Minutos antes da reunião, o síndico Rufino Neto fumava cigarros, andava de um lado para o outro e dava respostas curtas, parecia inquieto. Aos poucos, as pessoas foram entrando na capela. Josy Miranda foi a primeira a falar. “Amanhã serão oito dias de angústia e incertezas. A gente não vai desistir, aqui a gente vai ficar. Temos fé em Deus”, ela disse. Aplausos. Discursaram também as deputadas da Juntas (Psol), que presidem a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Uma moradora se exaltou e começou a acusar o síndico de ter subtraído pagamentos, enquanto ele ouvia de braços cruzados em silêncio. “Se ele não tem condições, coloque outro no lugar”, ela esbravejou. Josy pedia para a reunião não perder o foco. Na entrada da capela, uma senhora com camiseta da Paixão de Cristo rezava de olhos fechados e mãos juntas. Outra moradora gritava para todos: “A discussão é pela moradia. Depois a gente decide sobre o síndico. A gente tem que se unir agora. Acorda!”. Desencantados com a falta de perspectiva, moradores começaram a deixar o recinto. Rufino ameaçou renunciar caso alguém encontrasse alguma irregularidade sua. “Eu quero assistir a minha novela, quero tomar banho de chuveiro”, reclamava outra pessoa do lado de fora. Em poucos minutos a reunião acabou. Lá do alto do prédio, Regina Pires ouviu nada daquilo.
O clima de nervos à flor da pele observado naquela reunião da tarde de terça-feira (12) domina os moradores do Edifício Holiday, localizado a uma quadra da Praia de Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Mal sabiam eles que a situação ainda iria piorar no dia seguinte: a Justiça determinou que o prédio seja interditado e que os moradores deixem o local no prazo de cinco dias úteis - até a próxima quarta-feira. É mais um drama na vida dessas pessoas que estão há nove dias sem energia elétrica e sem água. Mais um drama para Regina.
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Regina é um claro exemplo de como a situação dos moradores do Edifício Holiday está dramática. Ela não estava na reunião porque estava ilhada em sua casa. A mulher de 63 anos mora no 16º andar e, desde a falta de energia, com os elevadores parados, não sai mais de casa. Ela já sofreu dois AVCS, é hipertensa, diabética, com dificuldade de locomoção, tendo recebido 59 pontos nas costas após um acidente, não pode ficar sentada por muito tempo porque começa a sentir dor. E não tem parentes próximos. “Eu não tenho para onde ir”, resumiu.
No dia dos três pipocos, Regina estava no térreo. De repente, todo o prédio ficou no escuro. Ela precisou ser levada por amigas até o seu andar pois não consegue subir sozinha e os elevadores não funcionavam mais. Certa vez ela tentou arriscar as escadas e, quando estava no sétimo andar, seu coração acelerou e ela acabou sendo socorrida para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde ficou três dias internada. A casa é minúscula. O sofá vermelho de um lado e a estante cheia de imagens de santos do outro permitem apenas um apertado corredor que leva ao outro cômodo, onde a cama de solteiro é colada com o fogão. “Aqui é maravilhoso. Não quero sair daqui”, disse sem hesitar. Apesar do gênio alegre, precisou ser amparada na igreja semanas atrás de tanto chorar preocupada com o seu futuro. “Já chorei que só uma louca”, admitiu.
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No escuro, ela mostra o recipiente com insulinas descongeladas. “Tenho medo de tomar assim e bater as botas”, comentou, também aos risos. A insulina deve ser conservada na geladeira, podendo perder a capacidade de ação se mantida em temperatura ambiente.
O Edifício Holiday foi erguido em 1957, possui 17 andares e 476 apartamentos. Na época de sua construção, o bairro de Boa Viagem ainda estava em formação e consistia basicamente de residências de veraneio. Acredita-se que a construção modernista foi erguida com o objetivo principal de servir de residência para fins de semana e férias ou moradia para jovens casais e solteiros, por isso o formato de apartamentos pequenos. Há três tipos de apartamentos no Holiday: kitnet, com um quarto e com dois quartos.
Boa Viagem sofreu uma transformação desde a década de 50 e virou bairro nobre. O Holiday agora é cercado por prédios intimidadores, direcionados para quem tem maior poder aquisitivo. Mesmo com sua estrutura singular, o Holiday virou o patinho feio da vizinhança. “As pessoas olham para cá discriminando. Meu irmão não entra aqui com vergonha”, diz Cláudio Laureano, de 71 anos. Entre os residentes, corre o zumzumzum de que haveria grande interesse do setor imobiliário na interdição do Holiday devido ao local ser estratégico.
