Entre os anos de 2000 e 2005 chegavam até o Conselho Metropolitano da Comunidade, do qual a assistente social Wilma Melo fazia parte, notícias sobre a falta de condições de higiene na Colônia Penal Feminina do Recife (CPFR), no bairro da Iputinga, Zona Oeste da capital. Sem absorventes íntimos, algumas mulheres privadas de liberdade usavam até miolo de pão para conter o fluxo menstrual. O conselho foi extinto, mas Wilma Melo seguiu atuando na defesa dos direitos da população privada de liberdade. No último dia 27 de outubro, ela participou de vistoria na Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima (CPFAL), na Região Metropolitana do Recife (RMR), como presidente do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri) e coordenadora do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Na ocasião, ela sentiu voltar no tempo, ao ouvir relatos de presas sem acesso a absorvente, dessa vez usando pedaços de pano improvisadamente.
“Depois dessa situação do miolo de pão como absorvente a gente conseguiu dar um olhar para as mulheres encarceradas e houve uma sensível melhora. Mas quando a gente retorna à unidade prisional, a gente percebe que essa sensível melhora não frutificou. Mulheres não usam miolo de pão, mas continuam usando pedaços de pano e papel higiênico”, conta a assistente social.
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Nas entrevistas realizadas na inspeção da CPFAL, ficou constatado que, embora tenham sido solicitados 480 absorventes no mês da inspeção, foram disponibilizados apenas 48. Em 17 de dezembro deste ano, conforme dados do Mapa da Totalidade oferecido pelo Sistema Penitenciário do Estado de Pernambuco, a unidade prisional tinha 442 pessoas encarceradas para 192 vagas, o equivalente a uma lotação de aproximadamente 230%, o que significa uma taxa de ocupação de 2,3 presas por vaga.
O tema da pobreza menstrual ganhou maior difusão no país após o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), sancionar com vetos em outubro o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Os artigos vetados previam a distribuição de absorventes nas cestas básicas das brasileiras de baixa renda por meio do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O texto original também adotava a entrega de absorventes para estudantes de baixa renda matriculadas em escolas públicas, mulheres em situação de rua e privadas de liberdade no sistema prisional e socioeducativo. Para justificar os vetos, o governo defendeu que o texto "contraria o interesse público" e não indicava a fonte de custeio.
Também em outubro, o Governo de Pernambuco lançou o Programa de Educação em Saúde Menstrual, voltado para as escolas da rede estadual. O projeto prevê distribuição de absorventes para estudantes em idade menstrual e formação e orientação sobre questões sociais, biológicas e emocionais que afetam a vida da mulher durante o período da menstruação. "A conscientização dos nossos jovens sobre a saúde da mulher começa nas escolas", disse o governador Paulo Câmara (PSB) ao lançar o programa.
Além de Wilma Melo, participaram da inspeção de outubro a Defensoria Pública do Estado de Pernambuco e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Ofício enviado pela Defensoria Pública diz haver um contrassenso entre o Programa de Educação em Saúde Menstrual do Governo de Pernambuco e a ausência de tais políticas públicas nas unidades prisionais femininas. “As pessoas que nós entrevistamos narraram que dependiam sempre desse fornecimento por parte das visitas e havia muitas dificuldades para aquelas que não recebiam visitas”, conta a defensora pública Gabriela Lima Andrade, do Núcleo de Cidadania Criminal e Execução Penal (NECCEP).
“Trata-se de uma obrigação do Estado fornecer o absorvente íntimo às pessoas privadas de liberdade”, acrescenta a defensora. “As mulheres e os homens trans privados de liberdade sofrem duplo estigma, gerado pelo cárcere e discriminação de gênero, e isso decorre de uma sociedade pautada, em geral, em padrões masculinos de dominação.”
Duas ex-detentas com passagem pela Colônia Penal Feminina do Recife (CPFR) e pela Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima (CPFAL) ratificam que a situação de pobreza menstrual no cárcere não é nova e que as mulheres precisam contar com doações e ajuda de familiares para ter acesso aos absorventes. Presas que não recebem visitas enfrentam maiores dificuldades no acesso a itens de higiene e precisam da solidariedade de outras mulheres privadas de liberdade.
Márcia Félix, de 31 anos, esteve reclusa nas duas unidades, com a última passagem se encerrando em 2020. "É uma situação bem complicada. A quantidade de mulheres é muita e de doações é muito pouca", resume ela.
"Eu já cheguei a ficar no Castigo [cela isolada para punir reeducandos por comportamento considerado desviante] usando papel higiênico porque não tinha absorvente no pavilhão. Essa é a realidade de muita gente", conta. "Também já tive que usar pano. Chegou a data da minha menstruação e era domingo, não tinha expediente no setor social nem na enfermaria. Eu tive que botar pano, usando roupas velhas usadas", lembra ela.
"Eu já passei por constrangimento”, continua Márcia. “Estava com as meninas e o sangue passou para a roupa. Elas entendem, mas sempre tem uma ou outra que gosta de falar.” Ela já recebeu kits de higiene de uma enfermeira e da diretora da escola. "A enfermeira pedia para eu não dizer para as outras, porque se eu dissesse muitas iam pedir e ela não teria condições de dar."
