José Carlos, carinhosamente chamado de Carlão, realiza testes com o óculos 3D. Ele acredita que o dispositivo traz benefícios para sua mobilidade / Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
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Caminhada lenta, mas rica em detalhes. Cada passo representa uma descoberta regada a diferentes sensações. As mãos que tocam as paredes e as vibrações que chegam aos ouvidos parecem dar forma a ambientes antes invisíveis. Tudo ocorre de maneira extremamente cautelosa em um corredor onde há pessoas que assistem encantadas ao passeio de José Carlos Amaral, 35 anos. Carlão, como é carinhosamente chamado pelos amigos, possui total deficiência visual, mas auxiliado por um óculos que pode representar uma das principais alternativas em prol da mobilidade dos cegos no Brasil, o rapaz caminha de forma independente e cuidadosa pelo Campus Recife do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), no bairro da Cidade Universitária, Zona Oeste recifense, onde vivencia experiências e amizades oriundas de um projeto científico desenvolvido na unidade.
De um aparelho ocular batizado de Synesthesia Vision, nasceram a esperança e a vontade de estudantes e professores em propiciar, gradativamente, um recurso que pode dar mais autonomia a pessoas com deficiência visual. O objeto utiliza um recurso chamado de áudio binaural tridimensional que é capaz de transformar distâncias em sons.
Em 2015, professores do IFPE iniciaram uma pesquisa para desenvolver um projeto de tecnologia assistiva destinada a cidadãos com deficiência visual. Gilmar Gonçalves de Brito, desde 1991 servindo ao Instituto, é um dos docentes que criaram o óculos 3D que, por meio de ondas sonoras, indica a uma pessoa com deficiência visual a existência de obstáculos próximos a ela. Técnico em eletrônica e doutor em geotecnia, Gilmar se inspirou nas experiências de sua irmã, uma bióloga que pesquisava a vida dos morcegos; eles identificaram que os animais, apesar da baixa visão, conseguem se locomover guiados por ondas sonoras.
Parceira de Gilmar durante o desenvolvimento da pesquisa, a professora Aida Araújo Ferreira, que soma quase 15 anos como docente do IFPE, destaca que antes de o projeto ser concretizado, foi estudada a viabilidade de colocá-lo em prática. Além disso, os pesquisadores identificaram que existem várias ferramentas responsáveis por facilitar a mobilidade dos cegos, mas a proteção se resume da cintura até o chão, como no caso da bengala. Com o óculos 3D, entretanto, a proteção pode ser da cintura até a altura da cabeça dos usuários; a bengala, porém, deve continuar sendo utilizada, pois as ferramentas se complementam.
Professor Gilmar, Carlão e a professora Aida realizando conexão do óculos com o aparelho celular / Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
“A ecolocalização foi a inspiração. Gilmar tem muitas ideias, inventa muitas coisas e eu trabalho na gerência do projeto, e assim a gente vai juntando os diferentes conhecimentos. Na prática, o óculos gera um som que faz com que o cego sinta o ambiente a partir dos efeitos sonoros. O óculos funciona a partir de três sensores ultrassônicos que percebem obstáculos da altura da cintura até a cabeça e emitem efeitos sonoros para que o cego perceba. Quanto mais próximo estiver do objeto - distância de até quatro metros -, o som é maior”, explica a professora Aida. Confira, a seguir, como são os sons do dispositivo:
“A gente começou a pesquisa e antes de tudo, analisamos viabilidade e descobrimos na literatura diversas iniciativas. Aprofundamos essa pesquisa inicial e fizemos uma proposta de projeto que foi aprovado no IFPE para trabalho de iniciação científica com estudantes do nível técnico”, complementa a professora, que carrega em seu currículo o título de doutora em ciência da computação.
Sons que fazem sentir o espaço
Vítima de uma catarata congênita, José Carlos perdeu a visão por completo ainda na adolescência. Na vida adulta, apesar das limitações de mobilidade, conseguiu desenvolver sua autonomia, além de ser aprovado para trabalhar no IFPE.
Como Carlão é servidor do Instituto, atuando há dois anos na função de tradutor de Braille, recebeu o convite para testar o óculos 3D. O projeto ainda é considerado um protótipo e passa, corriqueiramente, por adaptações sugeridas por Carlos e outros usuários para que a usabilidade melhore cada vez mais.
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“Quando entrei aqui, conheci Gilmar e ele conversou comigo sobre o projeto. Achei muito interessante. A primeira vez que ouvi o sinal dos sensores foi um pouco atordoante. Tudo era muito difuso, o som vinha de todos os lados. Mas depois, quando você assimila, vai fazendo os ajustes. Requer um aprendizado, não é só colocar óculos. Ainda estamos adequando e todas as vezes que os alunos fazem os ajustes, eu testo e opino para o que pode melhorar”, relata Carlão.
