O Brasil é o país com maior índice de depressão da América Latina, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Aproximadamente 6% dos brasileiros sofrem com a doença, sendo 7,7% das mulheres e 3,6% dos homens. Este é um dos pontos mais discutidos no Setembro Amarelo, mês da prevenção do suicídio, com comunicados que incentivam a promoção da saúde mental. No mundo, o ato de se suicidar também continua sendo uma das principais causas de morte — uma em cada cem — e as pessoas já morrem mais por esse motivo do que pela Aids, malária, câncer de mama ou guerras e homicídios. A comparação alarmante foi divulgada no relatório “Suicide worldwide in 2019”, também da OMS.
O suicídio é frequentemente associado a problemas de saúde mental, pois vai contra o instinto de sobrevivência do ser humano. A decisão, que é influenciada por fatores psicossociais, também pode ter ligação com uma predisposição genética, problemas pessoais, baixa adesão ao tratamento terapêutico, além da falta de apoio e escuta. No entanto, persiste a ideia de que o suicídio e as patologias associadas são “para chamar a atenção”, ou que quem precisa de psicólogos e psiquiatras é “louco” ou “fraco”, contribuindo para que nem todas as pessoas procurem ajuda.
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Desde 2015, ocorre no Brasil a campanha “Setembro Amarelo”, com o objetivo de prevenir o suicídio. É uma iniciativa do Centro de Valorização da Vida (CVV), do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). A escolha do mês de setembro se deve à proximidade do Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio (10 de setembro), e a cor amarela fica por conta de Dale Emme e Darlene Emme, que iniciaram uma campanha da fita amarela depois que seu filho Mike se suicidou com um carro amarelo.
O tema ainda é considerado tabu em algumas sociedades, incluindo a brasileira, e a ausência de debate pode ser prejudicial aos índices do país, já consideram alguns especialistas. O doutor e neurocientista Pablo Vinicius se manifesta contra o debate enxuto sobre o assunto e alerta que o suicídio é um problema “biopsicossocial”, logo, além das questões genéticas e do estado de saúde mental da pessoa que sofre com ideações suicidas, o fator social pesa e noções hostis sobre suicídio e doenças mentais podem afastar a vontade de procurar ajuda.
“O suicídio é uma somatória de fatores de risco. Nesse contexto, podemos considerar sim que o meio familiar, o meio acadêmico e o meio de trabalho podem funcionar como fatores protetores ou de risco para o suicídio. Então, não é que um meio familiar por si só indica o fator de risco. Inclusive, ele pode ser protetor e a gente sabe hoje que é porque nós sabemos do ponto de vista epidemiológico. O fator que mais protege as pessoas de entrarem em depressão e de cometerem o suicídio é a rede de apoio social, é como ela interage com as pessoas, é a qualidade dessas interações”, explica o especialista.
Para as redes de apoio e círculos sociais de uma pessoa com histórico suicida ou que apresenta comportamento próximo, Dr. Pablo deixa o recado: “é preciso estar atento aos sinais”. De acordo com o médico, o suicídio é precedido e há fases até a sua consumação.
“No primeiro momento, a pessoa não fala que quer se matar. O primeiro sinal é apenas um desejo de estar morto, é um desejo de não estar vivo. A partir do momento em que vai ficando mais grave, o pensamento de morte vai evoluindo para um desejo de se matar e uma terceira fase é quando ela já começa a pensar em métodos de cometer o suicídio. O paciente ou a pessoa também pode começar a registrar as suas vontades. Deixar uma cartinha de despedida, fazer um testamento, isso mostra a ideação suicida. Um outro sinal, é a falta de interesse que essas pessoas começam a ter pelo seu bem-estar. Tomar banho já não é tão importante, arrumar o cabelo e fazer a maquiagem vão perdendo a importância”, continua.
Dando continuidade à discussão, Dr. Pablo responde às perguntas feitas pelo LeiaJá, em uma entrevista voltada à conscientização e conhecimento sobre o comportamento suicida. Confira abaixo:
— Dr. Pablo Vinicius, psiquiatra especialista em saúde mental e neurocientista (Universidade Federal de Uberlândia)
LJ: Toda pessoa suicida tem quadro depressivo? Por que a associação?
PV: É comum as pessoas acharem que todo suicida é depressivo, mas isso não é uma verdade. Podemos afirmar é que a depressão é a causa mais frequente de suicídio, mas nem todo suicida sofre da doença. Existem outras doenças psiquiátricas que podem levar ao suicídio ou que podem contribuir para o suicídio, como transtornos relacionados ao álcool ou às drogas ilícitas, a esquizofrenia, o transtorno afetivo bipolar, transtornos de personalidade e também condições não psiquiátricas. Síndromes dolorosas crônicas também aumentam o risco de suicídio e é uma das formas de ocorrer o suicídio entre pessoas sem diagnóstico clínico psiquiátrico. Por outro lado, é importante deixar registrado que a depressão é a principal doença que relacionada ao risco de suicídio aumentado. Usei esse termo porque o suicídio tem causas multifatoriais. Normalmente falamos em riscos de suicídio, o envolvendo de uma doença psiquiátrica, como a depressão; tentativa de suicídio, fatores genéticos e até a rede de apoio social e familiar da pessoa. Por isso que nós [profissionais] não falamos de causa de suicídio, nós falamos de fatores de risco para o suicídio. Geralmente o suicida apresenta mais de um fator e o conjunto o leva a cometer o ato.