Já Nara, como quis ser identificada, de 37 anos, passou nove meses na CPFAL, deixando a unidade em novembro de 2019. Por ser concessionada, ou seja, exercia atividade laboral na unidade, ela tinha mais facilidade para obter materiais de higiene. Mas a posição que ocupava também fez conhecer muitos casos de pobreza menstrual.
"Para as presas de forma geral é complicado o acesso, pelo fato de que quem leva o absorvente são as igrejas e outras doações", lembra. A ex-detenta conta que a única vez que recebeu o absorvente íntimo do Estado foi no dia em que chegou à unidade. "Sempre havia presas que vinham me pedir absorvente. Toda semana eram cinco, seis, dez que vinham me pedir”, lembra. "O Estado tem a obrigação de prover a sua sobrevivência. Boa parte da população carcerária não tem muito estudo, muito grau de instrução e pensa que tudo isso é favor. Mas é um direito da gente enquanto ser humano custodiado pelo Estado", ela ressalta. Tanto Márcia Félix quanto Nara estão em busca de emprego, vivendo de bicos desde que deixaram o cárcere.
O coletivo Liberta Elas é um dos que doam materiais básicos de higiene para as unidades prisionais femininas de Pernambuco. "Muitas mulheres para se manter dentro das unidades prisionais contam muito com a ajuda da família. É a família que vai levar, além do carinho e do afeto, remédios, roupas e produtos de higiene”, diz Juliana Trevas, que é uma das coordenadoras do projeto.
Segundo Trevas, a falta de absorventes é só a “ponta do iceberg”. "Essa situação escancara que o Estado não cumpre o que está na lei. E, assim, demonstra mais uma vez as péssimas condições do cárcere, as violações de diversas esferas. Revela como é precária e de violação de direitos a situação que aquelas mulheres se encontram, que nem absorvente tem, nem sabonete, nem xampu ou lençol", lamenta ela. "É um local de extrema ausência de tudo", completa.
A integrante do Liberta Elas defende que a ausência do absorvente íntimo afeta a dignidade das mulheres presas, às quais ela se refere como “sobreviventes”. "Afeta a dignidade totalmente. A menstruação ainda é um tabu. Todo mundo sabe que existe, mas muita gente tem nojo do sangue menstrual, inclusive as próprias mulheres. Imagina você estar sangrando e não ter o mínimo de higiene para passar seu ciclo de uma forma tranquila. Você não ter absorvente é um componente da humilhação", ela diz.
A assistente social Wilma Melo cobra de parlamentares mulheres uma atenção para as mulheres privadas de liberdade, apresentando emendas e projetos que tornem a Lei de Execuções Penais menos genérica, identificando de forma clara as necessidades específicas para as unidades prisionais femininas. “A lei é de 1984, ela ainda não era tão voltada para a mulher presa. Então não se olhou isso e hoje as emendas ainda não olham. Não é obrigação das organizações estar levando material como sabonete, pasta, desodorante e absorvente íntimo para as mulheres encarceradas. É dever do Estado garantir o mínimo necessário de condições higiênicas para essas mulheres”, argumenta.
No ofício enviado à Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres), a Defensoria Pública cobra detalhes sobre a quantidade de absorventes disponibilizados pelo Estado às unidades prisionais e o fornecimento em caráter urgente do material.
O LeiaJá procurou o governo estadual para comentar a falta de absorventes no cárcere. As questões foram respondidas pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), responsável por fazer o repasse do item de higiene.
A SES defende que não houve ausência de fornecimento, que é oferecida a quantidade solicitada e que há disponibilidade do produto no estoque. Segundo a pasta, foram disponibilizados 1.799 pacotes nos últimos seis meses para a CPFAL, sendo uma média de 257 pacotes com oito unidades em cada mês.
A última compra de absorvente foi realizada em 2019. Durante os anos de 2020 e 2021, a CPFAL foi abastecida por meio desse estoque. A SES não informou o custo.
Ainda segundo a pasta, o cálculo de absorventes a serem entregues individualmente é realizado com base em um consumo estimado de duas a três unidades por dia para cada mulher privada de liberdade. Apesar dos diversos relatos, a secretaria afirma que a distribuição do absorvente íntimo é realizada igualmente para todas as privadas de liberdade, independente se elas recebam ou não visitas.
Os pontos de arrecadação são:
1) Defensoria Pública de Pernambuco
- Av. Manoel Borba, 640. Boa Vista. @defensoriape
2) Marília Sales Visagista @mariliasales_vs
Rua Visconde de Ouro Preto, 156. Casa 2. - Casa Forte - . Entregas nas quartas-feiras entre 14h e 18h
3) Ciclos Absorventes @ciclos_absorventes
Rua Professor Henrique de Lucena, 56. - Jardim São Paulo-
4) Bestafera Bar @bestaferabar
Rua Mamede Simões, Centro.
5) Centro Comunitário Germinar
Rua Andaraí, 101,Cj. Flor do Carmelo, Jardim Piedade
6) AMPAC - Associação de Mãe, Pai e Adolescente do Coque @ampacoque
Rua Catalão, 92, Joana Bezerra, Coque.
7) Poço das Artes @pocodasartes
Rua Álvaro Macedo, 54, Poço da Panela.