O usuário do óculos ressalta o quanto a ferramenta pode contribuir para as pessoas com deficiência visual. “Traz muita contribuição, porque várias vezes as pessoas com deficiência visual não são oportunizadas a ser independentes, por causa da questão da segurança e da mobilidade. Esse projeto vem para promover mais segurança e para proporcionar autonomia. Eu, por exemplo, já tento resolver minhas atividades com autonomia há mais de 15 anos”, comenta José Carlos. Quando perguntado sobre as principais dificuldades enfrentadas pelos cegos no Brasil, Carlão opinou no áudio a seguir:
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De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil há mais de 6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência visual. Desse quantitativo, cerca de 500 mil são cegas. “Os problemas enfrentados pelos cegos, infelizmente, ainda são muitos. Os principais são as calçadas esburacadas, postes, orelhões, caixas de Correio no meio da passagem, fiteiros, barracas de lanche com teto baixo, carros e até caminhões estacionados em calçadas, dentre outros. No que tange às telecomunicações, as emissoras de televisão divulgam informações visuais que não são descritas para que as pessoas cegas possam ter acesso à informação que está sendo veiculada”, descreve o presidente da Associação Nacional dos Cegos, Antônio Muniz.
Quando a formação propaga inclusão
O professor Gilmar expressa satisfação em ver o andamento dos testes do projeto científico. Reflete claramente o sentimento de que um educador, ao ser lançado ao desafio de produzir conhecimento, precisa também compartilhar soluções para os problemas enfrentados nos grupos sociais brasileiros. “Sempre fiz trabalhos voltados para comunidades. Achava que a gente poderia usar nossos conhecimentos técnicos para ajudar os cegos, já que enfrentam dificuldades até hoje, mesmo com todas as tecnologias já existentes. Nós somos servidores públicos e o nome público é bastante abrangente. Acho que parte da nossa função é desenvolver tecnologias e empregar nossos conhecimentos para a inclusão. São projetos que dão retorno. Se a gente pode fazer alguma tecnologia que ajude a população, temos que fazer”, diz o educador.
Desde início do projeto em 2015, nove estudantes já participaram das atividades de melhoramento do protótipo. Um deles, o técnico em eletrônica Jonathan Kilne dos Santos, 20, mesmo concluindo sua formação no IFPE, retornou ao Instituto para continuar dando suporte ao Synesthesia Vision. Ele é responsável por melhorar o desenho do óculos, e ao ver sua adaptações se tornarem palpáveis, sente o prazer de um trabalho bem feito.
“No começo, a gente tinha um óculos feio, era gigante! Eliminei boa parte do peso tirando a bateria e trocando pelo celular. Adquirimos uma impressora 3D e assim pudemos modelar os nossos óculos. Ver saindo da tela do computador para algo palpável é maravilhoso. Toda vez que vejo Carlão utilizando o óculos, me dá vontade de adicionar mais coisas para melhorar. Ainda precisamos evoluir a conexão dos óculos com alguns aplicativos ao redor”, diz Jonathan.
Aluno do quarto período do curso de análise de sistemas, João Victor Brito, de 18 anos, aprende as técnicas da produção científica e o conceito de trabalho em equipe. Essa junção, ao final das aulas, contribui para a função social da educação disseminada nos institutos federais, que é transformar conhecimento em benefícios para a sociedade.
“No projeto, existem duas equipes, uma responsável pela montagem e outra pelo aplicativo. Tenho aula da grade curricular pela manhã e à tarde venho para o laboratório com o intuito de aperfeiçoar o código do aplicativo que trabalha em conjunto com o óculos”, descreve o estudante.
Em um dos testes realizados com o dispositivo, a equipe do projeto científico visitou a cidade de Afogados da Ingazeira, no Sertão de Pernambuco, onde os integrantes vivenciaram os sorrisos de quem, pela primeira vez, poderia sentir o mundo através dos sons. “Encontramos dois estudantes cegos. Um deles é Matheus, que testou o óculos e a sensação de felicidade dele foi muito clara. O sorriso foi uma sensação inexplicável”, relembra João Victor.
Segundo os professores responsáveis pelo projeto, ainda não é possível determinar quando o óculos estará definitivamente pronto para uso e produção na indústria. A finalização apenas será possível no momento em que todos os testes viáveis forem realizados, havendo adaptações posteriormente. A perspectiva é que o custo do produto industrializado seja igual ou menor do que a quantia da produção atual: R$ 300 por peça. Até então, cinco exemplares foram fabricados. Mais informações sobre o projeto podem ser vistas no site do Synesthesia Vision.
Reportagem integra a série “Além da técnica: a função social dos Institutos Federais”, que conta história dos dez anos dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, traçando um paralelo entre a contribuição dos projetos de extensão das instituições e o respaldo na sociedade, seja na forma de inclusão de classes mais baixas na educação, como também no benefício direto da população pelas pesquisas realizadas nos institutos. A seguir, confira as demais matérias da série:
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