Cláudio é outro morador que tem sofrido em especial com a falta de energia e água. Também diabético e com prótese no quadril, o aposentado tem ficado recluso. “Como eu vou descer essas escadas de noite?”, questionou. Cláudio abriu a geladeira e um cheiro ruim invadiu o ambiente. Sob a luz de várias lanternas ligadas em cima do armário, ele exibiu um recipiente onde guarda as insulinas. “Estão todas estragadas”, salientou. Além desses moradores, o imóvel abriga idosos, cadeirantes, doentes e crianças. Os condôminos são, em grande maioria, de baixa renda. Apesar de uma grande rotatividade, o prédio é conhecido por abrigar em maior parte comerciantes da Praia de Boa Viagem e algumas garotas de programa da região.
Em fiscalização recente, a Companhia Energética de Pernambuco (Celpe) disse ter identificado um “risco elevadíssimo” de incêndio no Holiday. “Nós identificamos diversas ligações clandestinas, gambiarras, condutores expostos, um risco elevadíssimo de curto circuito e incêndio. Era necessário um corte de imediato para proteger a vida das pessoas”, explicou o gerente operacional da Celpe, Fábio Barros. Em uma tentativa de desligamento da energia, os técnicos foram impedidos pela população. “Chamamos a polícia para nos apoiar, mas mesmo assim, não conseguimos realizar o corte”, recordou Barros. Após a queda de energia, os moradores esperaram o religamento, que não ocorreu. Por meio de nota, a Celpe destacou que estava amparada por determinação judicial, acrescentando que o fornecimento só será restabelecido após as correções elétricas necessárias.
A Prefeitura do Recife, que solicitou a interdição, diz ter baseado o pedido em laudo do Corpo de Bombeiros, que constatou risco quatro de incêndio em uma escala de um a quatro. “Eles são desorganizados, não se dão bem entre eles, não se acertam. Eu dei sugestões. Sugeri criar um grupo para decidir sobre a restauração do prédio, fazer uma conta bancária, emitir um boletim para tudo ser feito com transparência, cobrar taxa de aluguel, regular a situação do pagamento dos condomínios”, citou o secretário de Mobilidade e Controle Urbano, João Braga, antes de ocorrer a solicitação de interdição. O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) também acompanha o caso, tendo instaurado um inquérito civil e solicitado laudos sobre as condições de habitabilidade. O Governo de Pernambuco, através da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH), encaminhou uma equipe do Centro Integrado de Atendimento e Prevenção à Violência contra a Pessoa Idosa (CIAPPI) para fazer um levantamento do perfil socioeconômicos dos idosos.
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Aos poucos, as famílias estão indo embora. Entra e sai de caminhões de mudança virou algo corriqueiro nos últimos dias. Antes desse drama, cerca de três mil pessoas viviam no local. “Se tem 200 pessoas agora é muito”, calculou Josy. Para ela, a saída dos condôminos é ruim para quem quer continuar lutando para morar no Holiday. De maneira geral, a situação chegou a esse ponto por causa da inadimplência dos moradores, que alcança até 80% dos ocupantes. O síndico alega não haver dinheiro para fazer os ajustes no prédio e que a inadimplência existe desde síndicos anteriores.
Segundo a prefeitura, a condição estrutural do edifício é alvo de preocupação do Poder Público desde 1996. Desde então, o edifício foi alvo de vistorias, intervenções e recomendações de diversos órgãos públicos a exemplo do Corpo de Bombeiros, CREA, Procuradoria Regional do Trabalho, Ministério Público de Pernambuco, Dircon, Vigilância Sanitária e Defesa Civil do Recife. O lixo, por exemplo, sempre foi outro problema recorrente do edifício. Ele costuma ficar acumulado no térreo, causando mau cheiro e risco de doenças. Em cada andar há uma espécie de lixeira-canaleta, que joga os dejetos para baixo. Certos andares têm forte mau cheiro porque estas calhas não recebem a devida limpeza.
O síndico pretende recorrer da decisão de interdição. A gestão municipal está oferecendo abrigos públicos a partir desta quinta-feira (14), porém, de forma praticamente consensual, os residentes rejeitam a ideia. Força policial pode ser usada para que determinação seja cumprida.