LJ: Quais as principais inverdades sobre o comportamento suicida? Como combatê-las?
PV: A primeira grande inverdade, acreditada por muitos, é a seguinte a seguinte frase: “falar de suicídio com as pessoas aumenta o risco de suicídio”. “Não devemos falar sobre suicídio na sociedade, não devemos divulgar os dados de suicídio”. Isso é um grande mito e nós da saúde mental sabemos que é exatamente o oposto. A gente sabe que as pessoas precisam falar do seu sofrimento, precisam colocar para fora as suas dores e se a gente inibe essas pessoas de falarem do seu pensamento de morte, elas vão falar com quem? Às vezes o próprio ato suicida é uma forma de extravasar a tensão que não conseguiu ser compartilhada com os outros. Nós [profissionais] da saúde mental damos muito valor ao conflito para que as pessoas possam falar de suas dores e de seus pensamentos, ainda que sejam os mais esdrúxulos. Podemos considerar que falar de forma bem orientada e profissional sobre o sofrimento humano ajuda as pessoas a buscarem. É isso que devemos proporcionar às pessoas em relação aos pensamentos de morte e aos de suicídio. Falar de suicídio diminui o risco de suicídio.
Um outro conceito muito comum na sociedade e que também se trata de uma grande inverdade é que o suicídio é coisa de gente “fraca da cabeça” e que “gente forte” não se mata e se resolve. O suicídio não é um sinal de fraqueza, nem um sintoma, ele é um fenômeno complexo e multifatorial que está acontecendo na vida da pessoa e esses componentes do suicídio não representam a expressão de uma fraqueza do ser humano. Por que as pessoas não falam que o diabético é fraco? Porque elas sabem que é uma doença, elas sabem que não é uma escolha. Com a depressão, nós falamos que esses pacientes são fracos, que precisam se fortalecer, porque na verdade as pessoas não sabem que estamos falando de uma doença. Ninguém escolhe estar depressivo, ninguém quer estar depressivo. Suicídio não é uma fraqueza, o suicídio é um desfecho trágico na vida de qualquer pessoa que pensa nisso e que chega a executar.
LJ: Como identificar os sinais de ideação suicida?
PV: Na grande maioria das vezes, o ato de tentativa de autoextermínio é precedido. Inclusive, é aqui que nós falamos de prevenção de suicídio. Podemos considerar a prevenção de suicídio em dois momentos. No primeiro, a prevenção do suicídio é o estilo de vida saudável. Se exercitar, se alimentar bem, estar no peso, dormir bem, fazer terapia, meditar, fazer ioga. É fazer com que essas pessoas fiquem longe de uma doença mental, de um pensamento de morte. Um outro ponto da prevenção é a identificação precoce dessas doenças que aumentam o risco de suicídio. Ajuda identificar precocemente a depressão ou uso e abuso de substâncias, um transtorno afetivo bipolar, por exemplo. A primeira coisa que a pessoa começa a apresentar é uma alteração do comportamento e dos pensamentos. Essa pessoa normalmente começa a ficar mais isolada, introspectiva, menos expansiva e mais pensativa. Ao conversar, se tornam mais negativistas. Sem esperança de futuro, sem perspectiva de futuro. Começa a achar e falar frases como “eu já não queria estar mais aqui”, “eu acho que a morte pra mim seria lucro”.
No primeiro momento, a pessoa não fala que quer se matar. O primeiro sinal é apenas um desejo de estar morto, é um desejo de não estar vivo. A partir do momento em que vai ficando mais grave, o pensamento de morte vai evoluindo para um desejo de se matar e uma terceira fase é quando ela já começa a pensar em métodos de cometer o suicídio.
O paciente ou a pessoa também podem começar a registrar as suas vontades. Deixar uma cartinha de despedida, fazer um testamento, isso mostra a ideação suicida. Um outro sinal, é a falta de interesse que essas pessoas começam a ter pelo seu bem-estar. Tomar banho já não é tão importante, arrumar o cabelo e fazer a maquiagem vão perdendo a importância. Ela deixa de se cuidar progressivamente, isso também é um sinal de abandono da própria vida. Então, poderíamos falar nesses sinais que indicam uma ideação suicida.
LJ: Quais os danos que um meio familiar acadêmico ou de trabalho podem causar ao não serem engajados ou conscientes de transtornos psiquiátricos?
