de culturas comerciais, como a melancia, viabilizando uma vida nova. "Um hectare irrigado vale mais do que 10 secos. Meu tempo passou, mas meus filhos e netos poderão ter uma vida melhor", diz Luiza.
A falta de água, porém, não é problema apenas de comunidades pobres e isoladas. Entre os moradores do semiárido não se fala outra coisa: que o governo acelerou a conclusão da Transposição Leste para evitar o colapso no abastecimento do polo econômico de Campina Grande e mais 18 cidades. Na área vivem 800 mil habitantes. Todos dependem do açude Epitácio Pessoa, conhecido como Boqueirão. Hoje, ele está no volume morto, com 3% de água.
O garçom José Gonçalves, 67 anos, lembra que até Juscelino Kubitschek inaugurar o Boqueirão, nos anos 50, os moradores de Campina Grande tiravam água de um chafariz. Gonçalves recorda que ele mesmo carregava galões. Com o crescimento da cidade, aquilo parecia ter ficado para trás. Há um ano, o desabastecimento voltou: ele teve de reequipar a casa com uma caixa dágua adicional e baldes de 100 litros, além de manter um estoque com 12 galões de 20 litros água mineral para fazer comida. "Agora, só o rio São Francisco nos salva", diz ele.
O ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho, nega que o cronograma de obras foi acelerado para atender a uma única cidade, mas confirma que Campina Grande havia se tornado preocupação. "A informação é que em setembro a água vai acabar, mas como o volume morto já é uma reserva comprometida, a cidade poderia ficar sem água a qualquer momento", diz. Barbalho lembra que a Transposição é apenas um ponto de partida. Várias obras adicionais, como o Ramal do Agreste e o Ramal Juá, estão em andamento para criar, enfim, uma rede segura de abastecimento contra a estiagem.
Apreensão. Como isso depende de obras adicionais, de saneamento e encanamento, os moradores da região ainda estão preocupados. "Nossa pergunta agora é: quando a água do São Francisco chega às torneiras?", pergunta a comerciante Gilvanete Pires, de 53 anos, proprietária de um café em Monteiro. Para fazer a limpeza do estabelecimento, gasta, por semana, mais de R$ 300 em água de carro-pipa. Também precisa desembolsar R$ 50 com tambores de água mineral para preparar as refeições que serve na hora do almoço. Todos os meses, recebe a conta de água, apesar de não receber uma gota. São mais de R$ 200 por mês.
O agricultor José Severino da Silva Irmão, o Zequinha, tem a mesma preocupação. Em um sítio da família, em Sertânia, ele cria um bezerro, duas vacas, três bois, seis cachorros e 17 jumentos, que recolheu na estrada porque ninguém mais os quer. Hoje, ele busca água no vizinho e colhe mandacaru para engrossar a ração. No entanto, se a Transposição regularizar o abastecimento dos açudes, a água deixará de ser problema e ele poderá garantir uma alimentação melhor para os animais e ampliar o rebanho. "Por ora, a única coisa que a Transposição nos dá é alegria - alegria de ver a belezura da água."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.