PV: Há de se considerar o suicídio como um fenômeno biopsicossocial. Nós temos componentes genéticos envolvendo o suicídio, que estão o tempo todo interagindo com componentes socioambientais. O suicídio é uma somatória de fatores de risco. Nesse contexto, podemos considerar sim que o meio familiar, o meio acadêmico e o meio de trabalho podem funcionar como fatores protetores ou de risco para o suicídio. O fator que mais protege as pessoas de entrarem em depressão e de cometerem o suicídio é a rede de apoio social, é como ela interage com as pessoas, é a qualidade dessas interações. E, com uma rede de apoio social, eu estou falando de família, amigos e parentes. Mas esse meio também pode ser um fator de risco.
Relacionamentos tóxicos ou até a própria falta deles, como a solidão, estão relacionados no momento do risco e isso vale para o meio acadêmico e para o meio de trabalho. Hoje, nós entendemos como um dos grandes causadores de adoecimento mental na sociedade contemporânea por meio de trabalho nos locais extremamente tóxicos por seres humanos. O indivíduo que geneticamente tem uma condição que aumenta o risco de suicídio, trabalha num ambiente tóxico, de assédio moral e ele não tem uma rede de apoio social familiar. Os fatores vão somando e já se torna mais fácil entender que esse indivíduo está mais próximo do suicídio e do adoecimento mental pelos fatores de risco, ou por outro lado, podemos entender esses fatores também como protetores.
LJ: Além da ajuda médica, que é sempre indicada com urgência nesses casos, o que as pessoas do círculo mais próximo a um suicida devem fazer para amenizar o sofrimento dessa pessoa? Como trabalhar para um acolhimento eficaz?
PV: A primeira coisa que as pessoas em um círculo próximo de alguém que esteja passando pelo risco de suicídio é entender que esta pessoa não está naquela situação que quer. Frases como “você precisa tirar umas férias pra melhorar”, “você precisa arrumar um namorado”, “você precisa arrumar alguma coisa pra melhorar”: elas fazem mais mal do que bem, porque isso traz uma cobrança para uma pessoa que já não está dando conta nem de viver, quanto mais mais de namorar, viajar, de cuidar de uma outra coisa. O familiar e/ou pessoa do círculo próximo devem entender a situação de vulnerabilidade que aquela pessoa está e que ela precisa de ajuda e apoio, não de mais compromissos e cobranças. O mais aconselhado nesse momento é nunca deixar a pessoa sozinha, principalmente quando ela está em alto risco pro suicídio. É preciso sempre conversa e um acolhimento de forma empática, sem julgamento e sem preconceito. Isso é o que chamamos de acolhimento eficaz. Conseguir ouvir sem pré-julgamento. É muito importante que alguém que esteja sofrendo confie em quem o está ouvindo. O suicídio muitas vezes será a falta dessa escuta, dessa oportunidade. Acolhimento eficaz passa pela consideração, pelo respeito com a dor do outro.
LJ: Quais grupos sociais e etários são mais acometidos com esse tipo de ideação?
PV: O Ministério da Saúde nos traz uma pesquisa que diz que homens negros e jovens são os mais acometidos pelo suicídio. Na relação homens e mulheres, os homens morrem por suicídio mais do que as mulheres, porém as mulheres tentam o suicídio mais do que os homens. Isso quer dizer que, normalmente, quando o homem tenta o suicídio, ele costuma usar métodos mais letais, como arma de fogo. As mulheres costumam usar métodos com risco menor de morte, como o medicamentoso. Do ponto de vista etário, duas faixas etárias são preocupantes: a dos adolescentes de 14 a 19 anos, grupo no qual o suicídio é a segunda maior causa de morte. O número cresce no mundo e a taxa de suicídio nesse grupo, em relação aos outros, é três vezes maior. Um outro grupo etário de risco é o de idosos. Nesse grupo há geralmente a presença de algumas doenças que aumentam o risco de suicídio, a exemplo da depressão, doenças neurodegenerativas, Parkinson, Alzheimer, doenças clínicas crônicas; doenças que causam uma terceira idade mais sofrida, com muitas dores e limitações.
LJ: Quais as características que mais afastam a população de um bom entendimento sobre o suicídio? Seria preconceito?
PV: Seriam os mitos. Por exemplo, dizer que falar do suicídio aumenta o risco. Esse é o mito que mais afasta as pessoas de uma conversa sobre o assunto. Talvez não seja tão interessante para a mídia trazer esse assunto, pelo entendimento de que falar de suicídio é falar de sofrimento, de dor, de morte, mas é o oposto. É falar de plenitude de vida, é falar de saber viver bem, de prazer, de alegria, de felicidade. Quando a sociedade começar a entender que falar de suicídio não é falar de morte, mas falar de vida, talvez a gente consiga espaços maiores para falar melhor disso. Debater o suicídio é promover e estimular a vida, é falar em prevenção.